As pessoas terão uma experiência dura. De bolsos vazios, não haverá dós de peito ideológicos que as animem. E verão a liberdade a diminuir a olhos vistos. A herança certa de Costa será essa desilusão. Texto do professor Paulo Tunhas para o Observador:
Há,
é claro, o medo da morte desamparada e da dor física insuportável. Mas,
tirando isso, o que importa antes de tudo o mais às pessoas, não o
convém nunca esquecer, é o dinheiro. O dinheiro que lhes permite
resistir ao fim do mês, e, nos casos mais difíceis, conseguir respirar
mesmo no princípio e ir aguentando como se puder os dias que,
entretanto, passam. Tudo o resto, mesmo as coisas mais valiosas como o
amor, a amizade e os prazeres sortidos em geral, vem depois. Não falo
sequer da liberdade, que, no essencial, é definida a partir da
consideração do que se deseja como valioso e varia em função das
escolhas que se fazem nesta matéria. A liberdade, com a excepção de
certas formas muito gerais e abstractas, é sempre a liberdade de cada um
e de cada momento.
Devo
ter acordado muito pedestre para me apetecer falar disto. Mas é verdade
que os tempos nos aconselham a sermos um bocadinho pedestres e a olhar
com algum cepticismo – e, às vezes, com mais do que cepticismo: com pura
e simples descrença – para as conversas com que se entretém o chamado
“espaço público”. Nele, as verdades básicas são submetidas a processos
vários de ocultamento. Os mais comuns residem na sublimação da prosaica
questão do vil metal em “projectos de sociedade”, na conversa sobre o
que a sociedade deve ser para ser uma sociedade justa. Ora, isso, além
de inevitável, está muito bem: a discussão sobre o que é uma sociedade
justa é uma conversa a manter. O mal é quando o universo das palavras
toma conta de tudo e se desapega da realidade. As preocupações
elementares das pessoas, de tão vestidas com roupagens ideológicas,
tendem a tornar-se invisíveis. Eu sei bem que a ideologia é inescapável e
que, além disso, é até um meio para ajudar à conversa que importa. Mas,
quando a linguagem ideológica toma conta de tudo, sobra pouca atenção
para o que verdadeiramente interessa, que é a vida real das pessoas e os
problemas por que elas passam.
Confesso
que, por causa disto, não levo muito a sério os combates ideológicos,
quando eles se alçam ao elevado plano dos princípios e das teorias
gerais da sociedade. Não é que não me sinta mais próximo do chamado
liberalismo e que não reconheça que o socialismo (seja o que for que a
palavra queira dizer) abunda em consequências danosas para a sociedade. O
problema é que, dado a sociedade ser o que é – um magma só
precariamente determinável de interesses, instituições e acções -,
nenhuma teoria geral, por mais sagaz que seja, a pode esclarecer
univocamente. Acresce a isto que, ao contrário do que alguém dizia dos
sistemas filosóficos, as concepções políticas contêm mais verdade
naquilo que rejeitam do que naquilo que afirmam. É preferível, por isso,
uma certa inconsistência. O melhor é somar rejeições sortidas. Pode ser
que seja a única maneira de chegar a algo positivo.
Se
a discussão teórica, quando visa efeitos políticos, corre o risco da
puerilidade, quando não de algo muito pior que isso, já a discussão
propriamente política sobre as acções dos governos faz obviamente todo o
sentido. E, olhando para Portugal, não custa observar que o caminho que
o PS de António Costa segue, seja ele “socialista” ou outra coisa
qualquer, só pode levar-nos a um lugar muito mau. Usando e abusando de
uma linguagem oca e, no limite, incompreensível, não recuando perante
nada que lhe permita a manutenção do poder, procurando esmagar qualquer
manifestação de independência no seio do Estado e da sociedade, vai
criando um mundo irreal alternativo que nos quer fazer crer que é o
mundo real. Não é, e vamos todos, mais uma vez, pagar caro por esta
brincadeira.
A
começar, é claro, por uma maior pobreza. Ela vem aí, mesmo com a
“bazuca”, inexorável e sem mistério nenhum. Nenhuma sociedade sobrevive
em condições dignas num sistema de mentira permanente, do embuste
metódico, que é aquele em que vivemos. Mentira da TAP, mentira das
condições do SNS, mentira da educação, e por aí adiante. Mentira de
tudo. Quando as pessoas se derem conta de que o pensamento a crédito no
qual vivem não passa de uma colossal ilusão, será já demasiado tarde.
Perceberão o erro de terem acreditado em quem nunca se preocupou com a
construção de uma sociedade viável, onde a riqueza pudesse ser criada. A
linguagem oca surgir-lhe-á como aquilo que realmente, desde o
princípio, é: linguagem oca. E descobrirão que a linguagem oca lhes
deixou os bolsos vazios. Vária gente não passará, é claro, por estes
tormentos. Mas as pessoas mais desprotegidas, que são muitas e serão
muitas mais, terão uma experiência dura.
De
bolsos vazios, não haverá dós de peito ideológicos que as animem. E
verão a liberdade a diminuir a olhos vistos. Não, talvez, nas suas
formas mais abstractas e gerais, mas certamente nos seus aspectos mais
concretos: a liberdade de decidirem por si o que lhes é valioso e de
buscarem a satisfação dos prazeres que desejam, incluindo o de sentirem
algum orgulho em pertencer a uma comunidade política digna. A herança
certa e segura de Costa será essa desilusão. Quanto aos seus putativos
herdeiros no PS: não interessa nada.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário