BLOG ORLANDO TAMBOSI
Ensaio de Augusto de Carvalho, publicado pelo Estado da Arte:
Historiadores,
hoje, ressaltam a origem particularmente eurocêntrica da nossa forma
específica de elaborar o passado, à maneira da historiografia moderna.
Não se deve menosprezar, contudo, que o interesse pelo tempo passado
nunca foi restrito à Europa. A despeito das inúmeras individualidades
culturais, toda comunidade humana mantém uma relação lógica com seu
passado. A observação e o trabalho de elaboração sobre a fonte de sua
própria existência é um traço distintivo do humano—reflexão sempre menos
ou mais metódica, individual ou coletivamente motivada, e que
porventura pode servir a mera curiosidade, à diversão, assim como ao
ímpeto de dominação de si e do outro. Esse vínculo antropológico com o
passado é ratificado na obra notável de Alain Schnapp, que, a propósito,
torna menos excessiva essa consideração aparentemente imoderada: há
historicidade desde que há ancestralidade.
Vincenzo Camuccini, ‘Tolomeo Filadelfo nella biblioteca di Alessandria’, 1813 |
Embora
seja tarefa de antropólogos e historiadores a exposição sistemática das
evidências dessa paixão humana pela precedência, dada a amplitude desse
fato e os limites epistemológicos de seu reconhecimento, é impossível
comprová-lo suficientemente por meio da antropologia ou da
historiografia. A sugerida universalidade dos fenômenos temporais
passados, então, exige daquilo que excede a humanidade as devidas
explicações. Por isso, a razão não arbitrária para a relação existencial
do humano com o tempo passado não é desvendada pelo acúmulo ou pela
soma de alguma característica metapsicológica, e sim seria
apropriadamente constatada apenas com a vocação Metafísica.
Existem
variadas respostas igualmente metafísicas a essa pergunta. Há uma série
de teorias sobre o tempo que se agrupam numa perspectiva naturalista
mais ampla, segundo a qual o universo—e tudo que ele contém—existe num
espaço-tempo isotrópico, isto é, indiferente à direção. A humanidade
seria apenas mais um dos blocos que amparam e organizam esse desenho
radicalmente determinado pelas leis físicas que encerram o humano e sua
presumida intenção. Não obstante, ao igualar as características
materiais do espaço às do tempo—ao tornar o tempo e o espaço
isomórficos—, contesta Tim Maudlin, a Física e a Metafísica que sucedem
esse procedimento, cativadas pelas muitas demonstrações da relação
íntima entre as duas dimensões naturais, cometem o grave equívoco de não
reconhecer uma diferença fundamental entre os dois aspectos da
realidade: ao passo que o espaço é de fato isotrópico, o tempo, ao
contrário, é anisotrópico, dado que se vincula essencialmente a uma
direção ou sentido. A suspensão da natureza anisotrópica do tempo é um
método eficaz para sua medição, mas não para explicá-lo. Porque a
geometria é a ferramenta para representar fisicamente o tempo, e
geometricamente nunca há direção intrínseca, e sim extrínseca, Maudlin,
sobretudo em seu projeto Novas Fundações para a Geometria Física,
argumenta que uma ilustre fração de físicos concluíram que também não há
direção intrínseca para o tempo—conclusão apropriada por metafísicos.
Como consequência, ainda que a ideia de espaço-tempo seja um recurso
útil para precisar a extensão do tempo em qualquer quadro fixo da
Física, relativística ou não, as informações técnicas sobre a
causalidade material consolidadas pela estabilização daquilo que é
naturalmente instável não concernem à Metafísica, que, desse ponto de
vista, tem sérias dificuldades em justificar os porquês dessas mesmas
causas e implicações do tempo sobre a realidade. Essa reavaliação
demonstra que há, sim, uma diferença essencial entre tempo e espaço,
apesar da relação igualmente elementar entre as duas dimensões naturais.
Até mesmo de acordo com a relatividade física do espaço-tempo há uma
dinâmica de sucessão e ordem temporal. Temporaliza-se o espaço, e não o
contrário. E se o tempo passa, logo, há passado.
Outro
meio usual para explicar as razões escusas do tempo limita-o a um
resultado imediato da percepção individual humana—opinião compartilhada
por um número significativo de estudiosos da matéria. Depreende-se,
portanto, o significado do passado no momento em que simplesmente nos
lembramos intuitivamente de algo, tal qual Ludwig Wittgenstein afirma
nas Investigações Filosóficas. Por se tratar de um conjunto abstrato,
instável e inconsistente, de classe negativa em relação à existência,
uma parcela considerável de físicos e metafísicos alega que o tempo
passado se circunscreve em uma dimensão transcendental, inata à
consciência—esquivando-se discretamente do problema. Por conseguinte,
categorias de ordem temporal não possuiriam relevância natural; somente
psicológica. Ao kantismo peculiar dessas proposições, opõe-se o realismo
de Quentin Meillassoux: pois não haveria tempo, mudança ou movimento
antes da presença humana e sua hábil capacidade criativa? Dentre os
vários efeitos dessa pergunta, ela nos guia a avaliar com ceticismo a
noção de que o tempo é um dado antropológico exclusivo da consciência.
Afinal, se não houvesse tempo antes da humanidade, como explicar a
natureza transitiva e mesmo evolutiva da biologia, da geologia ou da
cosmologia, sem se associar a uma frágil posição negacionista e
anticientífica?
O
tempo e a história da alma do mundo se contam em éons, não em anos.
Além do mais, como adverte a crítica de Maudlin, ao tempo é sempre
conferida uma direção, um sentido, que, aliás, não é privado à
subjetividade—em termos abstratos, vem sempre teleologicamente do
passado à sua própria incerteza, o projeto, o futuro. Isto posto, o
tempo não é uma categoria isotrópica, tampouco uma realização tão
somente subjetiva de nossas capacidades mentais; ao contrário, tempo é o
nome dos sentidos naturais e existenciais, cujo princípio, não por
acaso, encontra-se nisto que cingi a relação do humano com a mencionada
fascinação pela incerteza singular de seu destino: o passado.
Aprende-se
com o passado, e importa a sua constatação entre humanos e não-humanos.
Para Rupert Sheldrake e Lee Smolin, é precisamente do tempo passado que
irrompem os hábitos da natureza e do universo, sempre em adaptação—as
leis físicas aprendem com a recursividade do seu próprio passado.
Igualmente do passado e da sua eventual repetição vem a nossa herança
biológica, os ritmos circadianos, a consistência dos padrões orgânicos
da função temporal do cérebro. Similarmente, dos passados que compõem
nossa memória emergem os sentidos intrínsecos e extrínsecos que orientam
a realidade subjetiva—algo agostiniano que, segundo Dean Buonomano, a
neurociência reafirma empiricamente e a seu modo. Enfim, do passado
deriva aquilo que, tal qual a Ciência Nova de Giambattista Vico,
paradoxalmente nos domina à medida que nos indetermina: a história, já
que o humano é agente e paciente de seu próprio tornar-se, sujeito e
objeto do tempo.
Conquanto
e apesar de a historiografia estar sempre enredada ao feixe das
interpretações humanas sobre sua autocompreensão particular,
diferentemente da escrita da história que, desse modo, varia
tematicamente conforme a cultura, os valores da intenção de certa
operação e situação historiográfica e espelha certa demanda ética da
ordem social, a história, de sua parte, não reclama a presença e a
agência do humano para existir. Havia tempo e havia história antes da
humanidade. Não fosse assim, tudo quanto ultrapassa a breve vida humana
seria de todo infamiliar, reservado ao silêncio.
Cueva d’El Castillo |
Augusto
de Carvalho é Doutor em História, com ênfase em Teoria da História,
pela UFMG. Desde 2017, faz parte do PPG em História da UFES, como
pesquisador e professor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário