Por óbvio, todo preconceito é abominável e qualquer debate é legítimo, mas qual foi a pesquisa científica que estabeleceu a existência de 47 gêneros? Luciano Trigo para a Gazeta do Povo:
Quando
alguém precisa de um médico, o objetivo é um só: ser atendido por um
bom profissional e ficar bem de saúde. Nunca, jamais, em momento algum,
uma pessoa normal vai escolher um médico com base em sua orientação
sexual.
A
orientação sexual de um médico não pode fazer, não deve fazer e não faz
qualquer diferença: quem precisa fazer uma cirurgia de risco, por
exemplo, fará o possível para ser operado pelo melhor profissional, pelo
mais competente, pelo mais preparado, independente do que ele faz na
cama.
Causa
estranheza, portanto, que o ENARE – Exame Nacional de Residência,
criado pelo Ministério da Educação (MEC) e realizado pela Empresa
Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh, uma empresa pública), tenha
inserido, no formulário de inscrição do processo seletivo em curso, o
campo “Gênero” (ao lado do campo “Sexo”).
Quais
são o sentido, o interesse e o objetivo de se conhecer a orientação
sexual dos candidatos a vagas em residência médica? Que direito a
organização do exame tem de exigir do candidato essa informação? E o que
será feito com ela?
O
ENARE oferece mais de 3.000 vagas de residência em 81 instituições do
país. Algum candidato será prejudicado ou beneficiado com base naquilo
que declarar no formulário? Esperemos que não.
Ninguém
pode ser discriminado em um exame por causa de sua orientação sexual, e
isso inclui, evidentemente, não apenas as minorias, mas também a
maioria. Nenhum candidato pode sofrer sanções por se declarar
heterossexual (ou "cis"), da mesma forma que nenhum candidato pode
sofrer sanções por se declarar homossexual.
Do
jeito que as coisas andam, desconfio que haverá candidatos declarando
uma orientação de gênero falsa, com medo de serem preteridos em uma
situação de empate nas notas, por exemplo, pelo fato de pertencerem à
maioria opressora. É o que acontece quando a ideologia se sobrepõe ao
mérito e ao desempenho.
Mas
o ENARE não se limitou a incluir o campo “Gênero” no formulário de
inscrição: ele inseriu, acreditem, 47 (quarenta e sete) opções para o
candidato se enquadrar – e a lista não é exaustiva, já que uma das
opções é “Nenhum/ outro”. Ou seja, candidatos a uma vaga em residência
médica estão sendo constrangidos a declarar sua orientação de gênero com
base nas seguintes categorias:
- Agênero
- Andrógino
- Bigênero
- Cis
- Cis feminino
- Cis masculino
- Cisgênero
- Cisgênero ferminino (sic)
- Cisgênero masculino
- Dois espíritos [confesso que não sei do que se trata]
- Genderqueer
- Gênero fluido
- Homem cis
- Homem cisgênero
- Homem para mulher [idem]
- Homem trans
- Homem trans *
- Homem transexual
- HPM [idem]
- Inconformismo de gênero
- Intersexo
- MPH [idem]
- Mulher cis
- Mulher cisgênero
- Mulher para homem [idem]
- Mulher trans
- Mulher trans *
- Mulher transexual
- Não-binário
- Neutro
- Outro nenhum
- Pangênero
- Pessoa trans
- Pessoa trans *
- Pessoa transexual
- Pessoa transgênero
- Questionamento de gênero
- Trans feminino
- Trans masculino
- Trans * feminino
- Trans * masculino
- Transexual
- Transexual feminino
- Transexual masculino
- Transgênero feminino
- Transgênero masculino
- Variação de gênero
Pela
confusa aleatoriedade da classificação, a lista lembra um texto famoso
de Jorge Luis Borges – citado por Michel Foucault na introdução de “As
palavras e as coisas”. Borges cita “uma certa enciclopédia chinesa”
segundo a qual “os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador,
b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos,
g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se
agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito
fino de pelo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha,
n) que de longe parecem moscas”.
Duvido,
aliás, que Foucault aprovasse a lista do ENARE: provavelmente ele
enxergaria nela uma ferramenta não tão sutil de controle e poder, ou uma
tática discursiva de “produção da verdade”. Mas parece mesmo que a
lista foi feita por um estagiário de Ciências Humanas que não leu (ou
não entendeu) Foucault.
Chamam
a atenção, por exemplo, a redundância e a sobreposição de categorias, a
falta de padronização (por exemplo, ninguém responde à pergunta “Qual o
seu gênero?” com “Inconformismo” ou “Questionamento”) e também a
controversa classificação de “trans” como uma opção de gênero (não seria
sexo?). É interessante constatar, ainda, que, ao lado da celebração da
diversidade no campo “gênero” do formulário, o campo “sexo” se limita a
“masculino” e feminino”. Precisamos problematizar isso...
Não
ria, leitor, porque o assunto é sério. O que está em curso é o processo
de imposição, por um grupo minoritário, de uma certa visão de mundo, de
uma certa ideologia (de gênero, no caso) que supostamente prega a
tolerância e a liberdade, mas que na prática está ceifando dia após dia a
liberdade de pensamento e de expressão, fazendo uso da intolerância e
da censura.
O
fato é que, de repente, a sociedade passou a ser obrigada a aceitar
calada que homens biológicos participem de competições esportivas como
mulheres, ou que homens biológicos frequentem banheiros femininos na
frente de crianças, porque quem ousa questionar isso é imediatamente
desqualificado como sendo de extrema direita, genocida e fascista. Não
existe mais direito à diferença de opinião.
Por
óbvio, todo preconceito é abominável e qualquer debate é legítimo, mas
qual foi o plebiscito ou decreto que estabeleceu a entrada em vigor de
normas que claramente contrariam os valores e a moral da imensa maioria
da população?
E
qual foi, aliás, a pesquisa científica que estabeleceu que existem 47
gêneros? Fosse um exame para um pós-pós-pós doutorado em Sociologia, ou
para uma "bolsa-sanduíche" de dois anos em Paris paga com dinheiro
público, o formulário seria algo bastante questionável – ainda que nem
um pouco surpreendente: já há muito tempo os cursos de Humanas estão
dominados pela narrativa progressista-lacradora, como demonstram esta
matéria da Gazeta de 2017 e este meu artigo sobre o evento comemorativo
dos 100 anos da UFRJ, em 2020.
(A verdade é que ninguém liga, porque, para o brasileiro comum, esse tipo de produção acadêmica não tem nenhuma relevância.)
Mas
na Saúde a conversa tem que ser outra. Da competência de um médico pode
depender a diferença entre a vida e a morte de um paciente. O que
importa na prática médica precisa ser, exclusivamente, a qualidade do
profissional, e esta tem ZERO relação com sua orientação sexual.
Que
um processo seletivo oficial exija do candidato a uma vaga em
residência médica a declaração de sua opção de gênero é uma sinalização
preocupante, preconceituosa e altamente suspeita. Se há cotas para
orientação de gênero, estas deveriam estar claras nas regras do edital.
Se não há, qual é o objetivo de saber a intimidade dos candidatos? Em
que isso afeta a sua competência como médicos?
Tempos muito estranhos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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