O enorme desafio do Banco Central será ainda maior se não houver apoio do lado fiscal. Artigo do ex-ministro Pedro Malan para o Estadão:
Esse
foi praticamente o título do artigo que publiquei neste espaço em 12 de
outubro de 2014, entre o primeiro e o segundo turno das eleições
daquele ano. A expressão havia sido usada em 2013 pela então presidente
Dilma Rousseff: “Nós podemos fazer o diabo quando é hora de eleição”. No
caso, busca por reeleição, no exercício do cargo. Como é sabido, seu
marqueteiro a reelegeu fazendo o diabo a quatro.
O
artigo concluía com observação sobre a herança que “(...) a presidente
Dilma vem construindo em seus discursos e debates de campanha, em
especial nos últimos dois meses, criando para si própria armadilhas
adicionais às que construiu com as políticas que implementou ao longo de
seus quatro anos. São estas que estão sob o escrutínio agora, quando a
presidente pede ao eleitorado mais quatro anos do mesmo, já que não
reconhece problemas e, portanto, não vê necessidade de mudanças para
enfrentá-los”.
Deu
no que deu, uma vitória de Pirro. A conta não tardou a chegar, mas
quando isso ocorreu a recessão já havia começado (para só terminar em
dezembro de 2016), a renda per capita caíra quase 9% e a taxa de
investimento, cerca de 30%, e o número de desempregados já superava 13
milhões. Em parte, legado do “fazendo o diabo, custe o que custar”.
O
comunicado divulgado ao final da reunião de cúpula dos chefes de Estado
da Europa de junho de 2012 dizia: “Nós reafirmamos nosso compromisso de
fazer o que for necessário para assegurar a estabilidade financeira na
Eurozona”. Menos de um mês depois, o presidente do Banco Central Europeu
(Mario Draghi), referindo-se aos custos políticos que alguns países
pagavam para refinanciar suas dívidas, afirmou: “O BCE está pronto a
fazer o que for necessário (wathever it takes) para preservar o euro”. E
emendou: “Acreditem em mim, isso será suficiente”. Esse recurso
retórico, que permitia antever a superação das conhecidas resistências
alemãs, foi o que moveu corações, mentes e nervos nos mercados. Mais
recentemente, já sob a covid-19, os países europeus acordaram a criação
de um fundo de € 750 bilhões para programas de investimentos nas
economias da região. Algo que dificilmente ocorreria, não fosse a
pandemia, a exigir o espírito do “whatever it takes” – expressão da qual
o fazendo o diabo, custe o que custar vem a ser versão mais rústica.
Nos
EUA, o mesmo espírito presidiu o enfrentamento da grande depressão, nos
anos 30 do século passado. Bem como da crise financeira global
sistêmica ao final de 2008, após a falência de Lehman Brothers, quando
foi adotado pacote de US$ 700 bilhões. É também esse espírito que pode
ser encontrado por trás dos ambiciosos programas de gastos públicos do
governo Biden, ainda em difícil negociação no Congresso daquele país:
mais de US$ 1 trilhão em infraestrutura, mais US$ 3 trilhões na área
social.
Permito-me
apontar característica central do sistema orçamentário dos EUA que
mereceria ser mais conhecida no Brasil. Lá, os dois grandes grupos de
despesas do governo são aquelas discricionárias e as mandatórias. Estas
últimas são determinadas por lei e seguem, ano após ano, em piloto
automático, a menos que o Congresso altere as leis em questão. Em 2019,
representavam 61,6% do total de gastos (os juros, 8,4%). As despesas
discricionárias (30% do total) exigem, a cada ano, aprovação pelo
Congresso, sem a qual devem ser encerradas. No Brasil, as despesas
obrigatórias representam atualmente cerca de 93% do total dos gastos
primários. Em razão de sua extraordinária rigidez e tamanho, não temos
por aqui espaço fiscal sequer comparável àquele existente nos EUA.
Em
junho deste ano, três respeitados economistas – Olivier Blanchard, Josh
Felman e Arvind Subramanian – publicaram artigo sob o título-pergunta O
novo consenso fiscal nas economias avançadas viaja para os mercados
emergentes? Propunham-se a responder a três perguntas: a situação
macroeconômica é a mesma? Existe mais incerteza sobre os resultados
fiscais? Existe mais incerteza sobre o diferencial entre taxa de juros e
a taxa de crescimento da economia? As respostas foram não, sim e sim,
após análise de dados relevantes de Índia, Brasil, Indonésia, África do
Sul e Turquia. Vale dizer, as situações não são as mesmas, e as duas
incertezas são muito maiores em mercados emergentes que em países mais
avançados. Estes podem se permitir um “whatever it takes” que mercados
emergentes dificilmente poderiam manter, exceto em situações de
extraordinária e temporária emergência.
O
presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, afirmou no mês
passado que o BC faria “o que for necessário” em termos de elevação da
taxa básica de juros, para trazer a inflação (que chegara a cerca de 10%
no acumulado de 12 meses) para uma trajetória de convergência para a
meta. Esse enorme desafio será ainda maior se não houver apoio do lado
fiscal; se tiver de lidar com outros “whatever it takes” da parte do
resto do governo, do chefe do Executivo e do Congresso – operando na
outra direção, “fazendo o diabo”, excessivamente preocupados desde agora
com o resultado das urnas em outubro de 2022.
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