Infrações a direitos devem ser punidas com rigor e o devido processo. Subordinar a Justiça à gritaria e à guerra cultural é transformá-la em sua caricatura. Fernando Schüler via revista Veja:
A
escritora e jornalista americana Anne Applebaum resolveu fazer uma
provocação, em um artigo recente, dizendo que vivemos tempos de um novo
puritanismo. Lendo o texto me veio à mente a recente decisão da Câmara
de Nova York de remover a estátua de Thomas Jefferson, autor intelectual
da declaração da independência dos Estados Unidos. Eu me lembrei também
da “polêmica”, com direito a protestos no Parlamento italiano, em torno
da escultura de Emanuele Stifano, na cidade de Sapri, acusada de
“sexualizar a mulher”, visto deixar em evidência as formas de seu corpo.
Me lembrei das esculturas de Rodin, dos óleos de Gauguin no Taiti.
Estariam em maus lençóis, hoje em dia, assim como toda “memória suja”,
diante de toda a nossa pureza.
As
histórias contadas por Applebaum não falam de estátuas, mas de pessoas.
O professor acusado de má conduta sexual por escrever sobre assédio;
outro por questionar se desigualdades tinham a ver com preconceito ou
exclusão socioeconômica. Histórias como a de Ian Buruma, editor do The
New York Review of Books, “cancelado” por publicar o texto de Jian
Ghomeshi, denunciado (e absolvido) por assédio sexual, e a escritora
nigeriana Chimamanda Adichie, quase cancelada por dizer que “mulheres
trans são mulheres trans”, sugerindo haver diferença entre a sua
experiência e a das “mulheres mulheres”.
Há
um lado sombrio nisso tudo. A pequena intolerância, a ação permanente
dos caçadores de bruxas, pedindo a cabeça de jornalistas pela
“interpretação errada” de um texto ou um título mal colocado. E há um
lado engraçado também. Vale assistir à série The Chair, uma sátira da
maluquice nos campi universitários americanos, com a história de um
professor cancelado a partir de uma montagem na qual aparece fazendo a
saudação nazista em sala de aula. Não havia saudação nazista nenhuma, e
tudo soa como brincadeira. Coisas que no mundo real, porém, não têm
graça nenhuma.
A
provocação de Applebaum foi observar que, depois de ter passado parte
da carreira estudando as ditaduras comunistas, se dera conta de que “bem
aqui nos Estados Unidos, é possível encontrar pessoas que perderam tudo
— empregos, dinheiro, amigos — sem violar nenhuma lei”. Apenas sob
acusação de “quebrar códigos sociais relacionados a raça, sexo,
comportamento ou humor”.
Há
quem veja nisso um exagero. Uma ampla pesquisa feita a esse respeito,
mapeando 426 casos de cancelamentos, no mundo acadêmico americano,
concluiu o seguinte: o problema existe e vem crescendo. O número de
casos documentados foi de 24, em 2015, para 113, em 2020 — 63% se
deveram a simples opiniões de professores, a maior parte envolvendo
temas de raça. A maioria dos atingidos é de professores brancos (85%),
nas áreas de humanas e a partir de movimentos progressistas.
Alguns
veem nisso um tipo de justiça. “As pessoas têm de assumir a
responsabilidade pelo que dizem”, li em um artigo. Achei curioso. Dizem o
que e quando, exatamente? Um tuíte de cinco anos atrás, num contexto
bastante específico? Uma ideia malposta, em vinte segundos, numa
entrevista ou conferência de uma hora? Na investigação de uma hipótese,
na academia, que se pode revelar falsa ou verdadeira? A simples
divergência em um tema sensível? Há quem goste desse tipo de justiça
tribal. Ou “justiça à moda Twitter”, sentenças de até 280 caracteres e
juízos feitos à base de likes e compartilhamentos.
O
ponto crucial aqui é: infrações a direitos devem ser punidas com rigor e
o devido processo. Subordinar a Justiça à gritaria e à guerra cultural é
transformá-la em sua caricatura. Sua negação, portanto. E um ótimo
álibi para o reacionarismo que se põe hoje na contramão da sociedade de
direitos.
O
resultado mais desastroso dos cancelamentos é a cultura do medo.
Converso com professores, Brasil afora, que são orientados a “cuidar com
o que falam”, em sala de aula, e com as leituras que indicam. Algumas
instituições asseguram o livre trânsito de ideias. Outras não. O medo e a
autocensura já se tornaram parte do jogo. A lógica é bastante clara.
Veja o que se passou com uma historiadora consagrada como Lilia
Schwarcz, quando arriscou escrever sobre um clipe da Beyoncé, ou Leandro
Narloch, quando resenhou o mais recente livro de Antonio Risério. Você
pode ser o próximo, está bem entendido?
A
cultura do cancelamento é a ponta do iceberg de uma época de
intolerância. Bari Weiss acha que devemos ter “coragem” para resistir às
hordas digitais. O dever de “pensar, em uma era de conformidade”. A
pergunta interessante é sobre quem, exatamente, deveria ter coragem para
resistir. A nova cultura da intolerância não é propriamente a ação de
uma minoria ruim e autoritária contra uma maioria de gente bacana e “sob
pressão”. É difícil medir essas coisas, mas o que vejo são jornalistas,
dirigentes de empresas e organizações gostando do jogo, desde que não
sejam eles mesmos as vítimas da vez. A chamada cultura woke, feita da
contínua reiteração do pequeno moralismo, parece ter fincado raízes bem
mais profundas. Pesquisa feita entre estudantes americanos mostrou que
69% concordam que “um professor deve ser denunciado se disser algo que
os alunos consideram ofensivo”. O número vai a 86% entre estudantes
“progressistas”, ou “liberais”, no vocabulário americano.
Talvez
estejamos vivendo um perverso resultado do que Moisés Naím chamou de “o
fim do poder”. Todos nós nos tornamos mais frágeis diante dos outros na
exata medida em que cada um recebeu uma dose a mais de poder. É da
igualdade, quem diria, tão bem-vinda que nasce o grande risco. Do fato
simples de que estamos cada vez mais conectados, mais grudados uns nos
outros. Que nos tornamos cada vez mais uma comunidade de vigilância
coletiva, ainda que continuemos a pensar, como sempre, de um jeito
radicalmente diferente uns dos outros. O mundo continua plural quanto
aos valores, ideias políticas e visões. Prosseguimos, felizmente, como
sociedades abertas. Mas nosso desejo de conformidade, de colocar os
demais em uma caixinha, cresceu como nunca.
Daí
que o medo, que um dia vinha do Estado, agora vem dos outros. Dos
outros que podem estar muito perto, no trabalho, na sala de aula, nos
seguidores do Twitter. Não importa. A própria ideia de perto e longe foi
borrada. Como diz Chimamanda, vivemos o tempo em que “uma história
viaja pelo mundo em minutos. Outras pessoas podem sequestrar sua
história, e sua versão se torna a história definidora sobre você”.
Ainda
me lembro da cena de um filme sobre a II Guerra que mostrava um guarda
nazista espancando um velho senhor judeu. A certo momento os demais
prisioneiros tomam coragem e encaram o soldado: “Por que você está
fazendo isso?”. Com desdém, ele responde: “Porque eu posso”. No fundo é
isso. A cada momento que podemos exercer nossa pequena intolerância,
podemos não fazer. A cada momento que podemos exigir que os outros sejam
“puros”, podemos lembrar que também nós somos impuros. Que a vida é
feita de imperfeição e ambiguidade, e talvez resida aí o seu maior
encanto.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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