Suspender liberdades civis, aumentar o poder policial, governar por decreto — não podemos deixar isso se tornar o modelo com o qual lidamos com crises no futuro. Tom Slater, da Spiked, para a Oeste:
Os
pubs estão abertos, os usuários do metrô estão semicobertos por
máscaras na melhor das hipóteses, as multidões se aglomeram sob o sol de
outubro. As coisas podem não ter voltado ao “normal” depois da
pandemia, com o governo do Reino Unido atualmente envolvido em várias
crises, uma parte, mas não tudo, de sua responsabilidade. Sem dúvida as
coisas parecem mais livres de novo, a sociedade voltou a ser um pouco
mais como era, depois de um ano e meio de lockdown.
A
maior parte das restrições da covid-19 na nossa vida cotidiana foi
retirada, tornando-se uma questão de orientação. Agora que as vacinas
acabaram com a relação entre infecção, hospitalização e morte, a
covid-19 deixou de colonizar nossa mente como ocorreu no passado. Nossas
ansiedades e liberdades civis não estão mais perigosamente por um fio
em um gráfico de televisão.
Mas
o alívio do retorno das nossas liberdades não deve nos cegar para como
os valores liberais foram prejudicados durante a pandemia. Supor que um
experimento sem precedentes, implementado por imposição, no controle de
doenças simplesmente surgiria e desapareceria sem deixar rastros seria
muita ingenuidade. Se deixarmos, o lockdown pode lançar uma vasta sombra
sobre as nossas liberdades civis.
O
relatório desta semana de alguns comitês de saúde e ciências nos faz
lembrar quão restrito é o debate sobre o lockdown. A única coisa que se
pode dizer é, claro, que deveríamos ter começado o isolamento antes.
Nunca somos convidados a questionar se ele foi legítimo, para início de
conversa.
No
começo de 2020, era inimaginável que uma nação ocidental confinasse
seus cidadãos como o Reino Unido e a maior parte dos outros países
fizeram. Quando o governo chinês estava trancafiando seu povo em casa, o
Ocidente observou horrorizado. Nem mesmo o famigerado estudo do
professor Neil Ferguson na Imperial College propôs um lockdown completo,
de tão impensável que isso era.
Mas
não se trata mais de algo impensável. Como Ferguson afirmou em uma
entrevista de dezembro, foi a decisão da Itália de seguir o
autoritarismo da China no lockdown que fez com que ele e seus colegas se
dessem conta de que “era possível fazer isso na Europa”. Nossos
lockdowns podem não ter sido tão severos quanto os dos chineses, mas
mesmo assim foram assombrosos.
Como
o Comitê de Direitos Humanos do Reino Unido afirmou, o lockdown
inaugurou “as restrições mais amplas às liberdades individuais, afetando
o maior número de pessoas desde as Regras de Defesa criadas durante a
Segunda Guerra Mundial”. Nas palavras do juiz da Suprema Corte Gary
Hickinbottom, esse foi, “possivelmente, o regime mais restritivo da vida
pública das pessoas e das empresas da história”.
Mais
do que isso, ao impedir as pessoas de sair de casa sem um “motivo
razoável”, o lockdown “inverteu a suposição comum de que as pessoas são
livres para fazer o que quiserem a menos que a lei proíba”. Foi um
regime a que o então secretário de saúde, Matt Hancock, se referiu como
“napoleônico”.
O
que começou como 11 páginas de regulamentos logo inflou para mais de
cem. O lockdown não só se tornou incrivelmente punitivo, em determinado
momento estabelecendo multas de 10 mil libras para festas em casa ou
mentir em formulários de viagem. Ele também era vago, difícil de
administrar e, em sua complexidade e seu inchaço cada vez maiores, quase
impossível de compreender, até mesmo para a polícia, os promotores
públicos e os políticos.
As
autoridades rotineiramente confundem as orientações de lockdown com a
lei. A polícia se envolveu em atos de autoritarismo que seriam
engraçados se não fossem tão aterrorizantes — de mandar drones atrás de
gente passeando com cachorros no Peak District a ameaçar inspecionar
sacolas de compras procurando sinais de algo ilícito.
Acusações
falsas não faltaram. Funcionários do Serviço de Procuradoria da Coroa
sugerem que um quinto das acusações a respeito das regras do lockdown
foi feito injustamente. Todas as acusações sobre a Lei do Coronavírus de
2020 foram anuladas. Aparentemente, a polícia confundiu essa lei
específica com as regulações de saúde pública que impuseram o lockdown.
Como
o advogado de direitos humanos Adam Wagner destacou, nada disso cai bem
para as dezenas de milhares de pessoas que foram multadas, em alguns
casos em milhares de libras, por supostamente desobedecerem às regras de
lockdown. “Não cabe recurso” para essas multas, Wagner comentou no
começo do ano. “A única maneira de contestá-las é não pagar e correr o
risco de ser processado.”
Existem
aqueles que dirão que isso tudo é lamentável, mas que o lockdown em si
foi necessário — que até mesmo sociedades liberais e democráticas às
vezes precisam impor medidas de emergência para evitar um dano
catastrófico. E essas pessoas estão absolutamente certas, em princípio.
Mas de fato não havia alternativas aqui? Colocar a nação em prisão
domiciliar — três vezes no decorrer de um ano — realmente era a única
opção?
Os
dados de mobilidade no auge da crise sugerem que era possível confiar
que o público fosse fazer a coisa certa. Quando o lockdown foi declarado
em 26 de março de 2020, o uso de transporte público tinha caído em
cerca de 70% e já estava caindo nas duas semanas anteriores. As pessoas
estavam se confinando antes de o lockdown ser imposto pelo governo.
Mas
nenhum debate sobre voluntarismo versus compulsão foi realizado de
fato. O lockdown foi de algo impensável em um país como a Inglaterra
para uma questão de bom senso óbvia. Nos dias que culminaram no
lockdown, a mídia estava basicamente exigindo que ele fosse decretado.
E, nas semanas depois disso, ela gastou boa parte de sua energia
constrangendo quem não seguiu as regras.
Mesmo
que você acredite que o lockdown precisava acontecer, que não havia
outra opção dada a situação em que estávamos, a maneira como a coisa foi
feita ainda deveria ser aterrorizante. No que diz respeito ao lockdown,
o governo atuou por decreto — leis foram feitas e desfeitas ao toque da
caneta do secretário de Saúde do Reino Unido, Matt Hancock, quando
aquelas mãos bobas não estavam ocupadas com outra coisa.
O
governo optou por impor o lockdown usando poderes descritos na Lei de
Saúde Pública, em vez de outra legislação criada para lidar com
emergências, porque isso permitiu que ele evitasse o escrutínio ou a
aprovação do Parlamento por pelo menos 28 dias. De sua parte, o
Parlamento britânico só deixou acontecer. Seus membros só guardaram seus
pertences e foram para casa.
Quase
não houve resistência a essa maneira como o governo conduziu as coisas.
O lado da esquerda liberal, habituada a retratar Boris Johnson como um
protofascista durante as guerras do Brexit, pareceu surpreendentemente
calmo quando o governo baniu os protestos e confinou todo mundo. (Era
quase como se não acreditassem no que estavam dizendo sobre ele desde o
começo.)
Em
2020, nos demos conta da fragilidade da defesa dos valores liberais
neste país, e como são poucos os defensores que esses valores têm na
política e em posições de influência. Quase não houve ceticismo, quase
não houve reação ao que estava acontecendo, quase nenhuma exigência por
responsabilização ou proporcionalidade em resposta a medidas tão
autoritárias e tantas vezes irracionais.
O
lockdown legitimou o autoritarismo aos olhos das elites.
Inquestionavelmente. Para começar, o plano de inverno previa governar
por decreto de novo se parecesse que as restrições precisassem ser
reintroduzidas. Também fiquei chocado que os esquerdistas e liberais
defensores do lockdown parecessem não ter feito a conexão entre a
proibição dos protestos durante a pandemia e a mais recente repressão
imposta pela secretária de Estado, Priti Patel, ao direito de protestar
no Projeto de Lei de Policiamento.
Não
sou uma daquelas pessoas que acreditam que outro confinamento está
prestes a acontecer. O legado do lockdown pode muito bem se fazer sentir
de modo mais sutil. Mas os poderes autoritários têm o hábito de
perdurar. As Regras de Defesa dos tempos da guerra não foram totalmente
derrubadas até 1964. E como lorde Sumption comentou, os poderes criados
nas Leis de Terrorismo de 2000 e 2006 foram reaproveitados algumas vezes
nos anos recentes.
Suspender
liberdades civis, aumentar o poder policial, governar por decreto — não
podemos deixar isso se tornar o modelo com o qual lidamos com crises,
reais ou exageradas, no futuro. Precisamos desesperadamente liberar o
debate sobre o lockdown das amarras idiotizantes em que está confinado
neste momento. E então precisamos defender que a liberdade não existe só
nos momentos bons.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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