Talvez a obra literária de Fernanda Montenegro possa ser descrita mais por aquilo que ela não é do que por aquilo que é – até porque eu inventei que ela tem uma obra, e na verdade ela nunca escreveu duas linhas além de dois livros de memória escritos em parceria com outras pessoas. Alexandre Soares Silva para a revista Crusoé:
Com
a notícia da entrada de Fernanda Montenegro para a Academia Brasileira
de Letras, começou a corrida das editoras brasileiras e portuguesas para
publicar as obras completas da lendária escritora carioca. São mais de
vinte romances, cinco coletâneas de contos e dois livros de poemas – um
poema épico escrito em decassílabos heroicos sobre a vida da atriz
Cacilda Becker (“As Cacildíadas”), e outro poema épico de extensão
semelhante sobre a vida do ator Procópio Ferreira (“As Procopíadas”).
Mas esses mais de vinte romances — como são esses livros? É um pouco difícil classificar a literatura de Fernanda Montenegro.
São talvez romances realistas, que descrevem a violência urbana à la
Rubem Fonseca? Nada disso. São então romances intimistas, que mostram as
infinitas matizes da psicologia dos personagens? De modo algum. São
objetos verbais, focados acima de tudo em estilo e em brincadeiras
linguísticas? Também não.
O
que é a literatura montenegrina, então? Talvez a obra literária de
Fernanda Montenegro possa ser descrita mais por aquilo que ela não é do
que por aquilo que é – até porque eu inventei que ela tem uma obra, e na
verdade ela nunca escreveu duas linhas além de dois livros de memória escritos em parceria com outras pessoas.
Não
importa. A Academia Brasileira de Letras está certa em não julgar um
autor das dimensões de Fernanda Montenegro pelo critério da mera
quantidade de obras. Se ter escrito cem obras não faz de ninguém um
grande autor, ter escrito zero obras não faz de ninguém um não grande
autor. O raciocínio da ABL está corretíssimo.
Um
critério melhor para julgar um autor é a sua influência, e nesse
sentido, pergunto, quantos grandes autores brasileiros não foram
influenciados por essa obra toda feita de silêncio e reflexão — por
aquilo que ela não diz? Quantos grandes escritores brasileiros nunca
escreveram uma linha, copiando o angustiado silêncio montenegrino?
Entre os autores influenciados por Fernanda Montenegro está a reclusa e misteriosa Maria Bethânia,
que também acaba de se tornar uma imortal — neste caso da Academia de
Letras da Bahia. Um reconhecimento mais do que justo: Maria Bethânia é,
como todos sabemos, romancista, contista e autora de centenas de sonetos
invisíveis e belíssimos.
Talvez
se possa compreender melhor as obras dessas duas monstras da literatura
se assumirmos que são seguidoras do movimento literário francês OULIPO,
cujos membros se impunham restrições rígidas para escrever obras
literárias: o escritor Georges Perec, por exemplo, escreveu um romance
inteiro sem a letra “e” (La Disparition,1969). Maria Bethânia deu um
passo além (que digo, deu vinte e cinco passos além) e escreveu sem usar
nenhuma vogal nem nenhuma consoante, se valendo apenas dos espaços em
branco dispostos na página com uma precisão absurda. Eis, por exemplo,
um dos melhores contos de Maria Bethânia, intitulado ” “:
(Obrigado a Maria Bethânia por permitir a reprodução deste conto na sua íntegra.)
Como
o leitor pode ver, a influência (em tom, estilo e temática) da obra de
Fernanda Montenegro neste conto de Maria Bethânia é evidente. Essa
influência está até no título – ” “, não custa lembrar, é também o nome
do quarto romance de Fernanda Montenegro, que foi traduzido para 23
línguas e não foi lido por milhões de pessoas no mundo todo.
É
assim tão absurdo classificar Fernanda Montenegro, Maria Bethânia, e
outros grandes autores brasileiros como Amelinha, Belchior, a famosa
Grávida de Sorocaba e o ator que fazia o Zé Bonitinho, como seguidores
brasileiros do movimento francês Oulipo? Penso que não.
Ao
não escrever uma palavra sequer e se limitar a fazer o papel de velha
sábia em filmes, Fernanda Montenegro tem influenciado centenas de
grandes escritores a também não escrever nenhuma palavra. Que influência
pode ser mais benéfica do que essa? O silêncio de gerações inteiras de
escritores nacionais tem um sabor distintamente montenegrino.
Quanto
a mim, sonho com a publicação das obras completas de Fernanda
Montenegro e Maria Bethânia. Penso em comprar todos os cinquenta e
tantos volumes que elas não escreveram, encaderná-los em couro e
oferecê-los de presente a Chico Buarque. Quem sabe assim ele não se
inspira nessas duas grandes mestras do silêncio para, ele também, deixar
de escrever um grande romance.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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