Os que hoje regozijam com a capitulação militar dos EUA ignoram que o novo teatro de operações se faz num mundo digital onde os EUA ditam, desde o início, as regras do jogo. Rodrigo Adão da Fonseca para o Observador:
Numa
época onde recorrentemente a ficção nos anuncia o curso da realidade,
tenho acompanhado na Netflix os mais recentes acontecimentos no
Afeganistão ao mesmo tempo que devoro os diversos episódios da 8.ª temporada de “Homeland”. “Homeland” (batizada, em português, de “Segurança Nacional”, com 8.3/10 no IMDb)
é uma saga criada pela Showtime, centrada na vida de uma operacional da
CIA, Claire Danes, que desde 2011 nos vai contando de uma forma
romanceada as diversas vicissitudes do mundo da espionagem. Com
passagens pelos distintos teatros de guerra onde os EUA têm marcado
presença, há russos e americanos, paquistaneses, Mossad e histórias
complexas passadas entre os corredores de Washington DC e vários teatros
de operações, na Síria, em Israel, no Iraque, em Moscovo, na Europa e,
obviamente, no Afeganistão. Ora, é num Afeganistão à procura da paz
entre americanos e talibãs que se desenrola a 8.ª temporada, com
detalhes de tal forma deliciosos que nos perguntamos se quem escreveu a
saga tem uma bola de cristal ou se, pelo contrário, na Casa Branca e no
Pentágono não haverá gente a ver filmes a mais, inspirando nas séries o
seu curso de ação. É que as complexidades, contradições, consequências
óbvias e clichés da saída dos americanos do Afeganistão que estamos a
assistir nos últimos dias estão lá, em “Homeland”, de uma forma tão bem
romanceada, que ficamos com a sensação de que hoje podemos ficar mais
informados e esclarecidos vendo séries de ficção, do que assistindo à
ficção que vários órgãos de comunicação social e as redes sociais nos
oferecem no acompanhamento de uma realidade que não se preocupam em
conhecer.
Sei
bem que ao arrancar um artigo de opinião com referências a séries do
mainstream comercial norte-americano, em vez de Lars Von Trier, estou a
prescindir voluntariamente das prerrogativas concedidas aos militantes
do humanismo caviar, os quais se podem dar ao luxo, até, de enquadrar no
pluralismo apologias estéticas do terrorismo islâmico. Foi, aliás,
ternurento ler tanta gente com responsabilidades públicas e na
comunicação social, civilizada e educadamente, a contestar, numa
linguagem cuidada, ao bom estilo do “respeitinho é muito bonito”, um
texto da advogada de Otelo, Carmo Afonso, que nos convida a um olhar parolo e romântico sobre os talibãs. Suporta-se em Robert Fisk, mas mais valia citar, também, Hans Christian Andersen: “o rei vai nu”, já que na mesma semana em que o jornal Público cedeu à censura
para alimentar os caprichos das redes de indignação geral, os mesmos
ogres que exigiram devorar Pedro Girão, apelaram ao “pluralismo” para
que pudéssemos constatar que, para os que detêm o monopólio do “bom
coração”, a humanidade, afinal, não tem valores fundamentais e a
dignidade humana e individual dependem, enfim, não de valores
universais, mas da adesão de cada comunidade em concreto, sendo
renunciáveis. O pluralismo deve, a meu ver, acomodar todos os inimigos
da liberdade, incluindo os que (nos seus textos) defendem o assassínio
da universalidade dos direitos fundamentais. Constato, em qualquer caso,
com pena, que um jornal com os pergaminhos do Expresso dá guarida a
quem, com elevada pretensão e aspiração de intelectualidade, pratica
terrorismo no uso do português, pondo a cada frase em causa a dignidade
da nossa língua.
As
reações de aversão aos talibãs que assistimos nos últimos dias, no seu
simplismo e nos seus clichés, são muito o fruto do mimetismo imposto
pelas redes sociais que convidam agressivamente à adesão da causa do
momento. Sendo epifanias vãs, sem qualquer tipo de consequência ou
sequência, elas são, em qualquer caso, expressão do enorme consenso
existente em relação à universalidade dos direitos fundamentais e à
importância que hoje damos à igualdade entre homens e mulheres, à recusa
da violência e consequente valorização da paz. A rejeição dos talibãs e
a repulsa em relação à tomada de poder por parte de fundamentalistas
islâmicos num canto perdido do planeta é, por isso, uma expressão clara
da recusa da violência e da valorização da universalidade de direitos
fundamentais, que vale a pena não minimizar ou relativizar. Não deixa de
ser sintomático, em qualquer caso, que os mesmos EUA que foram tão
censurados aquando do lançamento da sua jihad em favor da democratização
do mundo, iniciada após o 11 de Setembro, sejam hoje tão criticados por
darem fim a uma guerra longa e dispendiosa antes de estarem
consolidados e enraizados valores fundamentais na sociedade afegã.
A
saída do Afeganistão não é um momento irrelevante no curso da História,
sendo uma derradeira página que se vira e encerra o ciclo que se
iniciou após o 11 de Setembro, afirmando definitivamente uma nova era
nas relações internacionais. Depois de um conjunto de intervenções
falhadas, que oneraram significativamente os cofres da América e,
sobretudo, o seu prestígio e reputação no mundo, Biden dá sequência à
doutrina Trump e sinaliza o que há muito já podíamos assistir nas séries
de ficção: os EUA não vão permanecer indefinidamente num território
onde a maioria das questões que engajam no seu interesse nacional estão
cumpridas, em concreto, desmantelar a Al-Qaeda e outras redes
terroristas internacionais, e capturar Osama Bin Laden.
Desde
2002, altura em que comecei a estudar o tema com algum detalhe, que sou
crítico da influência neoconservadora nas diversas administrações
norte-americanas e do carácter messiânico que este grupo restrito de
pensadores tentou incutir na política externa dos EUA. Organizados desde
o final dos anos 50 em redor e a partir de diversos polos de reflexão e
acção, think tanks e centros universitários, atingiram com Clinton e
Bush o ponto máximo da sua influência junto dos centros de poder. Embora
associados historicamente a uma direita mais radical, importa recordar
que uma boa parte deste grupo transitou da extrema-esquerda do espectro
político, nunca abandonando os seus métodos e hardware originais. Irving
Kristol, considerado o Pai desta corrente, tinha por exemplo raízes
trotskistas, que se manifestaram no seu zelo ideológico, na sua
capacidade de organização e polémica e na sua visão internacionalista,
que marcaram a sua atuação até ao final dos seus dias. A forma como os
neoconservadores procuraram diluir no interesse americano a sua agenda
maniqueísta, que perceciona o mundo como uma luta permanente entre as
forças do Bem e do Mal, entre a Luz e as Trevas (que deu lugar, aliás, à
definição de um Eixo do Mal, após o 11 de Setembro, ou à divisão que
Bush efetuou na comunidade internacional com a famosa “with us or
against us“), numa lógica de guerra permanente, fortemente influenciada
numa vanguarda de superioridade moral, é definitivamente derrotada (pelo
menos no ciclo que agora se encerra), com o abandono militar do
Afeganistão.
Desenganem-se,
porém, os que veem nesta retirada um reforço do isolacionismo
norte-americano. Ao longo da História todas as grandes potências
tiveram, em permanência, tentações hegemónicas. E os EUA não vão deixar
de procurar condicionar todos os centros de poder que sejam nevrálgicos
para seus interesses. Nos últimos anos, e com a revolução digital, o
eixo mudou, porém, para outros espaços de atuação. A guerra passou a
usar, primeiro, muito mais veículos não tripulados e menos soluções
tradicionais e o exercício do poder faz-se, cada vez mais, na limitação
de acesso a contas bancárias e aos benefícios do mundo civilizado, no
combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, no
controlo da informação e nas plataformas de comunicação. Os que hoje
regozijam com a capitulação militar dos EUA, ignoram que o novo teatro
de operações se faz num ambiente onde a supremacia norte-americana é
evidente, num mundo digital onde os EUA ditam, desde o início, as regras
do jogo. Basta ter presente que, no sábado passado, enquanto os talibãs
se divertiam a tomar posições em Cabul, e por cá assistíamos ao
abandono atabalhoado das tropas americanas do terreno, o
The Washington Post reportava-nos que cinco websites dos talibãs,
essenciais até à data na propaganda do grupo terrorista, dentro e fora
do Afeganistão, haviam ficado na véspera, repentinamente, offline, o
mesmo tendo ocorrido, segundo o SITE Intelligence Group (que monitora a
atividade extremista online), a numerosos grupos de WhatsApp utilizados
pelos insurgentes. Não estando ainda claro quem suportou tal ação, fica
no ar a ideia de que tal terá resultado de uma iniciativa (por ação ou
omissão) da empresa californiana CloudFlare, que assegurava a proteção
dos mesmos, e da própria Facebook, que detém a plataforma WhatsApp. A
este título, vale
a pena recordar a entrevista exclusiva que Alejandro Mayorkas, líder do
Departamento de Segurança Interna dos EUA, deu ao Observador, no
passado dia 21 de Junho de 2021, quando se deslocou a Lisboa para
pressionar o nosso Governo e reunir com Eduardo Cabrita, na sequência da
decisão da CNPD de ordenar a suspensão do serviço da Cloudfare ao
Instituto Nacional de Estatística, para suporte do Censos 2021, onde
temas como partilha de dados em função dos interesses dos Estados,
atividade dos portos, emigração, cibersegurança e ciberterrorismo, foram
colocados no topo da agenda numa nova narrativa que, simbolicamente,
ganha definitivamente o palco do protagonismo, abrindo um livro que já
está a ser escrito há alguns anos, mas que só agora substitui o guião
usado no pós-11 de Setembro, que foi difícil de enterrar.

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