O militantismo é a escola literária dos escritores contemporâneos que abandonaram a vida interna para “mudar o mundo” por meio de palavras mal colocadas. Via Gazeta do Povo, a crônica de Paulo Polzonoff:
Ontem
mesmo, eu e um amigo conversávamos sobre o papel ridículo dos
escritores brasileiros na arena pública. Aquela busca que motivava
escritores tão diversos quanto Guimarães Rosa, Jorge Amado e Fernando
Sabino deu lugar a um espírito revolucionário cego e um ressentimento
cru, daqueles que se expressam por insultos sem quaisquer preocupações
estéticas ou pretensões de imortalidade.
Prova
disso é uma crônica que acabei de ler, publicada num dos maiores
jornais do país e composta com muito mais fel do que talento por alguém
que encarna como poucos o papel do escritor militante. É um, vá lá,
cronista (muitas aspas, por favor) que, semana após semana, tenta
desesperadamente compensar a falta de talento com posicionamentos
políticos sempre muito bem demarcados. Trata-se um panfleto ambulante,
pois.
Já
na primeira frase de um texto que reclama da pluralidade de ideias do
jornal e que não tem nenhuma vergonha de clamar por censura aos que
pensam diferente dele, Antônio Prata chama o procurador-geral Augusto
Aras de “alma sebosa”. E, se você levou um susto ao ler aqui o nome do
(aspas à décima potência) cronista, saiba que pensei muito antes de dar
nome aos bois. Se o faço, é por ver nobreza no reconhecimento de que o
outro existe. Ainda que, no caso de Prata, exista apenas para disseminar
ideias repugnantes usando, para tanto, o espaço público que herdou do
pai.
Além
de um clichê daqueles bem vagabundos, que você encontra em meio a
guimbas de cigarro e preservativos usados na sarjeta da linguagem, “alma
sebosa” é um insulto que, independentemente do objeto a que se destina,
expressa bem a presunção adolescente de um escritor que há muito
abdicou de contemplar a alma humana a fim de explorá-la para fins
criativos. Se vivemos mesmo uma guerra cultural, o aposto insultuoso
gratuitamente inserido na frase é o equivalente a atirar nas costas do
inimigo desarmado.
Como
e por que se apequenaram a tal ponto meus colegas escritores? Posso
pensar em consequências não-intencionais das leis de incentivo à
cultura, que deram origem ao escritor de edital – aquele sem talento nem
obra, mas que vive de frequentar feiras literárias, recebendo para isso
um cachê desproporcional à sua relevância. Posso pensar também em algo
mais simples, isto é, no desespero de perceber que sua obra é
desprezível numa sociedade que privilegia o escritor, não a escrita.
Mas
pensar essas coisas é procurar causas externas para uma crise que é
íntima. Algo que está claro no estilo panfletário e no uso de expressões
dogmáticas, deterministas e sentenciadoras que marcam essa escola
literária que chamarei aqui de militantismo. Já há algumas décadas, os
homens que alcançaram a condição de escritor profissional, sejam eles os
escritores de edital já mencionados ou então os panfletários pagos não
para contemplar, e sim para mudar o mundo, perderam o hábito simples,
mas muito instrutivo, de se olharem no espelho.
O
que, aqui, soa como um paradoxo simbólico, uma vez que a marca do
narcisista é a obsessão pela própria imagem – que acaba por afogá-lo.
Quando Prata sugere que, ao contrário de seus colegas “de direita”, está
“do lado certo da história” (e fico pasmo ao perceber que alguém é
capaz de escrever algo assim sem nenhum constrangimento), ele está
vivendo para o mundo e esperando receber deste mundo uma reação
positiva. O espelho, portanto, reflete uma imagem falsa, coletiva,
predatória. Do tipo que sai à caça e devora almas – sejam elas sebosas
ou não.
O
que é compreensível – para não dizer tentador – no momento em que
leitores, obcecados pela política partidária, esse pontinho
insignificante na Eternidade, reclamam quando se propõe algum tipo de
introspecção. Só a realidade externa, essa falseada por inúmeras camadas
de interpretação, parece importar hoje em dia. Aqui convém citar
Millôr: e na alminha, não vai nada?
Se
Augusto Aras – personagem dessa realidade externa absolutamente pequena
e transitória – tem ou não a alma sebosa é algo que não importaria a um
escritor digno. Assim como não importaria ao verdadeiro artista se
dizer “do lado certo da história”. O que me leva, já nos estertores
deste texto, a me perguntar que outros critérios que não a capacidade de
escrever esses panfletos que atiçam as massas levamos em conta na hora
de chamarmos ao palco os atores deste debate insano.
Mas
esse é um assunto para outro texto que provavelmente não será escrito.
Porque, a despeito de uma ou outra reprimenda aqui e ali, ainda não
perdi meu norte e estou mais preocupado com a imagem necessariamente
falha que vejo no espelho. Todo. Santo. Dia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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