A misericórdia é essencial, ainda que desprezada pelo ethos do coaching. Luiz Felipe Pondé para a FSP:
Todos
precisamos de alguém que um dia tenha piedade de nós. A ideia, presente
em orações na tradição abraâmica, fala de uma necessidade profunda de
encontramos o perdão como forma de libertação. A misericórdia é um pilar
essencial, apesar de menosprezada pelas modas do mundo, para a
experiência possível da beleza na vida. É justamente esta a beleza da
qual nos fala Dostoiévski (1823-1881) quando ele diz que a beleza salvará o mundo.
Sei bem que ideias como essa estão longe do ethos do coaching,
que assola nosso mundo, típico da assertividade boçal como modo de
estar diante dos outros. Uma forma sutil de felicidade nasce ali, onde
nos reconhecemos como seres assolados pela infelicidade e pelo fracasso,
seja ele moral, econômico ou mesmo fisiológico, parada final da
condição humana.
É
longa a linhagem de autores que transitam por esse vale de sombras.
Entre eles, um dos maiores na descrição dessa travessia, foi o francês Victor Hugo (1802-1885), na sua famosa obra “Os Miseráveis”.
O título, preciso, encontra sustentação seja na fenomenologia da
miséria do capitalismo selvagem —aquele mesmo que agora se traveste de
ovelha pelas mãos da publicidade— ao longo do século 19 europeu, seja na
experiência individual de alguém que se reconhece mergulhado nessa miséria exterior e interior.
A
história narra a saga de Jean Valjean, miserável, ladrão, embrutecido,
que encontra, inesperadamente, o perdão pelas mãos de um bispo.
Mesmo
tendo sido tratado bem pelo bispo —janta e dorme em sua casa—, Valjean
rouba uma prataria da sua casa na manhã seguinte e foge. Na sequência,
policiais o prendem na rua, por desconfiar que um miserável como ele não
poderia portar objetos de tal valor. Valjean
mente dizendo que o bispo havia dado a ele, de presente, aquela
prataria. Os policiais, então, o levam a casa do bispo para verificar
sua história improvável. A cena seguinte se constituirá no início da
grande transformação moral pela qual passará o personagem Valjean.
O
padre confirmará a narrativa mentirosa de Valjean, dizendo que, sim,
havia dado aquela prataria de presente para o ladrão. Além disso, antes
de sua partida, como homem livre, o bispo “lembra” a Valjean que ele
havia esquecido os castiçais que ele também lhe tinha dado de presente.
Com
aqueles castiçais, como diz o próprio bispo, Valjean recupera sua
liberdade diante do mal que o assolava. Não só diante da possibilidade,
de novo, de ir para prisão, mas também da sua vida sem esperança. O
personagem central de “Os Miseráveis” se transformará, assim, numa luz
no mundo, assim como as velas que são sustentadas por castiçais.
O
outro protagonista da história, o obsessivo policial Javert, que
persegue Valjean, desconfiando dele o tempo todo —Valjean assume uma
nova vida e se transforma num homem rico e honesto— fará o contraponto,
representando a diferença entre a justiça e o perdão, essencial para a
economia moral do drama.
Javert
não entende o que é a misericórdia porque está preso na noção de
simetria, típica da justiça: criminosos como Valjean não merecem o
perdão. Entretanto, a misericórdia nada tem a ver a ideia de justiça,
pois está acima dela. Não que a justiça não seja necessária ao mundo.
Mas, enquanto a justiça, na sua concepção original grega, significa “dar
aquilo que cada um merece”, o perdão está distante da ideia de
merecimento enquanto tal. É, justamente, o não merecimento que encanta
na misericórdia. Este traço de caráter está no centro da personalidade
do personagem histórico conhecido como Jesus Cristo.
Dito
de uma forma contemporânea e banal, a misericórdia, o perdão ou a
piedade, nada tem a ver com a ordem meritocrática. Não transita pela
economia dos méritos, como diria Santo Agostinho
(354-430). A felicidade que nasce do encontro com a piedade é de uma
ordem estranha à lógica dos resultados e das métricas. Ela pertence à
família dos milagres.
O
vínculo entre misericórdia e felicidade é uma das maiores ausências
hoje na literatura de baixa qualidade sobre felicidade a disposição dos
infelizes.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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