Livro do jornalista Witold Szablowski descreve a relação de cinco autocratas do século XX com seus cozinheiros, que trabalhavam para satisfazer os caprichos dos tiranos sob a ameaça de perder a vida. Òscar Broc para o El País:
Uganda.
Idi Amin corre por seu palácio com a jugular latejando e o punho
erguido: “Se acontecer alguma coisa com ele, eu mato todos vocês!!!”. É
um dos ditadores africanos mais ferozes da história, e está ameaçando
diretamente aos seus cozinheiros. O filho do tirano, um glutão
irremediável, exagerou no pilaf da sobremesa, uma espécie de arroz doce,
e por isso está sentindo uma forte dor de barriga. A paranoia do
envenenamento do seu filho leva Idi Amin à loucura.
Em
uma tentativa desesperada de salvar a própria pele, Otonde Odera, o
chef de confiança do ditador, passa a mão no garoto e o leva correndo ao
médico. Arrisca tudo; sabe que não tem mais nada a perder. O doutor
pressiona o abdômen inflamado do jovem paciente. Silêncio. Suor frio. De
repente, o filho de Amin solta um peido ensurdecedor que alivia seu
incômodo e, de passagem, salva a vida de toda a equipe de cozinha. Sim,
salvos por um pum.
Essa
é uma das muitas histórias que Witold Szablowski narra no livro Jak
nakarmić dyktatora (“como alimentar um ditador”, inédito no Brasil).
Para escrevê-lo, o jornalista polonês percorreu o planeta entrevistando
os cozinheiros de alguns dos ditadores mais brutais do século XX,
ninguém menos do que Saddam Hussein, Pol Pot, Idi Amin, Enver Hoxha e Fidel Castro.
Um timaço de opressores, filtrado pelo prisma de seus chefs pessoais,
os que viram, alimentaram e suportaram os monstros em sua mais estrita
intimidade.
Alguns
relutaram. Abu Ali, o cozinheiro de Saddam, por exemplo, demorou três
anos para dar a entrevista. “O mais complicado foi encontrar estes chefs
e convencê-los a falarem. Todos tinham sobrevivido cozinhando para
tiranos porque souberam manter a boca fechada durante anos e décadas.
Superado esse entrave, foi tudo mais fácil, e, surpreendentemente,
revelaram-se como magníficos contadores de histórias”, afirma
Szablowski. Talvez por isso, o jornalista cede a maior parte do
protagonismo a esses cozinheiros ―alguns mais lúcidos que outros, por
razões óbvias de idade―e só inclui a sua própria voz quando é preciso
situar o leitor ou descrever o contexto histórico e social em que os
opressores agiram.
Fogões na corda-bamba
Eis uma conclusão a posteriori: era preferível trabalhar a poucos metros do reator de Chernobyl
do que ser o cozinheiro pessoal de um ditador. Os chefs deste livro são
sobreviventes e, apesar de terem gozado de muitos privilégios, passaram
vários anos submetidos a uma pressão inimaginável, em permanente
equilíbrio sobre uma impossível corda-bamba: por um lado, foram as
pessoas de maior confiança dos ditadores, manipularam sua comida, e a
saúde dos chefes de Estado dependia em grande parte deles. Por outro,
viveram sob a constante ameaça de serem executados: um ingrediente
equivocado, uma indigestão ou uma suspeita infundada podia resultar em
uma morte certa (e com toda probabilidade horrível). Curiosamente,
alguns deles, como o cozinheiro de Saddam Hussein, ainda professam uma
lealdade cega ao ditador.
“Era
uma situação estranha. Estes chefs não passavam fome nem penúrias
enquanto seu povo morria de fome, mas ao mesmo tempo podiam ser
executados por exagerarem no sal”, afirma Szablowski. O nível de
sacrifício, lealdade e entrega também era extremo: não tinham horários,
estavam sempre submetidos às decisões de seus superiores e, se fosse
necessário, se deslocavam com os ditadores a esconderijos e inclusive
zonas de conflito. “Estes chefs pagaram um alto preço. A cozinheira de
Pol Pot morreu no ano passado de câncer de estômago, o que não deixa de
ser simbólico, dado o esforço que fez por esconder a verdade sobre o que
Pol Pot fez e por enganar a si mesma. Por outro lado, há cozinheiros
que sofrem quadros de estresse pós-traumático, como os soldados que
estão na frente de combate”, comenta Szablowski.
Além
de histórias curiosas e receitas ―que também há― o relato sobre as
interações entre cozinheiros e ditadores gera os momentos mais
interessantes do livro. Tece-se uma relação de
dependência/confiança/desconfiança/terror/admiração que causa vertigem.
“É uma relação estranha. O chef é como a mãe do ditador, quem o
alimenta, quem está sempre por lá. E quando falamos de relações longas,
como a do cozinheiro Erasmo Hernández com Fidel Castro, que estiveram
juntos por 50 anos, o chef desenvolve uma admiração e amizade, embora
nunca seja íntima, pois um ditador nunca permitiria isso. Inclusive
alguns se apaixonam pelo ditador, como a jovem Moeun de Pol Pot. Na
verdade, os ditadores são bons psicólogos e entendem que precisam tratar
bem seus cozinheiros se quiserem comer bem”, afirma Szablowski.
Erasmo Hernández, o chef de Fidel Castro. |
A dieta do tirano
Outra
conclusão pós-leitura: os ditadores comiam como imperadores, enquanto
seu povo caçava ratos e outros bichos para se alimentar. Nada de novo no
horizonte. Mas o que comiam? Saddam Hussein amava a sopa de peixe de
Tikrit, com peixe gorduroso e legumes, e não fazia cara feia para um
kafta (basicamente, um espetinho de carne moída de vaca e cordeiro). A
salada de mamão de Pol Pot tinha que ser no estilo tailandês, ou ele nem
provava. Fidel Castro era louco por massa e, segundo conta o livro,
fazia questão de cozinhar pessoalmente seu espaguete. Amava sopa de
legumes e de vez em quando se deixava tentar por um cordeiro com mel ou
leite de coco. Outra paixão do ditador cubano eram os lácteos e,
sobretudo, os sorvetes: podia engolir baldes inteiros. Foi ele, aliás,
quem ordenou a construção da conhecida sorveteria Coppelia, em Havana.
Uma
das dietas mais inquietantes era a do tirano albanês Enver Hoxha. O
líder comunista tinha sofrido um grave enfarte, era diabético e
precisava seguir uma dieta rigorosa, sem jamais ultrapassar 1.200
calorias por dia. Com tão escassa margem e a pressão constante dos
médicos, seu cozinheiro, cuja identidade não é revelada, tinha que fazer
malabarismos para alimentar aquele sujeito hiperativo, de um metro e
oitenta, sem que passasse fome. Se a frágil saúde de Hoxha o traísse e o
ditador morresse, seu chef sabia que o próximo a ir para baixo da terra
seria ele.
O
caso de Enver Hoxha é também um fascinante relato sobre como a comida
pode influenciar o estado de ânimo das pessoas, inclusive ditadores, por
mais animalescos que sejam. O albanês foi um psicopata com uma sinistra
conta de cadáveres no armário, entre eles seus colegas de colégio e seu
cunhado. Mas o cozinheiro de Hoxha soube moderar o tirano em seus
momentos de cólera com deliciosas sobremesas que elaborava com adoçante
artificial. Muitas vidas inocentes foram salvas graças a esse herói
anônimo que mitigou os instintos assassinos do genocida com sua destreza
confeiteira.
“A
vida dele com certeza foi salva. Hoxha chegou ao poder matando todos os
seus amigos, inclusive tinha matado o chef anterior, que foi acusado de
atentar contra sua vida. O cozinheiro que entrevistei no livro sabia
que se não fizesse algo não tardaria a seguir o mesmo caminho. Então
precisou aprender a cozinhar a comida favorita de Hoxha, do jeito que o
ditador mais gostava. Virou um cozinheiro insubstituível para salvar não
só a vida de muitos inocentes, mas também a sua própria. É uma história
incrível”, diz Szablowski.
O jornalista Witold Zsablowski |
Mão na massa
Ao
ler Como alimentar um ditador, impressiona ver os delírios aos quais
são submetidos os serviçais delirantes de um opressor. Se Saddam não
gostasse de um jantar, obrigava os cozinheiros a pagarem do seu bolso os
ingredientes utilizados ―embora todos os anos desse um carro de luxo a
todos eles. O cozinheiro de Idi Amin recebeu um substancioso aumento
salarial no dia em que uns ingleses disseram ao ditador, anglófilo
reconhecido, que seu chef cozinhava como um branco. O cozinheiro de
Hoxha compartilhou mesa com o genocida e sua família em uma exclusiva
ceia de Réveillon, graças às delícias do seu sheqerpare, uma bolacha
tradicional albanesa que encantou o dirigente.
Através
destas histórias e receitas, Witold Szablowski não só se pergunta o que
come um ditador, mas também como diabos alguém alimenta um tirano sem
morrer por causa disso. Como esses cozinheiros se viraram para atender
aos caprichos ou estritas necessidades culinárias dos autocratas em
situações de enorme pressão. Como chegaram até lá. Como, através da
comida, viraram confidentes dos homens mais temidos de sua geração: o
duro trabalho de alimentar o terror e viver para contar.
blog orlando tambosi
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