Ninguém hesita em condenar o tráfico de drogas e o fanatismo religioso, mas as mesmas pessoas que condenam traficantes e fanáticos se entregam espontaneamente ao vício do ódio político. Luciano Trigo via Gazeta do Povo:
Embora
exista muita gente má no Brasil, resisto a acreditar que é por maldade
que tantas pessoas aderem incondicionalmente ao discurso de ódio
político que só enxerga no adversário um inimigo a destruir, isto é, que
nega o próprio direito de existência a quem pensa (ou vota) de forma
diferente. Mesmo quando se trata de um amigo ou parente, o outro perde
sua humanidade no momento em que nos contraria, e a partir daí passamos a
odiá-lo com todas as nossas forças. Isso não pode ser considerado algo
normal.
Pelo
andar da carruagem, estamos caminhando para uma campanha eleitoral que
será marcada pelo sangue nos olhos e pela faca entre os dentes; para um
segundo turno sangrento no qual metade dos eleitores odiará e desprezará
a outra metade, sem qualquer possibilidade de convívio, muito menos de
diálogo civilizado. Desnecessário dizer, esse ódio que divide e envenena
os brasileiros sairá reforçado das eleições, seja qual for o resultado,
prorrogando o clima de guerra por mais quatro anos.
E
isso na melhor das hipóteses, isto é, estou partindo da premissa de que
a corda do sistema democrático resistirá, por mais que seja esticada de
todos os lados. Quando a grande mídia e o Poder Judiciário se unem
abertamente para desestabilizar e sabotar um governo, e quando este
governo ameaça reagir “fora das quatro linhas da Constituição”, cria-se
uma preocupante atmosfera de namoro com a ruptura institucional. Nada de
bom pode vir daí.
Também
estou partindo da premissa de que em 2022 os candidatos serão mesmo
Bolsonaro e Lula, o que não é 100% líquido e certo. Muita coisa ainda
pode acontecer, para o bem e para o mal. No Brasil até o passado é
imprevisível, que dirá o futuro: basta lembrar que, até outro dia, a
Lava-Jato era um marco histórico no combate à corrupção e Sérgio Moro
era um herói, um motivo de orgulho para os brasileiros – e parece que
estão reescrevendo a História, à maneira do exaustivamente citado (mas
nem sempre compreendido) romance de George Orwell “1984”.
Como
eu dizia, não pode ser por maldade, nem por burrice ou desonestidade,
que tanta gente comum compra o discurso do ódio e aceita participar
desse roteiro de tragédia anunciada, de um lado ou de outro. Prefiro
acreditar que esse fenômeno decorre da pandemia de polarização que tomou
conta da sociedade brasileira nas últimas duas décadas. Mas, embora a
metáfora da pandemia seja tentadora em tempos de Covid-19, parece mais
adequado comparar o ódio político a uma droga que a um vírus. Uma droga
pesada.
Ninguém
hesita em condenar o tráfico de drogas e o fanatismo religioso, mas as
mesmas pessoas que condenam traficantes e fanáticos se entregam
espontaneamente ao vício do ódio político
Primeiro,
o ódio político dá um sentido para a vida das pessoas. O prazer de
apontar o dedo, de ofender, de agredir, de desqualificar, de perseguir,
de massacrar e esfolar o outro constitui, frequentemente, uma
compensação psicológica altamente viciante para existências banais, sem
grande acontecimentos ou emoções. Odiar gera descargas de adrenalina e
sensações de prazer com alto poder de criar dependência psíquica.
Segundo,
o ódio político dá às pessoas um sentimento de pertencimento e de
diluição no grupo, outra característica altamente viciante da droga.
Abrir mão da própria identidade e da independência como indivíduo para
fazer parte da massa indiferenciada de uma comunidade de ódio é
altamente prazeroso, porque liberta as pessoas de sua responsabilidade.
No
grupo, ela não é responsável por seus fracassos, ao contrário: o grupo
lhe diz tudo que ruim que lhe acontece é culpa do adversário, a quem se
tem o dever de odiar. Não convém subestimar a força do ressentimento, e a
História demonstra que a tentação de se perder na massa pode ter
consequências trágicas - como demonstrou Elias Canetti no ensaio "Massa e
poder".
Terceiro,
por seu maniqueísmo, o ódio político torna as coisas mais fáceis de
entender, sem exigir do indivíduo qualquer reflexão crítica, qualquer
ponderação, qualquer conflito interior. A realidade passa a existir em
preto e branco: a minha comunidade de ódio é 100% boa, tudo o que o meu
candidato faz é bom, e tudo o que o candidato da outra comunidade de
ódio faz é perverso e ruim. Basta aderir para receber uma carteirinha de
virtuoso e adquirir o direito de praticar o "ódio do bem".
Especialmente
para quem não teve acesso a uma educação de qualidade – aí incluídos
muitos formadores de opinião, “intelectuais”, professores e muita gente
com diploma universitário – entender o mundo dessa maneira dá uma
sensação duplamente recompensadora e viciante: eu me sinto muito
inteligente (enquanto todos os que estão do outro lado são burros) e, o
que e mais importante, eu me sinto moralmente superior a quem ousa
discordar da minha visão de mundo. Esse prazer não tem preço.
O
ódio político pode ser comparado também ao fanatismo religioso, que
leva pessoas de forma geral honestas a idolatrar seu líder e a fechar os
olhos para todos os seus erros e imperfeições. Como o ódio político, o
fanatismo religioso age de forma similar a uma droga: um e outro
aumentam, por vias tortas, a sensação de prazer, satisfação e
felicidade, aumentando a produção de serotonina, dopamina e outros
neurotransmissores pelo cérebro, gerando dependência e crises de
abstinência.
Ninguém
hesita em condenar o tráfico de drogas e o fanatismo religioso, mas as
mesmas pessoas que condenam traficantes e fanáticos se entregam
espontaneamente ao vício do ódio político. Por isso estamos nos
tornando, cada vez mais, um país de viciados: o ódio político é uma
droga pesada.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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