As imagens que chegam do Afeganistão não mostram apenas pessoas desesperadas. Elas escancaram uma absoluta incapacidade de governar. Ana Paula Henkel para a Oeste:
Para
quem me acompanha aqui em Oeste, não é difícil achar referências
olímpicas em meus artigos, desde as recordações de infância até meus
anos como atleta profissional. Entre elas, a mais antiga talvez seja a
de quando eu tinha apenas 8 anos. Moscou, em 1980, foi marcante não
apenas pelo inesquecível mascote Misha, um simpático ursinho que comoveu
o mundo com suas lágrimas na cerimônia de despedida, mas também pelo
boicote dos Estados Unidos aos Jogos. Quatro anos depois, em 1984, foi a
vez de os soviéticos darem o troco, não comparecendo ao evento com sede
aqui em Los Angeles.
O
que isso tem a ver com o tema central desse artigo, o Afeganistão?
Tudo. Em 1980, os Estados Unidos lideraram o boicote aos Jogos Olímpicos
em Moscou para protestar exatamente contra a invasão soviética do
Afeganistão no fim de 1979. No total, 65 nações se recusaram a
participar dos Jogos, enquanto 80 países mandaram atletas para competir.
Quando
a União Soviética invadiu o Afeganistão, em 27 de dezembro de 1979, a
comunidade internacional condenou a ação. Os conselheiros do líder
soviético Leonid Brejnev afirmaram que a intervenção seria rápida e
incontestável e sugeriram que o presidente dos EUA, Jimmy Carter, estava
muito envolvido na crise de reféns em curso no Irã para responder à
situação em Cabul (vale a pena assistir ao filme Argo, de 2012). Na
realidade, a intervenção soviética no Afeganistão levou a um conflito
prolongado na Ásia Central, e Carter reagiu com uma série de medidas
destinadas a pressionar os soviéticos a se retirarem. Essas medidas
incluíram a ameaça de um embargo aos grãos, a retirada do acordo Salt II
e um possível boicote aos Jogos Olímpicos de Verão de 1980, programados
para ter sede em Moscou.
Os
governos ocidentais consideraram pela primeira vez a ideia de boicotar
as Olimpíadas de Moscou em resposta à situação no Afeganistão na reunião
de representantes da Otan de 20 de dezembro de 1979 — embora naquela
época muitos governos não estivessem interessados na proposta. A ideia
ganhou popularidade quando o dissidente russo Andrei Sakharov pediu um
boicote no início de 1980. Em 14 de janeiro, a administração Carter
juntou-se a Sakharov estabelecendo um prazo no qual a União Soviética
deveria se retirar do Afeganistão ou enfrentaria consequências,
incluindo um boicote internacional aos Jogos. Quando o prazo expirou, um
mês depois, Carter pressionou os aliados dos EUA a retirarem suas
equipes olímpicas. Não adiantou. A guerra soviético-afegã continuou até
1989.
Ao
longo de sua história, os afegãos passaram por várias invasões
estrangeiras, guerra civil, insurgência e um período anterior de
opressão do Talibã. Há muitas vertentes para serem exploradas desde o
golpe comunista em 1978 até os dias de hoje. Quando o assunto é o
Afeganistão, seria impossível falar de todo o contexto geopolítico que
envolve o país e a região em apenas um artigo. O que vimos nesta semana,
a retirada das tropas norte-americanas do país junto com o colapso do
governo afegão e a retomada do poder pelo Talibã, apenas inclui mais um
capítulo em décadas de instabilidade e conflitos.
Desde
a eleição presidencial nos EUA, em novembro de 2020, muitos analistas e
historiadores apontavam para onde a América poderia ir com a eleição de
Joe Biden. Não foi diferente aqui em Oeste. Biden na Casa Branca seria
um desastre anunciado, como previram diversos artigos aqui publicados. O
que seria difícil imaginar é a rapidez com a qual o presidente
democrata marcou a maior potência do mundo com um dos maiores fiascos da
história.
O
presidente que não deu as caras durante a corrida presidencial mais
importante do Ocidente, que venceu uma eleição ainda envolta em
mistérios, perguntas sem respostas e uma quantidade inacreditável de
indícios de fraude, que vem assinando ordens executivas draconianas como
nenhuma outra caneta no Salão Oval, que vem encampando uma toada de
medidas tirânicas dentro da pandemia que sufocam o bem mais precioso
para o americano: a liberdade. Esse homem agora mostra toda a sua
incompetência no cenário internacional. O Afeganistão apenas expõe, da
maneira mais explícita possível, todas as fraquezas de um presidente.
Meu
pai, figura sempre presente na minha vida e agora também em meus
artigos, sempre dizia: “Filha, não é apenas o que você fala, mas como
você entrega. Não perca um excelente argumento entregando-o de maneira
porca”. Poderia ser simplista demais de minha parte trazer um velho
conselho para retratar uma questão geopolítica que envolve militares e a
maior potência do mundo, mas é exatamente isso. É fato que a grande
maioria dos cidadãos americanos não quer mais saber de guerras, há
problemas demais para serem resolvidos domesticamente, e a própria
administração de Donald Trump já havia anunciado a retirada — de maneira
progressiva — das tropas americanas do Afeganistão. O plano,
minuciosamente desenhado pelos generais da administração anterior — que
teve um dos melhores secretários de Defesa dos últimos tempos, Mike
Pompeo —, era trazer os soldados para casa e acabar como uma ocupação de
20 anos, iniciada logo após os ataques às Torres Gêmeas, em 11 de
setembro de 2001.
Como
diria o saudoso professor Monteiro, não foi apenas o que foi feito, mas
como tudo foi executado. Joe Biden, que caminhava a passos largos nas
políticas domésticas para se tornar a versão atual de Jimmy Carter,
solidificou a teoria nesta semana. Para Biden e sua equipe, as analogias
com o presidente Carter e a crise dos reféns iranianos podem ser ainda
mais perturbadoras do que os paralelos óbvios com a queda de Saigon, em
1975, na Guerra do Vietnã, que seus assessores estão se esforçando tanto
para negar. A história se repete diante de nossos olhos. Biden agora
tem a letra escarlate da fraqueza estampada em seu peito. Donald Trump
queria sair e negociou um acordo com o Talibã. Fato. Mas Biden é o atual
presidente, e o problema não é simplesmente a retirada, mas a maneira
incrivelmente ingênua com que a executou. Biden perdeu uma oportunidade
política que jamais voltará: usar o 20º aniversário do 11 de setembro
para ser retratado como o homem que pôs fim à guerra mais longa da
América.
E,
como diria Ronald Reagan, fraqueza gera fraqueza. A fraqueza de Jimmy
Carter não se limitou aos iranianos que invadiram a embaixada em Teerã e
mantiveram reféns americanos presos por mais de 400 dias. Pouco menos
de dois meses depois desse episódio, a União Soviética o surpreendeu com
a invasão do Afeganistão.
A
grande diferença entre Biden e Carter é que o segundo estava no final
do mandato e já havia construído sua reputação — a de não ter uma
espinha dorsal moldada na coragem. Antes da queda de Cabul, a aprovação
de Biden oscilava entre 50% e 54%. Quando ele começou a trilhar o
caminho da retirada, apostou que o povo americano, cansado de 20 anos de
guerra, não se importaria muito com o que aconteceria depois. E,
contrariando um plano bem desenhado e todos os conselhos da Inteligência
norte-americana, Biden decidiu sair de “bate-pronto”, cometendo
sucessivos erros, como o de retirar tropas antes dos civis. O governo
não sabe quantificar quantos americanos ainda estão em solo afegão, mas
esse número pode chegar a 30 mil. A aprovação de Biden derrete diante
disso e das terríveis imagens que não param de chegar de Cabul. Os
americanos não gostam de parecer patéticos diante do mundo, e qualquer
repetição das barbaridades que atingiu o povo na última vez em que o
Talibã ocupou o poder será usada contra ele.
“Isso
claramente não é Saigon”, insistiu o fraco secretário de Estado, Antony
Blinken. As palavras dele, que já havia demonstrado fraqueza diante dos
chineses, não batem com as de seu chefe. Em 8 de julho, Biden negou
qualquer paralelo com o Vietnã e declarou: “Não haverá nenhuma
circunstância em que você veja pessoas sendo levantadas do telhado de
uma embaixada”. Há relatos de assessores da Casa Branca dizendo que a
única ordem inequívoca em meio ao caos desta semana foi direcionar os
pilotos de helicóptero dos Estados Unidos que evacuaram a embaixada
americana em Cabul para pousar em qualquer lugar, exceto no telhado.
As
imagens que continuam chegando do Afeganistão não mostram apenas
pessoas desesperadas diante do terrível regime das trevas que as espera.
Elas escancaram a incompetência que deixou os americanos — de
democratas a republicanos, de Fox News a MSNBC e CNN — estupefatos com
tamanha incapacidade de governar. A reação mais comum a esse desastre é
semelhante à de Ryan Crocker, embaixador de Barack Obama no Afeganistão:
“Fiquei com algumas questões graves em minha mente sobre a capacidade
de Joe Biden de liderar nossa nação como comandante-chefe”, afirmou.
“Ter entendido tudo isso de maneira tão errada — ou, pior ainda, ter
entendido o que provavelmente aconteceria e não se importar.”
A
marca do “segundo Saigon” ficará nos livros de história e impregnará o
legado de Joe Biden, não há dúvidas quanto a isso. Mas a ideia de que
temos outro Jimmy Carter no comando do país pode ser ainda mais
assustadora. Especialmente se essa ideia for interpretada por Teerã,
Moscou ou Pequim. Há meses temos escrito que Biden representa sangue na
água. E os tubarões sabem disso.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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