Os ideais positivistas e suas constituições garantem a soberania do estado sobre a do indivíduo. Mateus Vieira para o Instituto Mises:
Eu
me recordo da reação dos colegas ao escutar o professor de história do
colegial dizendo que que, no ancien régime, os reis eram legitimados
pela teoria do Direito Divino.
Impulsionados
pelo professor, os alunos riam da sociedade passada, a qual, por alguma
razão, aceitou a ideia de que o próprio Deus designara alguém para
representá-Lo perante os humanos.
O
desdém aprendido e mantido pelos alunos é um sintoma típico de uma
doença cujo surto ocorreu no século XVIII e, tornada pandêmica, jamais
saiu de cena desde então. Refiro-me, é claro, ao cientificismo,
trazido à tona pelo movimento iluminista e impregnado nas mentes — das
mais sofisticadas às mais simplistas — daquela que se convencionou
chamar de civilização ocidental.
O
cientificismo é a visão de que todo conhecimento verdadeiro é
conhecimento científico, e que não existe uma forma racional e objetiva
de investigação que não seja um ramo da ciência. Por 'ciência', os
cientificistas entendem que é todo o ramo do conhecimento no qual se
pode utilizar o método científico baconiano.
É
indiscutível que o método científico foi responsável por uma revolução
nas ciências naturais. O desenvolvimento da biologia, física, mecânica,
química e os grandes avanços ocorridos ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX
favoreceram a ideia de que a linguagem científica poderia ser a chave
para que o homem pudesse entender o universo de forma holística, ou
seja, em seu total.
Daí, a tentativa de sistematizar todo o conhecimento a partir da ciência fundou a chamada filosofia da ciência no sentido moderno do termo.
A filosofia moderna da ciência rompe as formas e substâncias do modelo aristotélico-tomista e é sistematizada pelo seu principal expoente: Auguste Comte,
na doutrina do positivismo. Comte acreditava que, assim como no caso
das ciências naturais, as agora chamadas ciências sociais passariam a
ser o novo paradigma da verdade, legando à teologia e à metafísica um
espaço decorativo e supersticioso na história humana. O positivismo de
Comte era uma ideologia de engenharia social. A sociedade como um todo
deveria ser organizada de acordo com conhecimentos científicos.
O
positivismo, adicionalmente, afirma diz que a linguagem científica é a
marca registrada da modernidade, e que para efetuar o progresso é
preciso haver uma classe especial de pessoas que conheçam as leis da
sociedade, e que sejam capazes de estabelecer a ordem e promover esse
progresso
O
cientificismo iniciou uma guerra fictícia entre aqueles que defendem a
fé e os que defendem a ciência. Para os últimos, já que religião não tem
fundamento científico (ou assim eles afirmam), ela não tem fundamento
racional e deve ser expulsa do debate sobre quaisquer assuntos.
Assim
como a religião e a metafísica não são "úteis" para conhecermos o
comportamento dos átomos, também não podem ser úteis para conhecermos a
verdade acerca do bom, do belo e das questões éticas. Em nosso tempo, o
cientificismo atinge seu ápice no neoateísmo de Richard Dawkins e Christopher Hitchens.
Para tais autores, tudo o que somos, pensamos e sentimos não passa de
reações químicas a serem descobertas pelo avanço da micro e da
nanobiologia. Haverá um dia em que, por meio de uma "injeção" das
substâncias adequadas, curaremos não só as doenças do corpo, mas também
as da alma humana (embora, para o neoateus, não existe essa isso de
alma).
Os derrotados
É
difícil definir qual foi o campo das chamadas "ciências sociais" mais
prejudicado pelo positivismo. Mas, sejam lá quais forem, certamente
dentre eles estarão a Economia e o Direito.
Na
Economia, o que antes era uma investigação lógica a respeito de como os
recursos escassos são produzidos e administrados na sociedade humana
passou a ser uma série de formulações matemáticas que inicialmente foram criadas para se entender a realidade e posteriormente foram usadas para forçar a realidade a se adequar à elas.
Se
um determinado economista provasse em seu "modelo científico" que seria
vantajosa a produção extra de um certo recurso X, o político poderia se
valer daquela "verdade científica" para forçar que a tal prescrição
fosse cumprida, ignorando a vontade dos agentes e passando por cima de
qualquer objeção ética. Afinal, quem sabe mais, o médico ou o paciente?
Apenas obedeça ao cientista. É tudo para o seu próprio bem.
No
Direito, e aqui entramos de fato no tema do artigo, o cientificismo foi
além. Repudiando os mitos fundadores dos estados que foram "mortos"
pelas revoluções iluministas, os cientificistas acabaram criando novos
mitos que, de alguma forma, eles pudessem justificar sob a égide do
racionalismo científico. Nas palavras de Butler Shaffer:
Os
sentimentos humanistas do Iluminismo ajudaram a moldar as suposições
autocráticas sobre a fonte da autoridade política, utilizando como
racionalização para o estado o mito de um "contrato social".
Os novos iluminados
Aqueles
que antes desdenhavam do Direito Divino citado no início passaram a
louvar os novos iluminados, os quais, despidos de uma metafísica
explícita, criaram para si uma falsa metafísica que justificasse o poder
dos pensadores sobre a "massa inculta e ignara".
A
ideia de 'educação libertadora' (das artes liberais) deixou de ser o
objetivo da erudição. Agora, a educação passaria a ser a certificação
que habilitaria o homem ao exercício do poder. A educação transformaria o
novo homem; aquele "ser bruto medieval" passaria a ser um indivíduo de
sentimentos nobres e racionais após receber uma formação racionalista.
E, sempre que esse homem — puro e humanista — fosse tentado a retroagir
aos seus instintos individualistas, ele teria ali uma constituição para
lhe mostrar o caminho correto a ser seguido.
Recorrer
ao manual — à constituição — seria para o juiz ou legislador ato
semelhante àquele praticado pelo engenheiro que recorre ao manual de
física para a boa prática de sua função. A justiça e o legislativo, nas
democracias liberais, certamente levariam o homem ao paraíso social, de
perfeição euclidiana, uma vez que, ainda que falhassem os juízes ou
legisladores de graus inferiores, os atos falhos poderiam ser corrigidos
por seus colegas dos graus superiores, homens ainda mais elevados e de
humanismo e racionalidade ainda mais acurados.
Por
fim, ainda que todos os graus do promoção do progresso falhassem,
haveria ali uma constituição para resguardar os cidadãos de uma possível
tirania por parte do estado.
Os
homens que desdenhavam daqueles que acreditavam no Direito Divino
passaram a crer — sim, a palavra adequada é "crer" — em um pedaço de
papel. Para um religioso, a constituição não pode ser entendida de outra
forma que não a idolatria.
É
uma enorme ingenuidade acreditar que toda a corte e as elites que
apoiavam os monarcas absolutistas de fato criam nessa história de
Direito Divino. Contudo, era conveniente a eles que houvesse algum meio
de garantir a estabilidade do estado. E, ademais, um rei, por mais
opulento e esbanjador que fosse, possuía interesse direto na
prosperidade e estabilidade política de seu reino — afinal, tratava-se
de sua propriedade e de seus súditos.
Assim,
por lógica, em qualquer monarquia, há uma limitação natural à
interferência do rei nos negócios privados; seu interesse é
majoritariamente externo; tudo o que importa é manter uma boa fonte de
impostos que sustentem sua corte, seu reinado e suas guerras.
No
Direito Positivo, por outro lado, não há uma relação direta entre o
interesse do legislador/aplicador da lei e o benefício social de seus
atos. Afinal, ninguém é "dono" do estado. Cada um está ali como
mandatário temporário, e os recursos acumulados/espoliados não serão
legados para a próxima geração de legisladores.
Sendo assim, há um interesse direto por uma pilhagem maior e mais rápida,
de forma que o máximo de benefício possa ser extraído do estado
enquanto um determinado mandatário, legislador ou juiz se mantém no
poder.
Os
positivistas mais bem intencionados acreditaram que poderiam limitar
tais instintos humanos por meio de uma constituição. Mas, ora, a quem
cabe interpretar a tal constituição? Aos homens, é claro.
Na
prática, os positivistas apenas substituíram a divindade por um pedaço
de papel, já que no âmbito da aplicação do poder (seja ele dado por Deus
ou por uma constituição) estão os mesmos homens de sempre. A diferença é
que, antigamente, eles usavam mantos vermelhos e coroas; agora, usam
togas e se referem a seus pares por "vossa excelência".
Um
rei absolutista poderia justificar seus atos abusivos como sendo a
"vontade de Deus"; já um ministro de suprema corte pode fazer o mesmo
tendo como justificativa "a vontade da constituição".
Nos
dois casos, quem é que define qual é a vontade de Deus ou da
constituição, senão os próprios homens que em seus nomes praticam os
atos que melhor lhes aprouverem?
Os incriticáveis
O
ministro do STF Alexandre de Moraes, desde o dia 27 de maio de 2020,
quando expediu vários mandados de invasão de propriedade e sequestro
temporário de bens de pessoas a quem ele julga "inimigas da democracia", continua irrefreável. O primeiro inquérito foi aberto por seu colega Dias Toffoli, que não gostou
da forma como algumas pessoas vêm se referindo aos representantes da
divindade (eles, os ministros) na internet. Desde então, pode-se dizer
que os magistrados "tomaram gosto" pelo poder.
Tanto
o inquérito quanto as apreensões quanto as próprias investigações são
expressamente proibidas pela constituição do Brasil. Um juiz, em um
sistema jurídico minimamente sério, não pode abrir investigação
monocraticamente, muito menos indicar aquele que seria o "juiz natural"
do processo, incorrendo aí em um latente vício processual. Mas, quem se
importa? Lembremos da frase do governante divino, Rei da França Luís
XIV: "O Estado sou eu". É neste mesmo espírito que Dias Toffoli declara: "Os ministros são considerados pelo STF a própria instituição, em qualquer lugar em que estejam".
Os
positivistas levaram a sociedade a crer que os cientistas e os homens
bem educados seriam aqueles capazes de conduzir a sociedade ao seu
apogeu de desenvolvimento. Uma era em que as miudezas e mesquinharias
individuais seriam suplantadas pela prosperidade coletiva, pela
erradicação das doenças, pela universalização do conhecimento e,
principalmente, pela elevação do homem ao posto de divindade, o agente
de todo o progresso e o solucionador de toda espécie de males.
Para vender sua utopia, os cientificistas fizeram crer à sociedade que o planejamento econômico científico é superior ao livre mercado,
que a ética se resume ao que está escrito nas leis e que a obediência é
superior à liberdade. O homem que age segundo suas próprias convicções
não só é mesquinho como também é inimigo do progresso e, por
consequência, de toda a sociedade. Se você não quer "matar os idosos",
fique em casa e use máscaras — afinal de contas, quem é você para
questionar a ciência?
O
que os positivistas não contaram ao mundo é que eles não veem
indivíduos com suas respectivas individualidades e com sua infinitude de
interesses distintos. Tudo o que eles veem é o homem agregado, único e
uniforme, que representa o somatório de todas as vontades e interesses
dos indivíduos reunidos em um único ser mítico.
Este ser mítico deve caminhar rumo ao progresso, não importam os custos éticos dessa caminhada. O nome deste homem? Estado Democrático de Direito, que é inquestionável e inatacável.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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