Ensaio de Adriana Novaes, publicado pelo Estado da Arte:
A
arte e a cultura são fundamentais para a formação de qualquer
indivíduo. Não para servir de reserva de citações, o que é uma bobagem e
uma farsa. A arte e a cultura são insubstituíveis no modo como
contribuem para ampliar o mundo, compreender sensações e situações de si
mesmo e, principalmente, dos outros. As linguagens formulam múltiplos
cenários e vozes. Quando prestamos atenção em como a arte e a cultura
foram vivenciadas por uma pessoa intelectualmente criativa, temos
clareza dessa relevância e renovamos a confiança na riqueza da companhia
de artistas e obras nas nossas vidas, porque despertam e provocam nossa
imaginação e assim estimulam a consciência de nossas capacidades de
compreender e de enfrentar a dureza, a baixeza e a mentira de tempos
perversos. A seguir, algumas observações sobre a arte na vida e no
pensamento de Hannah Arendt.
O
pai de Arendt passou boa parte da infância dela doente. Seu avô
paterno, Max Arendt, tentava suprir essa ausência, levando a menina para
passear e lhe contando histórias. Ela perdeu o pai e o avô em 1913, aos
sete anos. Mesmo demonstrando uma serenidade própria das crianças, ao
dizer para a mãe que não fazia sentido pensar demais em coisas tristes,
essa solidão marcaria sua vida. Aos cinco anos já lia e escrevia sem
grandes dificuldades. Na juventude, adorava poesia e sabia de cor vários
versos em sua língua materna, o alemão. Adorava Heine, Goethe, Rilke,
Hördelin. Entre os 14 e 16 anos, também leu Immanuel Kant e Soren
Kierkegaard, e criou com colegas um grupo de tradução da língua grega.
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| Hannah e o avô |
Hannah
Arendt era judia, mas sua família não era religiosa. Seus pais eram
socialistas. Aos nove anos, foi levada pela mãe para ver e ouvir Rosa
Luxemburgo. Gostava de conversar com um rabino, que respondia suas
perguntas provocadoras. Ao mesmo tempo, Arendt frequentava uma escola
dominical cristã. Segundo uma grande amiga, Anne Mendelssohn, os colegas
comentavam que Arendt havia lido tudo. Inteligente, era firme e
assertiva, tendo sido expulsa da escola por liderar uma revolta contra
um professor. Estudou para o exame alemão de admissão na universidade, o
Abitur, com o auxílio de um professor contratado. Passou, conseguindo o
acesso antes de sua turma. Para cursar a universidade, teve bolsas e
contou com a ajuda de um tio. A esposa desse tio lhe emprestava livros,
romances alemães, franceses e ingleses.
Na universidade, longe de casa, Arendt também escreveu poesia.[1]
Em seus versos misturam-se solidão, ironia, a aceitação das
ambiguidades e a clareza de ser uma pária consciente, como Rahel
Varnhagen, de quem escreveu uma biografia anos depois.
Meus pés flutuam em glória solene.E eu, eu estouDançando também.Liberta da carga —Para a escuridão, para o vácuo.Aposentos cheios de passados,Espaços atravessadosE solidões perdidasEstão começando a dançar, a dançar.E eu, eu estouDançando também.A temeridade irônicaEu não esqueci.Conheço o vácuo,Conheço a carga.Mas eu danço e dançoEm irônica glória.[2]
Como
afirma sua mais importante biógrafa, Elizabeth Young-Bruehl, seus
poemas não são necessariamente bons, não possuem uma originalidade
especial, mas esclarecem um estado de espírito, uma consciência da
passagem do tempo, a existência do curso da vida, como também se nota em
Kierkegaard. A ironia, a ambiguidade, o sentimento dolorido do tempo
vão conduzi-la à “dança” dos conceitos, à filosofia. Como belamente
conclui Young-Bruehl, Arendt poderia fazer suas as palavras de
Kierkegaard: “Eu me preparei… para ser sempre capaz de dançar a serviço
do pensamento”.
O
antissemitismo, o nazismo e a Segunda Guerra Mundial fizeram com que
Arendt se tornasse apátrida, fugitiva, prisioneira, refugiada,
sobrevivente. É divertida, apesar do contexto, sua referência à ajuda
das histórias policiais de Simenon para que ela e o segundo marido
conseguissem escapar da perseguição da polícia francesa, na jornada de
fuga do nazismo pela Espanha até Portugal, onde esperaram três meses
pela autorização para seguirem de navio até Nova York. Bérénice Levet,
em seu livro Le musée imaginaire d’Hannah Arendt: parcours littéraire,
pictural, musical de l’oeuvre, examina a dinâmica entre arte e
pensamento na obra de Arendt. Por um lado, a potência da literatura e da
arte em geral para concentrar a explicação de um determinado tema. Por
outro, o mote para a formulação conceitual. Ela destaca o relato que
Arendt faz, em carta ao marido, de seu insight ao assistir à
apresentação do oratório Messias, de Georg Friedrich Haendel, uma
espécie de revelação do sentido metafísico do nascimento, fundamental
para elaborar o conceito de natalidade, um dos mais importantes de sua
obra. Na base da formação para identificar essas possibilidades da arte,
o fascínio pela contação de histórias.
A
ajuda das histórias é cara a Arendt. Era preciosa para ela a frase de
Isak Dinesen (nome masculino e sobrenome de solteira de Karen Blixen),
usada como epígrafe do Capítulo V Ação, do livro A condição humana,
talvez um dos trechos mais importantes de sua obra. A frase “Todas as
tristezas podem ser suportadas se você as puser numa história ou contar
uma história sobre elas” é destacada no ensaio dedicado à autora no
livro Homens em tempos sombrios, como uma exaltação da arte de contar
histórias, arte que ela diz ter salvado o amor e a vida de Isak Dinesen e
que talvez tenha salvado Arendt e talvez possa nos salvar, assim como,
conceitualmente, ao preservar fatos, proporcione a valiosa conservação
da verdade para além das vilanias cometidas no abuso das mentiras, sobre
o que Arendt também escreveu. Para ela, aqueles que contam histórias —
jornalistas, historiadores e escritores — salvam os acontecimentos e
garantem a chance de utilizarmos os fatos para a compreensão de nossa
realidade e a projeção do futuro. As histórias, portanto, cumprem o
papel de registrar, preservar, para entender, suportar e, se for o caso,
perdoar, concedendo a chance de seguir em frente. É um tipo de
perseverança, de confiança na vida, na experiência real de nos
mostrarmos dignos dela, assumindo sua crueza, abraçando seus testes.
Contar histórias significa estar vivo plenamente.
A
arte se tornou, diante da lógica de progresso da modernidade que
reduziu a ação apenas ao trabalho garantidor da sobrevivência, a única
possibilidade de duração e permanência e, tomando a Crítica da Faculdade
de Julgar, de Immanuel Kant, que é uma crítica do gosto, o caminho pelo
qual seria concebível para Arendt uma compreensão da política
resgatando seu sentido básico de bem comum. A política havia perdido seu
significado de acordo entre plurais, colocando em risco o entendimento
em relação aos outros, a consciência da vida em conjunto que exige o
olhar a partir dos outros com os quais convivemos. O interesse próprio
sendo colocado de lado em nome do equilíbrio e exercício da capacidade
de escolha com outros, para Kant, poderia tornar viável a mentalidade
ampliada, a vida de escolhas em comum. Para Arendt, esse raciocínio
servia à reconsideração da política: a mentalidade ampliada, que é a
disposição de olhar para o mundo a partir de perspectivas diversas, e o
sentido comum (sensus communis) serviriam à recuperação da política como
experiência viva admitida na dinâmica da vida da mente, isto é, nas
relações entre pensamento, vontade e juízo.
Arendt
cita várias vezes personagens de Shakespeare como alegorias, por
exemplo, do enfrentamento consigo mesmo no final de Ricardo III, do mal
encarnado no invejoso Iago, de Otelo, e do dever filial em Rei Lear,
este citado por Thomas Jefferson como uma lição mais clara do que a
encontrada em livros de ética. A parábola “Ele”, de Franz Kafka, é
destacada por Arendt como a “única descrição exata da crise” em que o
ser humano se encontra na modernidade, cuja essência está no aforismo de
René Char, também muito repetido por Arendt: “nossa herança nos foi
deixada sem testamento algum”. A parábola traz uma metáfora do ego
pensante que quer fugir da pressão entre o passado e o futuro. As tantas
referências de Arendt à capacidade esclarecedora da literatura, da
poesia, são mais um traço aristotélico de seu pensamento, além da
constante atenção às distinções, admitida por ela mesma.
Arendt
tinha uma predileção por Homero e Franz Kafka, fazendo várias
referências a ambos em seus textos. Destacou a imparcialidade de Homero
que cantou as palavras e os feitos de Aquiles, assim como as palavras e
os feitos de Heitor. No início de sua vida nos Estados Unidos, a partir
de 1941, trabalhou em instituições judaicas e na editora Schocken, onde
tentou publicar textos de Walter Benjamin e foi responsável pela edição
de obras de Kafka, em especial seus Diários. Conheceu T.S. Eliot,
tornou-se amiga de Hermann Broch e de Randall Jarrell. Arendt escreveu
muitas resenhas de livros. Tratou de Fiódor Dostoiévski, Nathalie
Sarraute, William Faulkner e René Char. Admirava Albert Camus. No texto
“The Jew as Pariah: A Hidden Tradition”, de 1944, reconheceu Charles
Chaplin, Heinrich Heine, Bernard Lazare e Franz Kafka como judeus que
definiram e defenderam o pária como tipo humano, personificando a
emancipação através dessa figura como o excluído da sociedade que deve
se responsabilizar e tomar sua condição como um fator relevante e
político, o outsider sempre suspeito, aquele que aspira a uma vida
normal. O pensamento era a arma de resistência, como o personagem K. de O
castelo, de Kafka, que insiste em distinguir o certo do errado e se
nega a ver seus direitos como privilégios. O pensamento como arma é
tomado nesse texto como resistência à assimilação, à diluição de
características essenciais formativas em qualquer contexto que
oferecesse um “lugar” para os judeus. A resistência significava afirmar a
lembrança da origem. Ao se ver diante da conivência assustadora de
colegas com o antissemitismo crescente no início dos anos 1930, ou seja,
ao se ver perseguida por ser judia, decidiu responder a partir dessa
sua identidade, aproximando-se do movimento sionista, o que causou sua
prisão em Berlin. Mesmo que tivesse que escrever em inglês por ter se
estabelecido nos Estados Unidos — e para tanto contou com a ajuda de
amigos, em especial da escritora norte-americana Mary McCarthy —, Arendt
fazia questão de não se esquecer do alemão, sua língua materna,
garantia de espontaneidade, fonte da vida espiritual e da ação.
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| Hannah e McCarthy |
No
já citado Homens em tempos sombrios, Arendt elaborou os perfis de
alguns artistas: além de Isak Dinesen, Hermann Broch, Bertolt Brecht e
Randall Jarrell. São retratos generosos destes que pensaram e agiram
corajosamente, resistindo como podiam a um tempo brutal, desumano. O
título do livro é tomado da poesia de Brecht. Arendt trocou comentários
com Gershom Scholem sobre a vaidade do dramaturgo e defendeu sua poesia
em discussões com Karl Jaspers, sem conseguir convencê-lo. Brecht havia
apoiado Stalin, o que Arendt relativiza ao destacar, em contrapartida, a
condenação que ele faz em várias de suas peças da piedade como
distorção do bem: o uso por poderosos do sofrimento das pessoas ao invés
do devido compromisso de combate efetivo aos males que causavam tantas
penas. Arendt faz uma ponte com Maquiavel — esse pensador tão mal
compreendido, que particularmente admirava — e sua repreensão da bondade
do governante. O alvo de Maquiavel é a bondade de fachada. Ela o
identifica como o pai da revolução por não conceber o conflito como
necessariamente destrutivo, mas sustentável, na medida em que mantém a
chama do espírito revolucionário, garante o caráter espontâneo,
participativo, inspiração para a democracia. Segundo Arendt, Brecht
combateu essa bondade de fachada, essa perversidade, e é isso que
precisa ser lembrado de sua grande obra.
Arendt
incorporava em seus cursos a diversidade da literatura ficcional como
fonte para a compreensão. Na bibliografia de alguns deles como
“Contemporary Issues”, ministrado na Universidade da Califórnia,
Berkeley, em 1955; “Political Experiences in the Twentieth Century”, na
Universidade Cornell, em 1965, e na New School, em 1968; e “Basic Moral
Propositions”, na Universidade de Chicago, em 1966, estão contos de
William Faulkner, poemas de Bertolt Brecht e de René Char, peças de
William Shakespeare, romances de Ernest Hemingway, Albert Camus, Boris
Pasternak, Fiódor Dostoiévski, Herman Melville, Czeslaw Milosz e George
Orwell. O trabalho proposto aos alunos dos cursos de 1955 e de 1965 não
foi nada convencional, para deleite de muitos historiadores. Arendt
pediu para que eles criassem um personagem nascido em 1890, que tivesse
lutado na Primeira Guerra, se tornado um revolucionário de esquerda ou
de direita e participado da Segunda Guerra Mundial. Na solidão,
experiência das massas, como seria o mundo desse personagem? O relato
não deveria ser pessoal e não se tratava de como o aluno se sentia ou de
como a outra pessoa se sentia, mas de como o mundo parecia a esse
personagem. Arendt queria que os alunos desenvolvessem a imaginação
política, porque a imaginação é pré-requisito da compreensão.
Por
fim, novamente a poesia de Arendt, reiterando o significado da arte, da
poesia, da música, da literatura, do teatro: contar para registrar,
suportar e seguir; imaginar para compreender; buscar iluminação nas
vidas e obras dos inquietos, dos felizes que em tempos de sombras veem
um lar em seus sonhos.
A tristeza é como uma luzque arde no coração.A escuridão é uma brasaque vasculha nossa noite.Precisamos apenas acendera pequena chama tristePara encontrar o caminho de casa,como sombras, através da longa,vasta noite.A floresta, a cidade, a rua,a árvore, são luminosas.Feliz é aquele que não tem lar;ele ainda o vê em seus sonhos.

Notas:
[1] Há uma edição espanhola de seus poemas. Uma edição brasileira está no prelo.
[2] Reproduzido por Elizabeth Young-Bruehl, p. 54-55.
Referências
ARENDT,
Hannah. Compreender: formação, exílio e totalitarismo. Tradução Denise
Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, Belo Horizonte: Editora UFMG,
2008.
________.
A condição humana. 11.ed. Revisão e apresentação Adriano Correia.
Tradução Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
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________. Homens em tempos sombrios. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
________. The Jewish Writings. Ed. Jerome Kohn, Ron H. Feldman. New York: Schocken, 2007.
________.
Pensar sem apoios: Compreender 1952-1975. Organização Jerome Kohn.
Tradução Beatriz Andreiuolo, Daniela Cerdeira, Virginia Starling e Pedro
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________.
Rahel Varnhagen: A vida de uma judia alemã na época do Romantismo.
Tradução Antônio Trânsito e Gernot Kludash. Rio de Janeiro: Relume
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ARENDT,
Hannah; BLÜCHER, Heirich. Within Four Walls: The Correspondence Between
Hannah Arendt and Heinrich Blücher, 1936-1968. Ed. Lotte Kohler. New
York: Hartcourt, 1996.
ARENDT,
Hannah; JASPERS, Karl. Hannah Arendt/Karl Jaspers Correspondence,
1926-1969. Ed. Lotte Kohler and Hans Saner: New York: Harcourt, 1992.
ARENDT,
Hannah; MCCARTHY, Mary. Entre amigas: a correspondência de Hannah
Arendt e Mary McCarthy, 1949-1975. Ed. Carol Brightman. Tradução Sieni
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ARENDT,
Hannah; SCHOLEM, Gershom. The Correspondence of Hannah Arendt and
Gershom Scholem. Ed. Marie Luise Knott. Chicago: The University of
Chicago Press, 2017.
ARISTÓTELES. Poética. Edição bilíngue. Tradução Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poética, 1993.
LEVET, Bérénice. Le musée imaginaire d’Hannah Arendt: parcours littéraire, pictural, musical de l’oeuvre. Paris: Stock, 2011.
YOUNG-BRUEHL,
Elisabeth. Por amor ao mundo: a vida e a obra de Hannah Arendt.
Tradução Antônio Trânsito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997.
Os cursos ministrados por Hannah Arendt estão disponíveis em: Hannah Arendt Papers, Available Online | Library of Congress
Adriana
Novaes é pós-doutoranda do Departamento de Filosofia da Universidade de
São Paulo e autora de "O canto de Perséfone" e "Hannah Arendt no século
XXI: a atualidade de uma pensadora independente".



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