Quando Hans Christian Andersen escreveu “A Roupa Nova do Rei”, ele não esperava que sua história fosse virar realidade num reino tropical. Paulo Polzonoff para a Gazeta do Povo:
Era
uma vez um bandido muito malvado, mas muito inteligente, cujo nome se
perdeu no lodo da história. Uns o chamam de José, outros de Daniel .
Condenado e preso, mas depois solto porque tinha como carcereira uma
Justiça que além de cega não batia muito bem das ideias, por algum
motivo o bandido veio parar no Bananão (apud Ivan Lessa), um reino
governado pelo Conselho de 11 Ministros.
Chegou
de mansinho, o bandido. E já foi tratar com o ministro que ele sabia o
mais vaidoso e, portanto, suscetível a seus encantos diabólicos. Por
meio de um intermediário, ele ofereceu seus serviços de consultoria
política. Mas, como o ministro não concordasse com o valor, o bandido
resolveu incluir no pacote seus talentos de alfaiate. No que o vaidoso
ministro concordou de pronto, crendo estar fazendo um negócio da China.
Não
que o ministro precisasse de uma toga nova. Vaidoso como era, ele tinha
todo um armário cheio de togas em tons de preto os mais variados e que
ele usava de acordo com o humor do dia. Quando estava possesso, furioso
mesmo, e queria prender alguém por ofender sua frágil dignidade, o
ministro usava um preto mais básico. Quando queria posar de defensor da
democracia, no entanto, ele optava por um preto cintilante que muitos
confundiam com vermelho-comuna.
A
toga que o bandido-alfaiate ofereceu a esse ministro como brinde no
pacote de consultoria política era diferente. Ela era feita com um
tecido especial, cujo tom preto-trevas só poderia ser admirado em toda a
sua plenitude pelas pessoas mais inteligentes do Bananão. “Essa toga
também o fará tomar decisões mais democráticas, constitucionais e de
acordo com os mais elevados padrões do Estado Democrático de Direito
Inc.”, disse o bandido-alfaiate naquele tom melífluo dos grandes
estelionatários.
Durante
a negociação, e diante da hesitação do ministro, o bandido-alfaiate
abriu uma maleta e dela tirou uma amostra do tecido com o qual
confeccionaria a toga. Ou melhor, A Toga. O ministro, obviamente, não
viu nada. Mas jamais admitira isso. “Que lindo!”, disse, olhando para as
mãos vazias do bandido-alfaiate e, por um instantenzinho de nada,
questionando a própria inteligência. A dúvida o deixou ainda mais
ansioso para ter em volta do corpo magro a toga que o tornaria o supremo
entre os supremos.
Faltam uns poucos retoques
O
tempo passou. Instalado numa mansão no Lago Sul que fazia as vezes de
ateliê, o bandido-alfaiate se dedicava aos conluios nada republicanos,
ao mesmo tempo em que dizia estar dando os últimos retoques na toga
mágica. Um dia o ministro, sem aguentar de ansiedade, foi à casa do
bandido-alfaiate conferir como estavam os trabalhos. Um repórter
fotográfico que passava por ali viu e tirou uma foto. Que, infelizmente,
nunca ganhou a luz do dia, porque o Conselho de 11 Ministros tratou
logo de abafar o caso, decidindo que a realidade era fake news.
Na
mansão, o bandido-alfaiate apontou para um manequim nu. “Taí. Uma
beleza, não é? Faltam uns poucos retoques. Não estou muito satisfeito
com essa parte aqui, ó”, disse ele, fingindo pegar a toga com todo o
cuidado do mundo. A fim de não ser visto pelo que era, o ministro sorriu
e meneou a cabeça como se entendesse tudo de moda. “Não precisa se
preocupar, não. Para mim está ótima assim. Não gosto de gente
perfeccionista”, disse o ministro ao bandido-alfaiate. Que não era bobo
nem nada e respondeu: “O senhor é quem sabe, excelência”.
Assim
saiu da mansão no Lago Sul o ministro, levando consigo um pacote de
vento que ele acreditava ser uma toga mágica. Na sacola, um folheto o
instruía a vestir o traje sempre que lhe coubesse tomar uma decisão
daquelas capazes de afetar as bases da democracia. Como prender
arbitrariamente pessoas com opiniões estúpidas, por exemplo.
No
dia seguinte, o ministro vaidoso apareceu no Conselho para dar
expediente, levando consigo a toga mágica, mas disposto a só usá-la nos
casos especiais em que precisasse demonstrar toda a sua inteligência,
saber jurídico e moral elevada. Tudo corria bem, até que entrou
esbaforido no gabinete dele um outro ministro. “Você não sabe o que
aconteceu!”, disse ele ao vaidoso-sem-nome, mas que todo mundo sabe quem
é. “Atacaram a nossa dignidade! Com fake news! Olha só a mancha aqui na
minha toga”, choramingou.
O
ministro vaidoso não viu nada. Mas, pensando talvez que fosse assim uma
mácula invisível na frágil dignidade do Conselho, levantou-se, foi até o
armário, pegou a toga mágica, pensando: “Agora eu se consagro!”.
Vestindo o nada diante do outro ministro, que neste momento já havia se
encolhido em posição fetal, murmurando “Tadinha da democracia, tadinha
da harmonia entre poderes”, ele tomou ali mesmo a decisão de abrir um
inquérito sobre fake news. Mas só no dia seguinte, porque o STF, digo,
Conselho não paga hora extra.
E deixaram para lá
E
foi o que ele fez. De ofício, como se diz, e passando por cima da
Constituição, ele mandou prender e censurou opositores, tudo em nome do
bem comum, da defesa de democracia e da dignidade das instituições. Os
demais ministros, ao verem o vaidoso cometer todas essas barbaridades, a
princípio se preocuparam. Mas daí lembraram que ele usava a toga mágica
cujo negror só podia ser admirado pelos mais inteligentes. E deixaram
para lá.
O
ministro estava todo pimpão, peticionando a si mesmo, investigando e
julgando, e não percebeu quando por uma portinhola lateral do Conselho
entrou um menino chamado Bob. Para ser bem sincero, Bob era uma espécie
de idiota da aldeia. Mas isso não vem ao caso. O que importa é que o
menino meio tantã entrou no plenário do Conselho e, vendo o ministro
fazer o que fazia, não perdeu tempo, gritando: “É inconstitucional! É
inconstitucional!”.
Diante
da obviedade da constatação, os demais ministros se entreolharam. E,
talvez um tiquinho tarde demais, perceberam que o vaidoso-sem-nome não
vestia toga mágica coisa nenhuma. O próprio ministro se encolheu,
lembrando de seus tempos de constitucionalista e se dando conta, pela
primeira vez, que havia manchado sua biografia com o preto-trevas da
toga mágica inexistente.
Tudo
caminhava para um desfecho de Disney quando o ministro se levantou e,
surpreendendo a todos, mandou prender Bob. Enquanto o menino era levado
para a Masmorra de Bangu I, o ministro dizia aos demais para não se
espantarem. “Esses são os poderes constitucionais a mim conferidos pela
toga mágica. Não adianta explicar. Vocês não entenderiam”, disse, rindo e
limpando uma única gota de suor que escorria da calva.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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