A obediência cega não se nota exclusivamente nas matérias da saúde. O drama nacional não é a hipocondria. É a aversão à liberdade. Via Observador, a crônica semanal de Alberto Gonçalves:
Passei
as férias a cinco minutos da fronteira espanhola, no cantinho superior
direito da nossa ilustre nação. Acabadas as férias, tenciono continuar
por cá. Não se está mal. Sobretudo está-se longe da monstruosidade em
que se transformou Portugal, o Portugal urbano, litoral e que conta. Os
custos da interioridade também trazem benefícios. Aqui, as pessoas são
escassas e, por lucidez, cansaço, esquecimento ou confiança nas vacinas
que as “autoridades” garantem não mudar nada, a maioria deixou de usar
máscara. Já tenho entrado em estabelecimentos sem parecer um ladrão. O
único bar nas proximidades fecha de madrugada, sem “distanciamento” nem
lugares vagos. Isto parece normal, não parece Portugal.
De
brinde, vive-se com um pé fora da pocilga, pronto para uma fuga
definitiva e, por enquanto, para escapadelas provisórias. Combustível,
compro em Espanha. Víveres nos supermercados, idem. Roupa, ibidem.
Esplanadas para jantar fora nas noites mornas de Verão, há as de Zamora e
Salamanca. Irrita-me um bocadinho que demasiados espanhóis ainda
cumpram a recomendação do farrapo no nariz, mas não existem imposições
e, ao contrário do que sucede em Lisboa ou no Porto, as vantagens
sobrepõem-se largamente aos enxovalhos. Claro que ambos os países têm
governos marxistas. Porém, o lado de lá possui tribunais e as regiões
possuem a proverbial autonomia, pelo que Castela não prevê decretar
“passes sanitários” ao bom velho estilo soviético.
Portugal
ficou irrespirável. Quer dizer, irrespirável é o Nordeste, cujas
temperaturas resolveram roçar os 40 graus nos últimos dias. Falo daquela
respiração metafórica, própria dos lugares decentes. Hoje, Portugal não
é decente. Nunca fui patriota, talvez por ser compatriota de muita
gente que acho abominável. O que antes eu desconhecia é a desmesurada
quantidade de gente abominável que partilha comigo a nacionalidade. A
Covid ajudou à descoberta. A Covid não tem culpa, coitada: apenas serviu
de pretexto para que um partido e um regime subordinado a um partido
estendessem o controlo económico, social e mental a níveis que não pude,
ou soube, prever.
De
resto, o pior nem são os apetites totalitários de socialistas – perdoem
a redundância – primários e corruptos. O pior é a docilidade com que o
povo acolhe os apetites. Acolhe, aplaude e, não raramente, incentiva.
Nos intervalos, denuncia os prevaricadores. Antes que me venham com
equivalências ao “estrangeiro”, lembro por exemplo que o discurso de há
um mês, em que Macron, o Pirolito, prometia o “apartheid” formal das
pessoas não vacinadas ou que não ostentassem o “certificado” (não são
sinónimos: sou vacinado e não quero certificado algum, que aliás jamais
mostraria a estranhos) levou centenas de milhares a protestarem nas
ruas. Os protestos têm sido recorrentes ao longo deste ano e meio na
generalidade do Ocidente civilizado, mesmo que poucos Estados aplicassem
tantas restrições, cometessem tantas ilegalidades e provocassem tantas
misérias quanto o português. Perante isto, o português, o cidadão não o
Estado, não deu um pio.
Deve
ser uma insuficiência anatómica: o português não pia. Nos tempos que
correm, nem sequer resmunga inconsequentemente como era tradição.
Lembram-se? Confrontado com o buraco à porta de casa, por remendar há
seis meses, o português ensaiava uns insultos para dirigir ao presidente
da Junta. Seis minutos depois, cruzava-se com o dito autarca e agravava
a hérnia com salamaleques. O buraco não surgia na conversa. Agora nem
isso: o português salta directamente para o elogio do buraco. Em casos
limites de subserviência, salta directamente para o buraco, a fim de
provar a respectiva utilidade e os insuperáveis méritos do autarca.
Repito:
o problema não é a Covid. É a reacção dos portugueses à avalanche
ditatorial que a Covid suscitou. Desde o início desta história que o
Governo ordenou as mais absurdas, contraditórias e humilhantes coisas
para, dizem, “combater” a Covid. O português acatou todas. E só protesta
quando as julga insuficientes. O desagrado dos nativos não é com a
trela curta: é com a trela não ser curta o bastante. Poderíamos explicar
este comportamento com o medo do vírus, que inclina os homens (e as
senhoras) para a irracionalidade. A explicação seria fraquinha. A
obediência cega não se nota exclusivamente nas matérias da saúde. O
drama nacional não é a hipocondria. É a aversão à liberdade.
Numa
curiosa adaptação colectiva da Síndrome de Estocolmo, o pavor de serem
livres é o que justifica a patológica simpatia dos portugueses pelas
quadrilhas que os oprimem. Não admira que livres sejam as quadrilhas.
Livres de encarcerar os portugueses, livres de os arruinar, livres de os
gozar, livres de os roubar, livres de os atropelar em sentido figurado e
literal. Salvo excepções, o pessoal gosta. Salvo excepções, eu não
gosto do pessoal. Não gosto e não percebo. Da vacinação de crianças
contra uma doença de que não padecem à crença de que a vacina não
permite eliminar nenhuma das “medidas” alucinadas em vigor, actualmente
quase tudo o que é português me é estranho.
Em
suma, eis a razão porque permanecerei sem data de retorno neste pedaço
de território remoto e esquecido: porque é a maneira logisticamente
menos complicada de não me sentir parte do desfile de patologias a que
Portugal desceu. É possível que a minha decisão não adiante muito e que,
conforme afirmava uma personagem do folclore lisboeta, somente
transmita uma falsa sensação de segurança. Ainda assim, sou capaz de
preferir a segurança ilusória à repressão certa, a distância voluntária à
proximidade de malucos, a vida ao medo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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