É um erro pensar que a maioria da sociedade esteja satisfeita com o padrão circense do debate. A minoria barulhenta dá o tom da orquestra desafinada. Fernando Schüler para a Veja:
Observava
pela televisão aquele tanque com a fumacinha cruzando a manhã cinzenta
de Brasília, à frente do Palácio. “Mais um passo na escalada golpista em
curso no país”, dizia a manchete de um prestigiado veículo de imprensa.
O senador Omar Aziz classificou a cena como um “ataque frontal à
democracia”. No alto da rampa presidencial, alguns militares assistiam
àquilo com ar de tédio. Ao menos foi tudo muito rápido. Mal deu tempo
para as crianças levadas pelos pais para ver o desfile chegarem um pouco
mais perto daquelas geringonças.
Daqui
a pouco, como de hábito, quase ninguém vai se lembrar disso. Apenas
mais um episódio do debate polarizado e algo doentio do Brasil atual.
Debate pautado por duas premissas tóxicas. Uma delas (hoje minoritária) é
a de Bolsonaro como herói antissistema. E que tudo o que vier dele deve
ser defendido, sob pena de traição; a segunda (hoje majoritária) diz o
contrário. Bolsonaro é um tipo maligno, representa a mais pura barbárie,
e tudo o que vier dele deve ser combatido, custe o que custar. Duas
premissas de traço religioso bloqueando qualquer chance de um debate
racional sobre os problemas do país.
Exemplo
disso foi a querela em torno do voto impresso. Para alguns, ele assumiu
uma espécie de “função cloroquina”. Uma quantidade não desprezível de
pessoas realmente acreditou que havia um quartinho secreto, no TSE, onde
alguns ministros digitariam um código secreto e dariam um jeito nas
eleições. De outro lado, outro grupo de pessoas acreditando que defender
a urna eletrônica era “defender a própria democracia”, como ouvi de um
bom amigo jornalista.
O
que surpreende, nesse debate, é a mistura de barulho com inocuidade. Em
parte, é um traço do Brasil nos últimos anos. O país atravessa uma
escalada de radicalização ao menos desde 2013. Bolsonaro, ele mesmo um
exímio produtor de toxina política, é consequência disso. O problema, no
entanto, está longe de ser apenas brasileiro. É algo que diz respeito
às grandes democracias nesta era da política como espetáculo.
David
Brooks tratou do tema em um artigo recente, propondo uma distinção
entre a política do circo e a política do compromisso. A primeira é
barulhenta, usa termos fortes e trata sempre dos temas (como se diz nas
redações) que estão bombando. Sua medida de sucesso é feita de likes,
views e coisas do tipo; a segunda é feita dos temas monótonos da
política. Os temas complexos, de política econômica e reformas, que
repercutem menos, mas no fundo são os mais importantes na vida das
pessoas. Seu protagonista típico é o político moderado. Sua medida de
sucesso, o resultado, em regra feito de concessões, como é próprio das
democracias.
A
distinção é crucial. É como se tivéssemos um lado negativo e um lado
positivo na democracia. Isso é perfeitamente nítido no Brasil recente.
De um lado, a eterna conversa sobre o “golpe”, o “fechamento do
Supremo”, as centenas de declarações, tuítes, denúncias, ameaças e
abundância retórica que marca o cotidiano triste dos jornais e da
internet. Tudo o que produz a sensação de que andamos à beira do abismo.
De outro, o país que aprovou as reformas trabalhista e previdenciária, e
coisas inteiramente sem graça, como o novo marco do saneamento e a
autonomia do Banco Central.
Simon
Bazelon e Matthew Yglesias foram nessa linha com sua tese do “Congresso
secreto”. Um pouco abaixo da gritaria política, dizem eles, há gente,
de diferentes lados da política, tocando à frente pautas importantes.
Eles propuseram um axioma: quanto mais longe da “saliência pública”,
maior a probabilidade de alguma coisa avançar positivamente no mundo
político. “A atenção do público cria incentivos perversos”, dizem,
mencionando pesquisas que mostram o efeito contraproducente que tem o
envolvimento exacerbado do presidente em um assunto no Congresso. Não é
por acaso que o voto impresso tenha feito, depois de toda guerra movida
por Bolsonaro, perto da metade dos votos que fez, anos atrás, em um
Congresso muito parecido com este.
A
política passou a funcionar, em larga escala, na lógica do que Mario
Vargas Llosa definiu como a “civilização do espetáculo”. Civilização
marcada pela “banalização da cultura, pela frivolidade e, no campo da
informação, pelo jornalismo irresponsável da bisbilhotice e do
escândalo”. Diagnóstico duro e verdadeiro. O líder populista é alguém
que sabe lidar com esse universo. Ele inflama, divide, mobiliza. Mas é
incapaz de lidar com a política do compromisso, essencial para fazer a
democracia funcionar. Daí a permanente sedução do autoritarismo. Em
democracias fortes, como a brasileira, resta a bravata. A retórica de um
lado; os arranjos políticos tradicionais, no Congresso, do outro.
É
um erro pensar que a maioria da sociedade esteja satisfeita com o
padrão circense do debate político. Pesquisas mostram que logo abaixo da
camada radicalizada da cena pública, dominada pelos ativistas digitais,
há uma imensa legião de cidadãos aberta a consensos e simpática a uma
política de resultados. O ponto é que se trata de uma maioria
silenciosa. A minoria barulhenta dá o tom da orquestra desafinada. Seu
representante típico é o sujeito que reclama do ódio exalando ódio. O
tipo incapaz de reconhecer em si todos os defeitos que vê nos outros.
Sua maior marca é reclamar do “caos”, ainda que pareça encontrar nele
sua secreta alegria.
Brooks
termina seu artigo com uma nota de otimismo. “Os moderados”, diz ele,
“estão de novo em boa forma.” A razão disso é Joe Biden. Um tipo que não
quer derrubar o sistema, mas “acredita que ele possa funcionar”. Biden
vai, diz ele, gradativamente ampliando o espaço que separa decisões de
governo da lógica estéril da guerra cultural.
Há
quem diga que isso é ruim. Que a moderação, na política, é sinônimo da
acomodação de interesses e tolerância ao status quo. E que seria preciso
passar a faca, cortar o mal pela raiz. Acho que já ouvimos essa
fraseologia por aí, não? Tenho uma vaga memória da vassoura do Jânio, da
“bala de prata” de Collor, do “nunca antes neste país” e, mais
recentemente, do outsider providencial que iria derrubar o “mecanismo”.
O
que o país precisa, quem sabe, é buscar um “novo jeito de caminhar”,
como dizia o professor Francisco Weffort, que nos deixou por estes dias.
Nem o status quo nem o radicalismo vazio. Se cada um fizer sua parte,
recusando a política do circo e dando um cartão vermelho a quem vive
dela, seja de que lado for, quem sabe tenhamos a chance de evitar velhos
equívocos e andar à frente.
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