O modo como em algumas instituições acadêmicas se instalou o terrorismo intelectual contra os dissidentes ou não alinhados lembra a categoria de "Unmensch", usada pelos nazis contra os inimigos. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
Brincando aos Clássicos
Foi
numa conferência sobre o “O Futuro dos Clássicos”, na Society of
Classical Studies, em Janeiro de 2019, que Daniel Padilla Peralta,
professor de História de Roma em Princeton e doutorado por Stanford,
montou a tenda: a fundamentação da escravatura, da ciência racial, do
colonialismo, do nazismo tinham sido semeadas no Ocidente euro-americano
pelos Estudos Clássicos, que, ao longo dos séculos, tinham vindo a
promover o racismo no ensino superior. O Partenon era o símbolo por
excelência da “civilização branca”, um monumento à opressão e à
“branquitude”, e a herança clássica, da Grécia e de Roma, alimento
secular de uma cultura feita de racismo, machismo, esclavagismo e
elitismo civilizacional.
Mas
talvez ainda houvesse um futuro para os Clássicos. Um futuro com
Peralta, evidentemente, que reivindicava desde logo o feudo, sugerindo
um estudo mais participativo e apelativo da Antiguidade e dos seus
branqueados abismos de opressão e exclusão, um estudo-denúncia,
envolvendo role-playing, sem o discriminatório estorvo do conhecimento
do Grego e do Latim – línguas mortas que Peralta dominava e a que podia,
por isso, dar vida, traduzindo-as para os alunos de forma mais
cativante, mais envolvente, mais actual, mais “desperta”. Assim não
sendo, não antevia grande futuro para os Estudos Clássicos.
Mary
Frances Williams, uma investigadora da Califórnia, contestou Padilla,
argumentando que os conceitos de “liberdade, igualdade e democracia”
também tinham nascido nesse “opressivo mundo clássico” e que não se
encontravam vestígios deles em qualquer outra cultura ou civilização
antigas, do Oriente, da África ou da América. Burburinho na sala.
Revirar de olhos. Rasgar de vestes. Ainda podia ter acrescentado que a
própria admissão do contraditório, que abria caminho às sociedades
modernas e até à actual desconstrução das sociedades modernas, era
também tributária da cultura clássica, mas já não foi a tempo.
Esta
tentativa de debate pareceu-me um bom ponto de partida para falar da
ofensiva cultural que hoje assalta o mundo ocidental, especialmente na
academia euro-americana. Se é que ainda há espaço político e cultural
para a discutir.
Porque
é um debate que a esquerda radical quer, desde logo, matar no ovo e
transformar em monólogo, eliminando uma parte da equação e silenciando
toda e qualquer oposição. E não são precisos, ou são até
desaconselháveis, grandes estudos para o monólogo pretendido: bastam
alguns olheiros, um punhado de certezas, um bom casting de vítimas, de
agressões e de crimes e um frenesi de alertas e SOS, uma vez que é de
entretenimento de massas que se trata e não de confronto dialéctico, de
debate académico livre e crítico de diferentes experiências históricas e
culturais, de cruzamento de percepções, estudos ou de opiniões.
As
enfadonhas lutas pelo pão de cada dia do operariado, do campesinato e
do povo trabalhador são também para estas esquerdas coisas do passado,
até porque empalidecem perante o apetecível circo das novas minorias de
oprimidos, os prazeres inquisitoriais da perseguição, da acusação, do
insulto e da destruição, as glórias narcísicas da reivindicação de
superioridade moral. Entre o pão alheio ou a falta dele e o circo
próprio, venha então o circo. Herança greco-latina? Homero, Tácito,
Tucídides, Virgílio, Políbio? Branquitude, branquitude, nada mais que
branquitude.
E
é nisto que estamos. Russel Ronald Reno identifica esta mudança no Wall
Street Journal de 6 de Junho e explica porque é que, nos últimos anos,
tem evitado contratar licenciados pelas universidades americanas da Ivy
League: é que o mundo do trabalho não se compadece, nem com activistas
com o narcisismo à flor da pele e o insulto na ponta da língua, atentos a
ciscos e cegos a traves, nem com a maioria dos outros estudantes, que,
não sendo activistas, tiram nestas universidades um curso paralelo de
consentimento silencioso para evitar condenações por pecados de
dissidência. Por mais intimidatório que possa ser o actual ambiente
académico, que o é, Reno lamenta, mas reafirma a sua relutância em
contratar quem não esteja disposto a pagar o preço de quebrar o silêncio
quando em discordância.
A nova censura
Há
quase um século, nos anos vinte e trinta do século passado, houve um
crepúsculo do liberalismo, identificado com a decadência e incapaz de
resistir aos movimentos totalitários de Moscovo e de Roma. Nestes,
surgia uma linha de autoridade ou de unidade de opinião, prescrita e
instalada pelo poder político, pela censura, pelos aparelhos do Estado.
Ao
contrário de então, a censura da cultura do cancelamento que agora se
afirma, não vem do Estado. Vem da própria Academia e das suas correias
de transmissão na opinião pública, promovendo a denúncia e a autocensura
e secando a criatividade e o pensamento crítico no meio académico e da
opinião. E conseguindo do poder político cedências e apoios.
Quando,
em Agosto de 2015, os tratores, os explosivos e as marretas dos Talibãs
do Estado Islâmico caíram furiosamente sobre o templo de Baal-Shamin,
em Palmira, um templo do II a.C classificado como Património Mundial da
Humanidade, o choque foi generalizado. Estranhamente, quando assistimos,
dentro de portas, à destruição de estátuas, ao cancelamento dos
Clássicos, à reescritura da História e dos contos tradicionais e
infantis ou à sua submissão às “alterações climáticas” e às “mudanças de
género” dos “novos tempos”, sob o escrupuloso lápis azul dos chamados
“sensitivity readers”, o choque dá muitas vezes lugar a um encolher de
ombros, como se de uma loucura passageira se tratasse.
E
no entanto, a brutal destruição de Palmira ilustra bem o presente
ideário e as persistentes práticas da cultura ocidental do cancelamento:
a “sharia” pode ser outra, mas é a mesma fé cega, a mesma tentativa
violenta de calar o contraditório, de apagar um passado “errado”,
pecaminoso ou simplesmente adverso ao conjunto de dogmas que compõem o
credo que se quer impor.
Talvez
tudo isto nos mereça mais do que um encolher de ombros. Até porque,
quando cai em ambiente de incultura e de ignorância histórica, quando se
abate sobre um desinteresse temeroso generalizado, uma ânsia de
“modernidade” e um desejo de mostrar serviço à “tolerância”, a loucura
tende a instalar-se e a tornar-se tudo menos passageira.
Há
quem defenda que uma cultura oficial, generalizada, superficial,
vulgarizada, massificada, uma cultura que cancela o pensamento, que
sufoca a independência crítica e que policia a criatividade, é
necessariamente um nado-morto, e que será só uma questão de tempo até
que uma qualquer cultura viva, ou uma pluralidade de culturas vivas, a
destronem. Mas a antevisão de uma longínqua falência anunciada não nos
pode impedir de reagir à ofensiva real, substancial, e articulada, à
ofensiva com fortes alavancas nas Academias, nas Fundações, em Governos,
em lobbies sociais e mediáticos e em grandes empresas que está a varrer
a chamada “cultura ocidental”. E que está a fazê-lo contando,
sobretudo, com o medo dos potenciais opositores de parecerem mal, de
passarem por intolerantes, desactualizados, reaccionários, fascistas,
racistas, homofóbicos.
As
esquerdas clássicas não atribuem grande valor a estas novas causas ou
aos seus comissários políticos – fantasias reais e gramaticais de
multiplicação de géneros e apoucamento de realidades, pré-determinações
raciais, humanização de animais e desumanização de humanos,
discriminatórias cegueiras inclusivas, mortes assistidas e vidas
descartadas – mas deixam andar, cobrando até apoios políticos dos seus
partidários e procurando também não passar por reaccionárias.
As direitas conservadoras preocupam-se, mas esperam que alguém – alguns radicais – resista por elas.
Deste
modo, as minorias activistas da cultura do cancelamento, animadas pela
fé ardente de um novo resgate utópico, por um reacender da construção de
sociedades perfeitas, esquecem ou demarcam-se do que aconteceu no
século passado com a implantação de outras utopias e propõem a
destruição das identidades pessoais, familiares, comunitárias,
nacionais, para implantar outras, mais “científicas” e globais (e mais
estéreis, solitárias e suicidas).
Tudo isto é apresentado como um progresso da Humanidade. Mas onde é que isto tudo começou?
Há
muitas teses e explicações, desde o hedonismo dos Philosophes franceses
ao materialismo da burguesia inglesa, combinados com o processo
desconstructor do marxismo-leninismo.
As raízes do mal
O
século das Luzes, entre a Enciclopédia, Voltaire e Sade, abriu a porta
ao individualismo radical, a uma soberania absoluta do Eu – de um
homem-super-homem, liberto de transcendências divinas, de lealdades
comunitárias, de limitações naturais –, numa linha que viria, no século
XX, a desaguar em Sartre e na sua forma “de niilismo como libertação”.
No século XIX, o espírito material da burguesia inglesa, sem o sentido
cristão com que Dickens a redimiu, marcou um imperialismo comercial sem
limites. E, logo a seguir, Marx e Engels criaram um aparelho
interpretativo pseudo-científico da História de que resultou a redução
dos valores institucionais a servos da opressão económica – e que serviu
de base teórica aos despotismos comunistas.
Estes
despotismos foram vencidos há 30 anos, com a morte da União Soviética.
Só que, depois da vitória, as sociedades ocidentais vencedoras – e
vencedoras graças à força e à fé de personalidades como o Papa S. João
Paulo II, Ronald Reagan e Margaret Thatcher – afundaram-se no
triunfalismo fácil e eufórico do globalismo económico e do imperialismo
democrático, empenharam-se em guerras absurdas, esmagaram povos e
culturas por toda a parte e humilharam os vencidos. E arruinaram e
marginalizaram os seus próprios povos, vítimas da cartilha optimista do
fim da História.
Como
aconteceu outras vezes, com a vitória e a sua euforia veio a
decadência. A revolução das mentalidades, em vez de evoluir no sentido
dos valores de identidade e resistência que tinham tornado possível, com
uma política de apoio aos povos oprimidos e invadidos, da Europa
Oriental ao Afeganistão, aguentar e vencer a URSS, tomou a vitória como o
triunfo exclusivo dos valores do liberalismo económico e daquilo a que
Flaubert chamou o “pensamento baixo”, sem metafísica, da
média-burguesia.
E
foi, outra vez, a marcha para a decadência da Euro-América. O sistema
espalhou-se por todo o mundo, os capitais emigraram para um universo sem
fronteiras, onde as tiranias colectivas sobreviventes lhes garantiam um
capitalismo selvagem igual ao da primeira metade do século XIX (o tal
que Marx escrutinou e desmontou). No chamado Ocidente, as classes
trabalhadoras foram marginalizadas pela desindustrialização e pela
migração das indústrias para o Oriente e abandonadas pelos políticos.
Agora
é a vez das classes médias, esse fantasma dos leninistas embaraçados
por tudo o que lhes empecilhava a dicotomia Burguesia/Proletariado.
Maniqueísmo
E
com isto instalou-se visivelmente a decadência, até no modo
semi-resignado com que as sociedades ocidentais têm vivido e enfrentado a
pandemia. Mas, sobretudo, na forma como têm vindo a viver, a consentir
ou até a encorajar esta ofensiva interna.
É
uma nova forma delirante de niilismo, com o uso como arma de arremesso
do “género” – que é infinitamente individual, mutável e operável, que
pode estar sempre em aberto e que não pode ser confundido com o sexo – e
da raça – que não se compadece com subtilezas e mestiçagens e é
infinitamente imutável no seu conveniente preto e branco. Um uso e abuso
que, na acusação ou na beatificação, são tão opressores e tão redutores
para os “opressores” como para os “oprimidos”, numa cópia servil da
agenda puritana do novo radicalismo norte-americano, com os seus rituais
de contrição e punição de pecados seculares e de ofensas geracionais
complexas que se multiplicam ao sabor das conveniências, e os seus
próprios sacramentos, generosamente franqueados a todos os que,
condenados à raça, ao “género”, ao povo ou à convicção política ou
religiosa erradas, queiram arrepender-se e redimir-se, recomeçando uma
vida nova como comissários das “minorias”.
E
tudo isto com apóstolos sem regras nem limites, que agem segundo uma
linha de maniqueísmo absoluto, retirando aos que pretendem resistir-lhes
qualquer dignidade ou humanidade. O modo como em algumas instituições
académicas, sobretudo norte-americanas, se instalou o terrorismo
intelectual contra os dissidentes ou não alinhados lembra as categorias
de Unmensch, que os nazis, nos anos trinta, atribuíram aos judeus – e a
outros inimigos – para os poderem exterminar à vontade e em boa
consciência. Ou o modo como os comunistas classificaram como “inimigos
do povo” os que também exterminaram.
Este
ódio vesgo e categorial está a invadir a Europa e até esta velha nação,
que não costumava ter estas barreiras de pele, opção ou condição, mas
que sofre o embate do maniqueísmo ideológico importado, quantas vezes
por elementos estranhos, acolhidos pela generosidade das nossas leis e
costumes.
Um
dos grandes progressos da modernidade euroamericana foi a transposição
para as guerras ideológicas do conceito de “inimigo justo”, retirado da
ordem internacional, um conceito que fazia de um inimigo ideológico,
civil, interno, mesmo o radical, alguém que era, tal como nós, humano, e
que não tínhamos necessariamente de odiar para combater.
Mas
foi conceito que caiu em desuso. E o que é talvez mais preocupante
nesta ofensiva e nos que a prosseguem, além do absurdo das suas
certezas, do irrealismo das suas pretensões e da ignorância interessada
que promovem, é o ódio destruidor contra todos os que se lhes pretendem
opor, um ódio que faz de quem lhes resiste uma espécie de filhos das
Trevas contra os quais tudo é legítimo e lícito. E se pensarmos que
partem do “direito à diferença” e de uma exigência de respeito pelo que é
“singular”, que vivem nos observatórios e que são sérios candidatos aos
certificados de qualidade para verificação de factos, podemos
equacionar o grau de perturbação a que chegámos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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