O
título deste artigo pode bem induzir o leitor mais incauto a pensar que
o Brasil deve escolher entre abrir-se ao cosmos, ao outro e ao imenso,
ou fechar-se entre os seus e ir de táxi. Se leu assim, não foi incauto,
foi arguto: isso também é verdade. Mas para já o ponto que quero
explorar não é bem esse. E juro que a história do táxi também não é
piadinha requentada ao caso da Inmetro, nem ao episódio que se lhe
seguiu.
No passado dia 22 de Outubro, no Estoril Political Forum (EPF), numa iniciativa do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, realizou-se um painel com
o tema “Brazil and Latin America: The Challenges Ahead”, com Bruno
Garschagen, Gilberto Morbach, Leonidas Zelmanovitz, Luiz Felipe Pondé e
Ricardo Sondermann, moderados por Júlia Evangelista Tavares e acolhidos
por João Pereira Coutinho. O riquíssimo painel foi um óptimo ponto de
partida para uma discussão urgente e útil sobre o Brasil e a tradição
conservadora liberal; entendamo-lo assim para esta reflexão, como ponto
de partida: não esgotando a discussão ali havida, mas também não se
confinando a ela.
Aí
se debateu como a tradição conservadora liberal pode contribuir para
responder aos novos desafios e actores políticos que emergiram no
Brasil. Mas esse debate coloca desde logo vários problemas. Primeiro o
da tradição. Sendo a tradição conservadora liberal tão vasta, com
contributos na política, na economia, na cultura etc., qual desses
contributos seria de considerar? Depois os “novos desafios” e “actores
políticos”. “Novos desafios” que se colocam a uma escala mais macro,
como na questão da Amazónia e das alterações climáticas, ou no
posicionamento geoestratégico no Atlântico Sul, América Latina e relação
com África, num quadro de desafio da China ao incumbente Estados
Unidos? Ou antes “novos desafios” e “actores políticos” a uma escala
mais micro, designadamente os que resultam dos casos de corrupção de
políticos e estruturas como no caso da Lava Jato, ou de conflitos
institucionais como os do Presidente com o ex-Ministro da Justiça a
propósito de casos de nomeações na esfera judicial? Ou ainda “novos
desafios” como o aumento das assimetrias socioeconómicas — já antes
grandes — com a crise pandémica?
Para
mitigar a intratável amplitude desta discussão — porque para cada uma
das questões anteriormente apresentadas seria possível encontrar
contributos conservadores liberais —, ater-me-ei apenas a alguns
aspectos salientados no painel do EPF.
Bruno
Garschagen sinalizou que a população brasileira acordou para os riscos
da tradição autoritária e realçou a importância do pluralismo das
ideias, designadamente na relação entre a internet e a imprensa
tradicional e no papel dos debates na universidade. O papel da internet
foi muito reforçado por Luiz Felipe Pondé, designadamente quanto ao
papel das redes sociais enquanto expressão do poder do povo. Gilberto
Morbach, reforça Garschagen quanto à mentalidade autoritária,
sublinhando, porém, sua presença — em uma dimensão até reacionária — no
próprio conservadorismo brasileiro, e daqui tece algumas considerações
sobre a insuficiência da mera rejeição do que não queremos em sede de
guerra cultural. Retomando Raymond Aron, Morbach diz, citando L’opium
des intellectuels, que, se “o revolucionário torna-se opressor, o
conservador adere aos poucos ao cinismo”. Este aspecto, de marca
reaccionária (entendamo-la como tradição conservadora não liberal), é
central no debate político actual, não só no Brasil. Linhas
conservadoras (não liberais) têm insistido na guerra cultural — contra o
marxismo cultural e/ou o niilismo — como chave do debate político
actual. Morbach afirma que “vencer uma guerra cultural parece em si um
oxímoro”; não basta inverter o sinal de tudo o que vem sendo criado.
Leonidas Zelmanovitz, por seu turno, fez uma critica à economia da
esquerda, para Ricardo Sondermann concluir com uma visão pessimista
sobre o país do quase, da qual salientaria uma ideia essencial: “nenhum
governo completa o que foi feito anteriormente”.
É
seguramente difícil tecer uma malha que, neste espaço, ligue tantas e
tão complexas ideias, mas centrar-me-ei na questão da ordem — elemento
absolutamente central a todas as tradições conservadoras — e da guerra
cultural — o buzz do momento na maior parte dos países — para, a partir
daqui, dizer ainda algumas coisas sobre ruptura e continuidade, aspecto
porventura essencial para a compreensão do conservadorismo liberal.
Definamos o pano de fundo para esta reflexão. Hayek desenvolveu um tema central[1] aos
conservadorismos, e, não por acaso, também ao Brasil dos dias hoje: a
ordem; esse insigne lema nacional inscrito na vossa bandeira. De acordo
com o autor, há dois tipos de ordem: uma emergente e uma imposta; cosmos
e taxis, respectivamente, para usar a velha terminologia grega. A
primeira refere-se a uma ordem resultante da interacção dos indivíduos,
orgânica, herdeira de tradições e costumes incorporados na sociedade,
mas adaptável; uma grown order. A segunda refere-se a uma ordem criada,
imposta num certo sentido, visando um propósito final previamente
concebido; uma made order. A primeira doutrinal, a segunda ideológica. É
sob a égide desta oposição entre uma organicidade tradicional e uma
mecanicidade ideológica que vamos.
Hayek na LSE em 1948 |
Como
Morbach sublinhou, nos últimos anos foi crescendo e sendo difundida uma
convicção de que seria, mais que necessário, urgente combater as
esquerdas. A alegação? Que estas se impuseram com a ditadura do
politicamente correcto e que promovem consciente e consistentemente a
erosão dos valores e instituições mais tradicionais da sociedade. O
caminho a seguir? Travar um combate cultural contra o niilismo, contra
toda a espécie de neo-marxismo, contra o politicamente correcto, e
contra a destruição de todas as tradições e suas instituições. Como?
Reagindo, empenhando-se em negar as narrativas da esquerda. A síntese
verificada? Ser a antítese da esquerda. A conclusão indesejada? Permitir
que esta se afirme como a tese dominante.
Ora,
esta visão, para lá do efeito pragmático que aponto, é extremamente
redutora para a tradição conservadora liberal, amarrando-a a uma
exiguidade de soluções e forçando-a a abandonar os seus valores
intemporais em favor de uma resposta tíbia à crispação do momento. Mais:
falar nas direitas — e não discernir entre tradições conservadoras —
sem estabelecer as diferenças entre elas é um erro, como aliás
Rosenfield de forma clara num artigo no
Estadão assinalou. Pode funcionar conjunturalmente, como é próprio da
reacção, mas dificilmente dura o tempo necessário para agir
estruturalmente. No caso do Brasil, hoje, o que a corrupção petista uniu
na reacção, a autocracia bolsonarista começa a cindir na continuação.
Porque se a estratégia da antítese pode funcionar durante algum tempo,
ela não é duradoura nem virtuosa.
De
resto, para a discussão que nos interessa, podemos sempre afirmar que
se o conservadorismo reacionário, de inspiração francesa, datado de 1789
e bastamente desenvolvido, também em França, em finais do século XIX,
até pode ser acusado de existir para ser a antítese da esquerda —
reconhecendo-lhe com isso primazia —, o conservadorismo liberal nasce
antes, com Burke, para ser uma síntese dos seus valores essenciais com o
espírito do tempo presente. Eu sei, eu sei, esta afirmação é, no
mínimo, ousada. Desde logo porque talvez seja difícil encontrar
afirmação que gere mais polémica no pensamento conservador, que uma que
se relacione com a ideia de tempo; e que, não obstante, João Pereira
Coutinho desenvolveu com clareza inspiradora.[2]
Sobre isto, contudo, porque me parece centralmente relevante para o tema da continuidade/ruptura vale a pena desenvolver mais.
É
possível encontrar um ramo do conservadorismo que quer cortar com a
“perdição” do presente e voltar a um passado idílico de ordem
(reaccionarismo), e um outro que quer romper com este presente para
construir uma nova ordem de um Homem Novo (vanguardismo). Quer um
regresso romântico a uma idade de ouro do passado, quer um avanço para
um novo e perfeito futuro, são ambas pulsões de uma made order (taxis),
de um projecto de engenharia social, profundamente ideológico; caminho
vivamente desaconselhado pela História, cujos cemitérios estão repletos
de vítimas das ideologias. A alternativa, no pensamento conservador, é
aquela que estima o presente como herdeiro das interacções humanas, das
tradições e dos costumes: a tradição conservadora liberal.
Porém,
estas considerações sobre o tempo trazem consequências: desde logo o
repúdio pelas rupturas violentas — seja em direcção ao passado, seja em
direcção ao futuro. E isto devolve-nos à afirmação, em jeito de lamento,
de Ricardo Sondermann de que “nenhum governo completa o que foi feito
anteriormente”. Para o conservadorismo liberal a preservação do que se
ama, do que se conhece, obriga necessariamente a um cuidado do presente.
Mas não um presente hedonista, desligado dos nossos mortos e dos nossos
nascituros; antes um presente como tempo de passagem da tradição, em
que nos encontramos e sobre o qual temos responsabilidade. É por isso,
por esta continuidade, que, mais pragmaticamente falando, é essencial
também uma continuidade nas políticas públicas. O abandono sem
avaliação, nem incorporação, a ruptura inconsequente para substituir por
algo “novo” é profundamente violento para a tradição conservadora
liberal, que não dispensa as reformas, mas repudia as revoluções. Ou,
como dizia o meu conterrâneo Miguel Esteves Cardoso, “Estamos todos
presos no presente. O presente pode não ser perpétuo, mas existe. O
futuro nunca aconteceu.”
Porque
se para outras correntes conservadoras a tradição é uma “ideia”
congelada no passado à qual se quer voltar, para o conservadorismo
liberal a tradição é algo vivido e em permanente construção, legada de
geração em geração. E, como tal, são necessárias reformas que mudem o
necessário para preservar o essencial.
Aliás, sobre isto, como não recordar a translucidez das palavras de Burke?
A natureza humana é intrincada, os fins da sociedade são da maior complexidade e, por isso, nenhuma simples disposição ou orientação do poder pode ser adequada quer à natureza do homem quer às características dos seus assuntos. Quando eu oiço a simplicidade dos esquemas que se propõem e que se louvam, em qualquer nova constituição política, não tenho dificuldade em decidir que os seus artífices ou são grandemente ignorantes do seu ofício, ou totalmente negligentes do seu dever. É com cuidado infinito que qualquer homem se deve aventurar a deitar abaixo um edifício que há muito tempo responde satisfatoriamente aos fins comuns da sociedade, ou aventurar-se a construí-lo de novo, sem ter ante os seus olhos modelos e padrões de utilidade comprovada.[3]
Edmund Burke por Joshua Reynolds (c.1789). |
Nesta
afirmação, Burke, para lá de repudiar as rupturas e louvar ad
contrarium a continuidade, repudia também a ideologização da política e,
passe a redundância, qualquer espécie de ordem imposta (taxi). É por
isso que onde parece haver uma intenção ideológica, a prudência — essa
virtude conservadora de inspiração também Burkeana — parece recomendar
uma abordagem mais doutrinária. E é também por isso que pode ser a
tradição conservadora liberal a via adequada para dar resposta à muito
pertinente questão levantada por Morbach de que não basta inverter o
sinal de tudo o que vem sendo criado.
Ainda
nesta linha, e regressando a Hayek, poderíamos afirmar que é na ordem
espontânea, socialmente emergente (cosmos), consolidada pelo somatório
de interacções ao longo do tempo, que a política deve agir;
limitando-se. Mas isso traz-nos outros problemas no cerne da tal guerra
cultural, que é, na verdade, uma guerra moral, porque centrada nos
valores dominantes que suportam as práticas culturais.
A
generalidade dos conservadorismos preza a religião, a memória colectiva
e a família. Alain Benoist, que não é desta história, e a sua Nova
Direita, talvez contradigam esta assumpção, mas, lá está, lembrando o
célebre poema de Drummond de Andrade, não são desta história: da do
conservadorismo liberal. Voltando: no nosso quadro de análise, a adesão a
esses valores deve ser voluntária, livre ou, pelo contrário, imposta se
a adesão não se verificar? E no caso da segunda hipótese, como
compatibilizá-la com o facto de um dos valores desta tradição ser também
o da liberdade individual? Neste conflito, o que é que certo e errado? E
como é que o conservadorismo liberal tende a posicionar-se?
A
moral parece ser uma variável política central, quer na história do
pensamento político, quer na história das comunidades políticas; e,
indelevelmente, no pensamento conservador, lato sensu. A distinção entre
o bem e o mal, o certo e o errado, e a forma de organizar a sociedade
em sua função têm ocupado pensadores e políticos ao longo dos séculos.
Mas se estas afirmações parecem pacíficas, e extensíveis às mais
diversas visões da sociedade; se estas afirmações podem, em princípio,
ser reclamadas como válidas por correntes (e governos) mais liberais ou
mais iliberais, mais democráticos ou mais oligárquicos, mais livres ou
mais autocráticos, mais individualistas ou mais colectivistas, mais
conservadoras ou mais progressistas, mais antigas ou mais pós-modernas; o
que é que causa tanta clivagem entre elas?
A
resposta mais imediata a esta questão poderá ter a ver com os valores
estimados. A moral alicerçada em valores, e a crença de que são esses os
valores bons por oposição aos que, passe a redundância, se lhes opõem
parece ser a principal razão para os antagonismos morais.
Mas
não só. Há eventualmente uma resposta não tão imediata. Uma resposta
que se prende mais com os processos a partir dos quais os valores são
estimados, percepcionados. Não um par perfeito entre adesão e rejeição,
mas olhares diferentes sobre os mesmos valores; e radicalmente
diferentes quanto à forma de os alcançar. Uma pugnação aparente pelos
mesmos valores, mas que redundam quer em configurações políticas finais,
quer em mecanismos de defesa diferentes. Aliás, caso contrário, todos
os moralistas da história estariam alinhados. Não a despropósito, Isaiah
Berlin afirma que “quase todos os moralistas na história da humanidade
fizeram a defesa da liberdade.” Nesta linha, como não voltar novamente à
subtileza de Hayek no olhar sobre Ordem; como não recordar igualmente a
visão de Berlin no seu olhar sobre Liberdade; como não ter presente o
olhar disruptivo de Himmelfarb sobre o iluminismo britânico,
reescrevendo de forma radical a história do iluminismo? É porque usando
as mesmas palavras, defendendo os mesmos valores, podemos (estaremos com
certeza) a falar de coisas diferentes; e, desde logo, na Moral, uma
diferença entre uma Moral que guia e uma Moral que impõe, uma Moral como
tradição e uma Moral como ideologia; ou, indo mais longe, valores
morais empáticos ou valores morais de repúdio. No fundo, aqui chegados,
estamos perante o confronto entre uma normatividade ideológica e uma
adesão doutrinária. Mas divago. Atenhamo-nos novamente aos ilustres
palestrantes e voltemos ao combate cultural.
O
combate cultural trava-se nas escolas, nas Universidades, na formação
de magistrados, na formação e nas redacções de jornalistas, na
actividade cultural, na sociedade civil e, hoje em dia também, como
sinalizaram alguns palestrantes, nas redes sociais. Dos salões do
iluminismo francês às universidades de “ciências” sociais e fora sociais
anti-Davos — com Porto Alegre, no Brasil, como ponto predominante –
todos dominados pela esquerda; todos abandonados pela direita por
desleixo, incompetência, sobranceria ou porque tinham outras coisas para
fazer.
É
por isso interessante, ainda que polémica e inconclusiva, a afirmação
de Luiz Felipe Pondé, de que as redes sociais — segundo ele motor de
acção do Presidente Bolsonaro — são a expressão democrática do dia,
porque é a expressão do povo que se manifesta.
Porquê
inconclusiva? Porque o processo — e não projecto — conservador liberal
não é exclusivamente democrático, mas democrático liberal. Porque se a
vontade do povo pode ser reputada de democrática, não é necessariamente
liberal. E, por outro lado, uma sociedade liberal não é necessariamente
democrática. Sim, estimado leitor, estou falando de Rule of People e
Rule of Law. Porque se é verdade que pelo Ocidente vamos assistindo à
extrema polarização do debate político e à fragmentação do eleitorado em
excessos de escrúpulos identitários, com grande preocupação em apontar o
dedo aos democratas iliberais (vulgo populistas), frequentemente
ignoramos o risco que vem de oligarcas liberais (vulgo status quo) —
cujo expoente máximo terá tido expressão no basket of deplorables da
Srª. Clinton. E os riscos vêm de ambos os lados.
Porquê polémica? Porque a democracia não se faz pelo buzz internáutico; como nunca se fez pela turba na rua.
Eatwell e Goodwin[4] identificam
quatro tendências (4 Ds) que, segundo eles, estão a redesenhar a
política no Ocidente; a saber: a Desconfiança das elites que ignoram a
maioria dos eleitores e os tratam com condescendência, a Destruição da
noção de comunidades locais e nacionais em nome do globalismo, a
(Deprivation) privação relativa dos muitos — experimentada como absoluta
à escala individual — face à riqueza dos poucos, e o Desalinhamento do
eleitorado face aos partidos tradicionais, que aos seus olhos
representam essa elite. Isto soa familiar no Brasil, certo?
É
a percepção destas tendências, que se vão descortinando nas sociedades,
que têm levado algum conservadorismo a embarcar no discurso da emoção,
num palco – o político — onde a razão e a preservação das instituições
deveriam imperar. Dostoievski, no Crime e Castigo, bem declara que onde
“a razão falha, o diabo ajuda”. Oakeshott[5] afirma
que um homem com uma disposição conservadora percebe que, no negócio do
Governo, a paixão inflamada deve ser contrariada com o ingrediente da
moderação, por forma a restringir, diminuir, pacificar e reconciliar;
não alimentando a fogueira dos desejos, mas amainando-a.
Michael Oakeshott |
Mas,
infelizmente, Bolsonaro não terá lido Oakeshott, nem Dostoiévski; já
sobre os efeitos de esterilidade da estratégia, o Sr. Trump pode
explicar melhor.
Exagero?
Querem exemplos? O espaço público — cada vez mais alargado, cada vez
mais ignorante e cada vez mais violento – tem polarizado, um pouco em
todo o mundo ocidental, as discussões de uma forma lamentavelmente pobre
e vergonhosamente primária. Se os antifas, com a sua agenda totalitária
e violenta, chamam a si a causa do antirracismo, do outro lado, por sua
causa, logo aparecem os negacionistas do racismo, como se esta
deplorável chaga não fosse real. Se os neo-marxistas, com a sua agenda
anti-tradição, chamam, pelo menos nominalmente, a si a defesa da
igualdade de género e dos direitos LGBT, logo aparecem do outro lado os
machões, incomodados com as expressões de liberdade individual e com a
defesa dos direitos humanos, como se ainda hoje no mundo não fossem
perseguidos e mortos gays, meninas não fossem mutiladas, e mulheres não
fossem, absurda e inadmissivelmente, vítimas de maus tratos e
assassinadas, apenas por serem quem são. Se os animalistas, com a sua
agenda desumanizante e destruidora da ordem social, defendem os direitos
dos animais, logo aparecem aqueles que se iram com o tema, como se
fossem aceitáveis, e até natural da condição humana, os maus tratos a
animais. Se a jovem Greta e os seus amigos natura clamam pelo fim dos
voos de avião e o regresso às cavernas, por causa das alterações
climáticas, logo aparecem os Gordon Gekko dos tempos modernos a negarem o
impacto monstruoso dos nossos hábitos de consumo no equilíbrio da nossa
casa comum.
Na
Antiguidade matavam-se os mensageiros quando as notícias não eram do
agrado dos destinatários. Hoje matam-se as notícias, os seus autores, os
mensageiros e, temo, a nossa Civilização por arrasto.
Esta
bipolaridade política e cultural, essa desgraça redutora que sempre
tivemos de encarar, que tomou o espaço público — sendo a este propósito
impossível ignorar a indelével expressão celebrizada por Dahrendorf das
“dicotomias infelizes” — tem, desde logo, três problemas. O primeiro é
que o torna profundamente ignorante, porque o reduz à escolha entre
preto e branco. Quando assim é, e quando os seus principais actores
ocupam ruidosamente a discussão, não costuma resultar qualquer síntese
virtuosa da mesma. Porque quando o debate é tão pobre, não são teses e
antíteses que se discutem, mas apenas antíteses em oposição — sublinhar
anti e oposição. Não é conhecimento e evolução que se almeja, mas tão só
a destruição do outro, e depois, com ele, as suas posições.
O
segundo, é que quem reage — e nestas matérias tem sido a direita, já
que tem sido a esquerda a marcar toda a agenda do debate público — perde
sempre a oportunidade de chamar a si causas sobre as quais tem não só
um lastro de conquistas sociais — e com isso uma certa autoridade moral
—, como também o potencial de apresentar posições mais construtivas e
úteis que a mera reacção por oposição — por que não poucas vezes opta —
terraplanando com isso todo o seu capital de autoridade moral. E,
lamento dizer, ajeitando-se para o epíteto de cavernícola. Logo a
direita, que deveria honrar a tradição de olhar para cada indivíduo como
pessoa única, sem reduzir a sua identidade a traços identitários, e não
a subjugando a derivas rousseanas; que contribuiu, por exemplo na
Europa, decisivamente para a construção do modelo do Estado Social,
dando protecção aos mais vulneráveis, sem impedir o crescimento
económico e o prémio do mérito; respeitar a nossa casa comum, a partir
do contributo determinante do Papa Francisco com a sua Laudato Si ou dos
ensinamentos de Scruton com o seu Green Philosophy.
Finalmente,
porque perdemos todos, porque no lugar de melhorar as sociedades em que
vivemos, estamos a dinamitar os seus alicerces. Uns porque querem
destruir o nosso estilo de vida, numa busca niilista de um futuro
distópico, outros porque entram nessa dança destruidora, obliterando
todo o processo reformista essencial à conservação das coisas boas.
O
ressurgimento de uma uma via media — essa tão Oakeshotteana via —
parece a única via pacífica e útil de restabelecimento da ordem e
garante de progresso, esse tão alto desígnio brasileiro. Porque entre a
esquerda radical e empobrecedora e niilista e a direita reacionária e/ou
populista, só a via do conservadorismo liberal parece surgir como essa
via media.
Ralph Dahrendorf debatendo com Rudi Dutscke em Freiburg, 1968 |
Notas:
[1] Hayek. Law, Legislation and Liberty, cap. 02.
[2] Coutinho (2014). Conservadorismo. Lisboa.
[3] Burke. Reflexões sobre a revolução em França.
[4] Eatwell e Goodwin. National Populism: The Revolt Against Liberal Democracy.
[5] Oakeshott. Rationalism in Politics and Other Essays.
Pedro
Gomes Sanches é pesquisador vinculado ao programa de doutoramento em
Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos da Universidade
Católica Portuguesa.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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