Humor gráfico do filme, com cabeças rebentadas e membros decepados, parece um mau desenho animado. João Pereira Coutinho, via FSP:
Política
é paranoia. Para conquistar o poder, é preciso pintar o adversário com
as cores do anticristo. Mas, se isso é uma regra universal, os Estados
Unidos transformaram o esporte em modalidade olímpica. Ninguém pratica a
paranoia como eles (o Brasil está quase lá, sim, mas uma cópia é uma
cópia. A América é the real thing).
Foi
Richard Hofstadter quem melhor capturou esse estado mental em ensaio
que virou clássico (The Paranoid Style of American Politics, de 1964).
Não, a insanidade não começou com Donald Trump e a luta da nova direita
contra as “elites globalistas”. Começou logo na gênese da república e só
o nome das ameaças foi mudando com o tempo: illuminati, maçons,
católicos, socialistas, comunistas. Todos eles partilhavam o mesmo
programa: derrubar a democracia e controlar as mentes do bom povo
americano.
A
mentalidade paranoica não é um exclusivo da direita, porém. Ela
encontra-se em qualquer crente ideológico que, segundo Hofstadter,
misture na sua cabeça exagero delirante, suspeição permanente e pura
fantasia. O resultado desse coquetel é olhar para os conflitos normais
de uma sociedade democrática como uma luta apocalítica entre o bem e o
mal. É o futuro da civilização que está em jogo – e isso enforma o tom, a
fúria, o dramatismo e a energia que o paranoico põe nas suas palavras e
atos.
Para
Hofstadter, o paranoico é um duplo sofredor. Ele sofre com as tristezas
normais da existência, como qualquer um de nós; mas também sofre com as
tristezas virtuais do seu mundo virtual. Em duas palavras, dá pena. Ou,
em quatro palavras, dá vontade de rir: adoro a companhia de um bom
paranoico. O meu vício é tão extremo que amigos próximos, com familiares
paranoicos, fazem questão de me convidar para jantar. Depois, quando
estamos à mesa, um deles inicia o festival: “Tio, quer contar pro
Coutinho como a ONU trafica crianças? Ele não acredita”. E o tiozão, com
um sorriso largo e complacente, lá começa a partilhar “informações
confidenciais” que só ele possui porque só ele inventou.
Assim
se compreende por que motivo não resisti a ver A Caçada, de Craig
Zobel. No verão de 2019, houve uma polêmica feia por causa da obra. E
até Donald Trump contribuiu para o incêndio. Usando as redes, o
presidente vestia o paletó de crítico de cinema para acusar os criadores
de incitamento ao ódio contra os republicanos. Trump, convém lembrar,
não tinha assistido ao filme. Mas o trailer e o resumo da história
chegavam e sobravam. Como resultado, o filme foi enfiado na gaveta, para
não agitar as águas, sobretudo depois dos tiroteios em Dayton, em Ohio,
e em El Paso. Estreou em março de 2020 nas salas e chegou agora ao DVD.
Entendo
o nosso Donald. A Caçada é a história de como as “elites globalistas”
(eu avisei) exploram os “deploráveis” de que falava Hillary Clinton. Não
em termos econômicos ou sociais, embora isso também lá esteja nos
diálogos insultuosos e condescendentes. A exploração é homicida: as
elites sequestram os rednecks para os poderem caçar em campo aberto.
Fatalmente, existe uma redneck com treino militar apurado que não deseja
ser caçada. E, na melhor tradição Rambo, vai ajustar contas com os
globalistas.
O
filme é medíocre, aviso já, e custa a acreditar que os roteiristas Nick
Cuse e Damon Lindelof sejam os mesmos de Watchmen. É tudo uma sátira?
Fato. Mas uma sátira, não renegando a sua natureza, não pode ser uma
coleção óbvia de caricaturas e estereótipos. Para isso já temos os
piores momentos da Fox News e da CNN. Além disso, o humor gráfico do
filme, com cabeças rebentadas e membros decepados, parece um mau desenho
animado, sem a ironia (e a autoironia) de Quentin Tarantino.
Acontece
que o principal interesse do filme não está no filme propriamente dito.
Antes nas reações histéricas que provocou, sobretudo à direita, e que
de certa forma justificam a sua existência como documento sociológico.
Se
o estilo paranoico é dominante na política americana, os criadores de A
Caçada levaram esse estilo até os extremos da bizarria e do grotesco.
Podem ter falhado. Mas a história que não souberam contar ainda aguarda o
seu momento para um dia ser contada.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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