Antes genocídio demandava poder e tecnologia. Hoje, não. Basta sair de casa e pronto: somos genocidas. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Antigamente
era necessária uma rede de poder e técnica para se cometer genocídio.
No mínimo, uma estação de rádio, como os ruandeses. No máximo, grandes
obras de engenharia e infraestrutura, como os alemães. E uma grande dose
de ódio, claro.
Hoje,
ao que parece, o genocídio ficou acessível ao cidadão comum. Basta sair
de casa para comprar tomates, ou para visitar a família, ou para tomar
um chope com os amigos, e pronto: somos genocidas. Uma verdadeira
“democratização do acesso ao genocídio”, diria o burocrata petista
d’antanho, se o jargão burocrático petista não fossem águas passadas.
“Genocida eu, genocida ela”, cantaria o cantor de axé no próximo
carnaval, se houvesse próximo carnaval.
Nem
todo mundo pensa assim, naturalmente. Dia desses, Demetrio Magnoli
disse que há dois Brasis: o dos funcionários públicos e da “economia
digitalizada” (home office), capaz de ficar em lockdown pra sempre, e o
dos demais, que participam da “economia analógica ou presencial”,
aflitos com o lockdown. Surgiu então uma “polarização cognitiva” – isto
é, dois lados determinando o que é a Verdade – porque jornalistas e
acadêmicos, pertencentes ao primeiro desses Brasis, ficaram defendendo o
lockdown eterno.
Daí,
segundo Magnoli, não é de admirar que as teorias conspiratórias
floresçam no outro Brasil. Assim, para um Brasil, a Verdade é que só o
lockdown salva, enquanto que, para o outro, a Verdade é que não há
problema sanitário algum.
Concordo e discordo
Magnoli
acerta em coisas importantes. Em especial, acerta na divisão por tipo
de economia, amiúde confundida com a renda. Médicos e lojistas ganham
mais que muito trabalhador de home office, do que professore bolsista de
pós-graduação. Mas não podem fazer quarentena. É verdade que a base da
pirâmide não pode fazer quarentena e o topo pode. Mas não dá para traçar
um corte por renda e dizer “daqui pra cima, pode fazer quarentena;
daqui pra baixo, não.” Daí resulta que a classe média está em polvorosa.
Uns creem que os outros são genocidas. Outros abraçam a ideia confusa
de que a China criou um vírus letal que não precisa de nenhuma medida
sanitária para ser combatido.
Mas
Magnoli simplifica demais esse quadro de ideias vigentes. Ele peca por
imprudência ao dar por certo que a China não criou o vírus em
laboratório (vide o texto de Eli Vieira). Demétrio Magnoli escreve bem
sobre os totalitarismos da Segunda Guerra. Por que baixa a guarda
perante um regime que enfileira uma minoria étnica fardada, com cabelos
raspados, olhos vendados, e as faz marchar para vagões de trens que as
deportam para campos de trabalho escravo? O que traz à cabeça de um
estudioso da Segunda Guerra a notícia da apreensão de toneladas de
cabelo humano?
Xinjiang
pode ser Auschwitz de novo, aqui, sob os nossos olhos covardes. Olhos
que teimam em desviar para o lado por não querer acreditar que Auschwitz
é repetível. Magnoli sabe muito bem do que a Alemanha, louca e má, era
capaz. Não há por que supor que a China seja mais humana.
Meu esquema
Não
acho que exista dois Brasis cognitivamente divididos entre aqueles cujo
trabalho permite fazer lockdown e aqueles que não podem. Em matéria de
ideias, existem três categorias perante o lockdown: os observantes, os
pecadores e os hereges. Os observantes são aqueles que estão mesmo em
casa desde março porque acreditam naquele tipo de coisa que Átila diz.
São acadêmicos, funcionários públicos, desempregados com poupança e
trabalhadores de home office.
A
categoria dos pecadores é interessante. Eles saem de casa para passear e
fazer todas as suas atividades, sem se privar de nada. À guisa de
pedido de desculpas, tiram muitas fotos de máscara para postar nas redes
sociais. Poderiam tirar fotos sem máscara, se quisessem, já que as
saídas de casa implicam comer alguma coisa em público, e de máscara não
se come. Então essas pessoas aderiram com gosto àquele ritual esdrúxulo
de obedecer aos letreiros dos restaurantes e cafés onde se lê
“Obrigatório o uso de máscara”. Atravessam o saguão de máscara, sentam e
tiram-na. E botam de novo para se fotografar de cara tapada, com um
sorriso adivinhável apenas pelos olhos comprimidos.
As
máscaras são um pedido de desculpas, um salvo conduto, aos observantes.
O pecador sinaliza que pertence ao mesmo credo, como numa estrutura
religiosa.
Por
fim, há a classe de hereges: os que podem até passear menos do que os
pecadores, mas só usam máscara a contragosto e estão de saco cheio das
medidas do governo. Percebem que até placas anônimas em banheiros
públicos contêm uma ordem em tom paternalista. Estão fulos. Aí inclui-se
uma grande gama de opiniões: vai desde o velho doente que dá suas
escapadelas, mas em geral fica em casa por prudência, até o sujeito que
dá pirueta para acreditar, ao mesmo tempo, que a China liberou um vírus
mortífero e que nenhuma prevenção de contágio é necessária.
Eu
diria, portanto, que os dois Brasis são o dos que acreditam que o
lockdown é sagrado e o dos que não acreditam. As crenças deste último
grupo são bem menos homogêneas. Você vai ver, na rua, nos ônibus, muita
gente de máscara. Mas vai ver também que dão um ocasional alívio para o
nariz (o verão está de matar) e que não saem só para atividades
economicamente essenciais, pois incluem o lazer em suas vidas. Parecem
seguir um senso comum segundo o qual a Covid-19 é um problema real,
porém não apocalíptico. Esse é o grosso da população. Tem classe média e
tem pobre.
Os
adeptos da religião do lockdown praticamente se restringem àquele nicho
da classe média apontado por Magnoli, sem contudo coincidir com ele –
do contrário, Polzonoff seria um legítimo loquidauner, já que é um
jornalista trabalhando em romófis. Também existem os moradores de favela
que chegaram ao ensino superior e têm esperanças de ascender
socialmente, por isso mimetizam a moral do nicho elitista. (E é cilada:
esse nicho, cujas rendas dependem de um jeito ou de outro do Estado, é
justamente o que está em franca decadência, e não vai querer dividir as
minguantes receitas com novatos.)
Os antibolsonaristas incondicionais
O
que chama a atenção é a homogeneidade de opiniões desse grupo. Muitas
vezes estão convictos de que quem não participa da sua fé tem uma falha
de caráter. Contam-se nos dedos os observantes que acham que seus amigos
estão apenas equivocados. Tal como nas demais religiões, existem os
tolerantes e os intolerantes. Parece-me, porém, que os intolerantes são
maioria nessa religião.
E
é compreensível que assim seja. Afinal, se a Ciência provou que devemos
tremer ante o vírus horrendo e que máscaras e distanciamento são
obrigatórios, a conclusão necessária é que todos os que não cumprem são
mentecaptos ou malvados. Procuram, então, uma explicação para a nossa
impudência, e encontram Bolsonaro: teria sido ele, andando sem máscara,
falando de gripezinha, o culpado. Se não fosse Bolsonaro, milhões de
brasileiros achariam uma ideia perfeitamente sensata ficar trancado em
casa por quase um ano sem ver vivalma, olhando pra Internet e TV.
Entra
em campo então o antibolsonarismo incondicional, aquele sentimento que
manda considerar qualquer coisa – até o regime genocida de Pequim –
melhor do que Bolsonaro, porque sim. (Nesta altura, o tipo descrito dirá
“Que passada de pano!”, ao que eu devolvo que o parvo Bolsonaro me é
quase indiferente, e graças a isso não passei a vergonha de ficar
defendendo incondicionalmente a “vacina do Butantã”, para acordar com
amnésia hoje).
E
aí temos um paradoxo: a aprovação de Bolsonaro subiu com o auxílio
emergencial entre a gente comum. Enquanto isso, o antibolsonarismo
incondicional dispara entre pessoas trancadas em casa que não saem da
Internet nem desligam a TV. Não faço ideia do que sairá dessa combinação
de coisas.
Algumas memórias
Desde
março, viajei um bocado, encontrei amigos e fui visitar família em
outro estado. Nunca temi pela minha saúde, pois sou jovem e sem
problemas. Nunca ostentei foto de máscara e não boto fé na eficácia
desse paninho na cara. (A Nature mostrou uma porção de estudos que
comprovam a eficácia de máscaras hospitalares, o que não é exatamente
uma surpresa). Eu temia, isso sim, pela gorda hipertensa e pelo
nonagenário acamado com os quais moro.
Acontece
que a gorda hipertensa é médica, tem que trabalhar, e o nonagenário
acamado tem cuidadoras se revezando. Ou seja: eu era a pessoa que
oferecia menos riscos, já que trabalho dentro de casa. E pensava
tranquila, com fatalismo: é cruzar os dedos para eles saírem bem da
doença, porque uma hora esse vírus vem parar dentro de casa.
O
vírus chegou mesmo. Uma das cuidadoras achava que estava com
chicungunha. (Em Salvador tivemos um surto de chicungunha no começo da
quarentena). Ela saiu daqui com os sintomas, depois de ter dormido com o
nonagenário. Fez o teste, e era Covid-19. Depois todos fizemos testes
(daqueles que lembram a operação egípcia para tirar o cérebro da múmia) e
não tivemos nada.
Eu
julgava que a Covid-19 era uma fatalidade iminente, e errei. Acertei ao
menos que a presença do vírus era uma fatalidade iminente. Outra coisa a
que assisti com fatalismo são os efeitos da falta de academia de
ginástica para quem realmente precisa dela. Os males da má alimentação
aliada à falta de exercícios são mais certos do que os males da Covid-19
– que ataca justamente os gordos. Por fim, ainda não pude ver – mas é
certo que verei – os males da falta de vida social sobre a saúde mental.
Se
esta herege aqui puder dar um conselho, é este: não viva sob tensão.
Tensão só serve para situações emergenciais que demandem reação física
rápida. Tensão mata no longo prazo e embota o pensamento. Vejo mais
suicidas do que genocidas por aí.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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