Joaquim Nabuco |
Articulista do Observador, Jorge Fernandes deixa sugestões de leitura para o próximo ano:
O
ano de 2020 terá certamente poucas coisas boas para recordar. No
entanto, os livros lidos ao longo deste ano em que o vírus obrigou o
mundo a estar em casa ficarão na memória. Este ano li mais do que o
costume, não necessariamente por causa da pandemia – até porque, quem me
conhece, sabe que já estou em semi-confinamento há anos – mas porque
tomei, finalmente, a decisão sensata de eliminar as minhas contas nas
redes sociais. Em Março, nas primeiras semanas de confinamento, o nível
de insulto e debate sobre a pandemia nas redes atingiu o paroxismo,
levando-me a abandoná-las de vez. O balanço? Não poderia ser mais
positivo. Quaisquer benefícios profissionais da presença nas redes, e
existem sem dúvida, são claramente ultrapassados pela higiene mental de
não estar exposto continuadamente ao bas-fond da sociedade. Esta crónica
é a minha última publicação no Observador antes do Natal. Como não pode
haver Natal sem livros nos presentes, deixo aqui uma lista dos livros
dos quais tirei mais prazer em 2020.
James Wood: Selected Essays, 1997-2019.
Uma recolha dos melhores ensaios de James Wood sobre literatura, onde
não faltam os temas clássicos que permeiam toda a sua obra, mesmo quando
subliminarmente: o problema da Teodiceia, a importância da narrativa
limpa e sem ranço retórico, o viver entre dois países separados por um
oceano e a mesma língua. Tive o privilégio de ser aluno de Wood durante 3
semestres em Harvard e, ao ler estes ensaios, parece que consigo ouvir a
sua voz a dizer no final da aula: “we only have ten minutes left, so
why don’t we just read for pleasure?”.
Mónica Baldaque: Sapatos de Corda – Agustina.
A filha de Agustina Bessa Luís entrega-nos um documento maravilhoso
onde podemos olhar para a frincha entreaberta da intimidade da
escritora, que, ao longo de décadas, apesar de estar no espaço público,
foi sempre reservada sobre a sua vida. O livro é um pouco desigual. Por
vezes, a figura de Baldaque sobressai em demasia, como quando fala sobre
as venturas e desventuras na museologia Portuguesa, e é-nos dito muito
pouco sobre o papel de Alberto Luís na obra de Agustina. De qualquer
forma, altamente recomendável!
Joaquim Nabuco: A Minha Formação.
Em 2000, Caetano Veloso fez um disco chamado Noites do Norte, inspirado
na obra de Nabuco, um dos deputados que lutou no Brasil pelo
abolicionismo no século XIX. Apesar de ter ouvido o disco dezenas
(centenas?) de vezes ao longo das últimas duas décadas, nunca tinha tido
oportunidade/vontade de ler a obra maior de Nabuco. A edição Portuguesa
é de 2015, na colecção da Glaciar, apoiada pela Gulbenkian. Confesso
que a primeira parte do livro foi uma enorme desilusão. Nesta parte,
Nabuco descreve longamente o seu deslumbramento (vagamente saloio) com
Inglaterra, Bagehot e as instituições do parlamentarismo, como se estas
surgissem de forma natural em cada país e não fossem endógenas às
escolhas que as elites fazem. Enquanto lia esta parte percebi,
finalmente, o motivo pelo qual João Pereira Coutinho prefaciou o livro,
pormenor que não tinha conseguido perceber anteriormente. No entanto, a
perseverança é necessária! O último terço do livro, na qual Nabuco
descreve a sua infância e a sua condição de filho de um dono de
escravos, o seu despertar para o problema da escravatura e o seu
trabalho legislativo para pôr fim a tal abjecção, é profundamente
tocante e muito bem escrito.
Helen Garner: The Spare Room.
Em 2006, Helen Garner, escritora Australiana, escreveu esta obra
singular, na qual descreve a relação de duas amigas de longa data,
quando uma delas, doente com cancro, pede à outra para a receber em sua
casa enquanto ela faz tratamentos em Melbourne. Uma obra de autoficção
onde está muita coisa a acontecer, apesar da (aparente) simplicidade.
Hadley Freeman: House of Glass — The story and secrets of a Twentieth Century Jewish family.
Talvez o livro que mais prazer me deu este ano. Um livro de não-ficção
sobre uma família judaica, de origem Polaca, que foge da sua terra natal
na Galícia e dos pogroms dos anos 20 para Paris. Julgando-se em
segurança em França, os membros da família subestimam a ameaça Nazi à
comunidade judaica em França no final dos anos 30, acabando por ter
sortes bastante diferentes.
Annie Ernaux: Os Anos.
A história de França e de um certa geração contada num misto de
história da vida privada misturada com História maior do país. Passando
pelos anos do pós-Guerra, nos quais esta ainda dominava os almoços
familiares de Domingo, o Maio de 68, a eleição de Mitterrand em 1981 e
os auspícios de tomada de poder dos derrotados de Maio, e terminando no
dealbar do novo milénio. O mais interessante em Ernaux, e na sua
geração, de resto, é a ausência total de noção do seu próprio
privilégio. Ao longo do livro, a autora não consegue colocar os
privilégios da sua geração em perspectiva com as gerações anteriores e
posteriores. Um documento notável!
Dorthe Nors: Wild Swims – Stories.
Uma escritora Dinamarquesa que tem uma mão simplesmente fantástica para
o conto. Não sendo minimalista, não há aqui nada mais do que o
necessário. Passados em várias latitudes, os contos deste volume são uma
óptima porta de entrada para o universo de Nors. A manter debaixo de
olho.
Magda Szabó – A Balada de Iza.
Supostamente o melhor livro de Szabó, escritora maior da literatura
Húngara, é A Porta. Confesso que já tentei começar A Porta duas vezes,
mas, em ambas as vezes, parei ao fim de algumas páginas. Provavelmente,
ainda não tive sorte de ler o livro no momento certo. Li com muito
prazer este Balada de Iza. O livro é algo bizarro e confesso que cheguei
ao fim a querer mais, como se houvesse coisas por dizer acerca de Iza,
médica que traz a mãe para viver com ela para Budapeste Comunista depois
da morte do pai. Fiquei sem saber (ou perceber?) se Iza é uma
personagem com vida política, ou, pelo contrário, se a proscrição do pai
do cargo de juiz por motivos políticos na sua infância a tornou uma
niilista cínica. A necessitar de reler para procurar a resposta ao
puzzle.
Claire Messud – Kant’s Little Prussian Head and Other Reasons Why I Write: An Authobriography through Essays.
Não consigo achar Claire Messud uma escritora maior. No entanto,
confesso que gostei desta “autobiografia”. A primeira parte é genial,
simplesmente. Messud tem, pelo menos, dois ensaios de antologia sobre a
família, a vida dos pais, e a morte do pai. Ajuda o facto do pai ser um
Judeu Francês, que trabalhou para o MNE Francês antes, durante e depois
da Guerra, com uma história riquíssima. A indecisão sobre a ida a Beirut
enquanto o pai morria no Connecticut é um momento maior. A segunda
parte do livro era dispensável.
Robert Arlt: Águas Fortes Portenhas.
Gostei muito de ler a maior parte dos contos de Arlt, escritor
Argentino, que consegue construir personagens muito interessantes. Não
sendo, exactamente, um leitor de literatura Latino Americana, com
excepção do Brasil, passei momentos muito interessantes, alguns até
divertidos, a ler a colectânea editada pela Ponto de Exclamação.
Zadie Smith: Intimations – Six Essays e Fang Fang: Wuhan Diary – Dispatches from a Quarantined City.
A literatura sobre a pandemia explodirá nos próximos anos. Até agora li
apenas estes dois livros, com perspectivas muito diferentes. Smith em
Nova Iorque descreve a interacção com os vizinhos e as lojas numa cidade
que rapidamente se esvazia. Fang Fang escreveu este diário de Wuhan nos
momentos mais negros da pandemia na China. Neste livro percebe-se como
um regime totalitário Comunista (perdão pelo pleonasmo) tem instrumentos
muito mais poderosos do que as democracias liberais para coartar a
liberdade (e o vírus).
Vanessa Spingora: Consentimento.
A sociedade Francesa tem uma abordagem, no mínimo, sui generis à vida
sexual da elite política, intelectual e cultural. Ao contrário dos
Americanos, puritanos até ao tutano, durante décadas, em França foi
visto com total normalidade não só a promiscuidade, mas o abuso sexual,
desde que feitos em nome da arte, claro. No entanto, o ambiente está a
mudar. O livro de Spingora não seria possível há uns anos, antes de
movimentos como o MeToo. Nele, a autora narra na primeira pessoa, a sua
relação com o escritor Gabriel Matzneff, quando tinha 13 anos e este
último mais de 50. O livro é bastante chocante pela crueza com que a
autora narra os acontecimentos. Cito “Quando anuncio à minha mãe que
deixei o G., primeiro ela fica sem voz, depois diz-me, com ar
entristecido: ‘Coitado, mas tens a certeza? Ele adora-te’”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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