Guanabara é cenário de brutalidade contra desvalidos e leniência com ricos poderosos. José Nêumanne, via Estadão:
De
1808, quando dom João VI desembarcou na baía, cuja visão encantou Cole
Porter, a 1960, quando JK inaugurou a “novacap”, o Rio de Janeiro foi
corte e capital da continental Pindorama: 212 anos de poder, charme e
glória. Nestes últimos seis decênios, foi Estado da Guanabara, cidade
estadual, desaparecida após 15 anos, ora capital do modesto Estado
vizinho ao extinto Distrito Federal, a que foi anexado na fusão por obra
e desgraça da fase mais brutal da ditadura militar.
Ironia
de Clio, deusa da História, o terrível tribuno e talentoso orador que
seria o melhor governador do País na menor e menos longeva unidade da
Federação, Carlos Lacerda, foi cúmplice do golpe militar que destruiu a
democracia liberal de 1946. E fez da “Cidade Maravilhosa” um teatro de
horror. Tradutor e intérprete da tragédia Julius Caesar, de Shakespeare,
o fluminense de Vassouras fundou o Rio moderno com os Túneis Rebouças e
Santa Bárbara e o Parque do Flamengo. Fez ainda a adutora do Rio
Guandu, solução para o incômodo cantado na marchinha Vagalume Rio de
Janeiro, de Victor Simon e Fernando Martins, sucesso dos Anjos do
Inferno no carnaval de 1954: “Rio de Janeiro, cidade que me seduz, de
dia falta água, de noite falta luz”.
O
“Corvo”, personagem do caricaturista Lanfranco Vaselli, o Lan, foi o
apelido dado a Lacerda por quem nunca perdoou seu vezo golpista, que
levou Getúlio Vargas ao suicídio. Morto em 1977, ele não tomou
conhecimento do atentado terrorista a bombas contra a adutora planejado
pelos capitães Jair Bolsonaro e Fábio Passos, dez anos depois. O ato
protestava contra os baixos soldos e o então ministro do Exército,
general Leônidas Pires Gonçalves, conforme ele disse à Veja: “Nosso
Exército é uma vergonha nacional, e o ministro está se saindo como um
segundo Pinochet”. O oficial foi processado por “deslealdade e
indisciplina” e absolvido por decisão absurda do Superior Tribunal
Militar, que considerou laudos “inconclusivos” de croquis provas a favor
do réu.
O
dono da bela voz que deixou gravados os textos imortais do bardo de
Stratford-upon-Avon sobre a conjura contra César talvez concordasse com o
terrorista fardado, após ver abortado seu projeto de disputar a
Presidência, em 1965, com JK, também traído pelos militares. Mas a morte
o privou de testemunhar o terrorismo malsucedido do atual presidente. E
ainda o pouparia de ver o “mar de lama” que atribuía a seu inimigo
maior, Getúlio Vargas, tornar-se uma poça, instalada nos jardins do
Palácio Guanabara, de cujos aposentos cinco de seus sucessores no
governo do Estado fundido foram levados para celas.
Quem
acompanha o destino do Rio pode às vezes se deixar seduzir pelo
lugar-comum de atribuir a características especiais da urbe construída
entre o mar e a montanha seu inglório destino de hoje. De fato, o “Rio
de Janeiro, fevereiro e março”, cantado pelo baiano Gilberto Gil, é o
retrato ampliado de uma situação além do carnaval de fevereiro e do
golpe de março (ou abril?). Nada há de específico nela que seja
substancialmente diferente do restante do Brasil. Ampliada pelas lentes
das redes de televisão nela instaladas, na metrópole onde Lacerda morreu
e a famiglia Bolsonaro passou a mandar por decisão judicial, a
realidade é estampada por um gaú-cho de Rondinha com carreira jurídica
no Paraná, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin. Em
ofício ao presidente do órgão, o carioca da gema Luiz Fux, ele
descreveu o sistema criminal brasileiro como “injusto e desigual” para a
população menos abastada e “leniente com os poderosos”.
O
panorama atual do Estado é uma amostra que salta aos olhos com as
distorções definidas de forma exata. O governador Wilson Witzel, militar
de origem e juiz de ofício, foi afastado por seis meses pela Operação
Placebo, que também investiga o vice, Cláudio Castro, que assumiu o
cargo sem perspectiva de volta do titular. O pastor Everaldo Dias
Pereira, tido como governador ad hoc na gestão punida, foi preso. Filhos
do presidente da República, Flávio, Carlos e Eduardo, assumiram o lugar
daquele que os batizou no Rio Jordão.
Disputa
a reeleição o prefeito Marcelo Crivella, bispo licenciado de uma das
confissões beneficiadas por lei esdrúxula do Congresso perdoando R$ 1
bilhão de multas por infrações, que mereceu do pai do trio o absurdo de
vetar e sugerir aos asseclas no Congresso a derrubada do próprio veto. A
desembargadora Rosa Helena Guita quebrou o sigilo do processo contra
Crivella, argumentando que a medida, “ao contrário do que se argumenta,
está escorada em extenso material probatório, fruto de criterioso
trabalho de investigação”. Por enquanto, a sanção aplicada ao alcaide
limita-se à expulsão do lugar de papagaio de pirata do presidente da
República em solenidade oficial.
O
domicílio eleitoral do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo
Maia, que há 18 meses engavetou o projeto que põe fim ao foro
privilegiado de parlamentares, é o Rio. Como o dos beneficiados
Flordelis dos Santos de Souza e Flávio Bolsonaro. Mas isso é mera
coincidência geográfica.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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