O Estado da Arte publica a introdução do filósofo Karl Jaspers ao livro A Questão da Culpa, uma série de palestras sobre a situação na Alemanha no imediado pós-guerra:
Concebido em 1945, o livro veio a lume no ano seguinte — quando os terríveis crimes do regime nazista foram revelados nos julgamentos de Nuremberg. Ainda é atualíssima a reflexão de como o embate de opiniões, sem que nenhum lado quisesse realmente escutar o outro, ainda na década de 1930, ajudou a gestar a mentalidade que culminaria no nazismo. Jaspers — que foi afastado de seu posto universitário em 1937 pelo fato de ser casado com uma judia — voltou do isolamento e desempenhou, a partir do pós-guerra, o papel de consciência moral de um país que precisava se reconstruir em todos os campos. Este livro fundamental é a maior prova de sua emblemática honestidade intelectual. Mais do que isso, é um livro que diz muito sobre o espírito de seu tempo — e nosso também.
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| Karl Jaspers |
Precisamos nos orientar espiritualmente uns em relação aos outros na
Alemanha. Ainda não temos o chão comum. Tentamos nos encontrar.
O que lhes apresento aqui cresceu a partir do diálogo, algo que nós todos, cada um em seu círculo, executamos.
Cada um terá de lidar a seu modo com os pensamentos que exponho aqui —
não deverá simplesmente aceitá-los como válidos, mas ponderar —, porém
não deverá simplesmente refutar, mas experimentar, presentificar e
examinar.
Queremos aprender a falar uns com os outros. Isso significa que não
queremos apenas repetir nossa opinião, mas ouvir o que pensa o outro.
Não queremos apenas afirmar, mas de uma forma contextualizada refletir,
ouvir argumentos, permanecer dispostos a uma nova percepção. Queremos
experimentar nos colocarmos na perspectiva do outro. Sim, queremos mesmo
sair em busca daquilo que nos contradiz. Acolher o que é comum no
contraditório é mais importante do que o estabelecimento prematuro de
pontos de vista exclusivos, com os quais se encerra a conversa pela
ausência de perspectivas de sucesso.
É tão fácil defender juízos firmes carregando nas emoções; é difícil
elaborar de forma serena. É fácil interromper a comunicação com
afirmações bruscas; é difícil penetrar incessantemente no fundo da
verdade, para além das afirmações. É fácil adotar uma opinião e mantê-la
para poupar-se o trabalho de continuar pensando; é difícil avançar
passo a passo e não impedir mais questionamentos.
Precisamos restabelecer a disposição ao raciocínio. Parte disso é que
não nos anestesiemos em meio a sentimentos de orgulho, de desespero, de
indignação, de resistência, de vingança, de desprezo; mas que
coloquemos esses sentimentos de lado e vejamos o que realmente está aí.
Mas vale também o inverso em relação ao falarmos uns com os outros: é
fácil pensar sem compromisso e nunca se decidir; é difícil tomar a
decisão certa em meio à claridade do pensamento aberto para todas as
possibilidades. É fácil usar a fala para se esquivar da
responsabilidade; é difícil manter a decisão, mas sem renitência. É
fácil a qualquer tempo seguir o caminho de menor resistência; é difícil
manter o caminho decidido ao atravessar toda a mobilidade e a
maleabilidade do pensamento conduzido pela decisão absoluta.
Adentramos o espaço das causas quando realmente conseguimos falar uns
com os outros. Para tanto, sempre deve permanecer em nós algo que
confia no outro e que merece confiança. Então, na fala alternada,
torna-se possível aquele silêncio em que se escuta e se ouve
conjuntamente o que é verdade.
Por isso, não fiquemos com raiva uns dos outros, mas tentemos
encontrar o caminho juntos. A emoção depõe contra a verdade do falante.
Não queremos bater no peito pateticamente para ofender o outro, não
queremos enaltecer em autossatisfação aquilo que pretende ofender o
outro. Mas não deve haver barreiras impostas por limites moderadores,
nem benevolência por meio de omissão, nem consolo baseado em ilusão. Não
há pergunta que não possa ser feita, não há obviedade cara, nem
sentimento ou mentira que devam ser protegidos. Mas, principalmente, não
deve ser permitido bater-se no rosto com ousadia em razão de juízos
desafiadores, infundados e levianos. Nós somos um conjunto; precisamos
sentir nossa causa comum quando dialogamos.
Nesses diálogos, ninguém é juiz do outro, todos são ao mesmo tempo
réu e juiz. Por todos esses anos, ouvimos como foram desprezadas outras
pessoas. Não queremos dar continuidade a isso.
Mas isso sempre funciona apenas em parte. Todos nós tendemos a nos
justificar e a nos atacar, quando sentimos forças antagônicas, por meio
de acusações. Hoje, mais do que nunca, precisamos nos examinar. Deixemos
claro o seguinte: pelo andar das coisas, parece que sempre o
sobrevivente tem razão. O sucesso parece confirmar isso. Quem está por
cima acredita ter a seu lado a verdade de uma causa justa. Encontra-se
aí a profunda injustiça da cegueira diante dos fracassados, dos
impotentes, daqueles que sempre são pisoteados pelos acontecimentos.
É assim a todo tempo. Foi assim com o barulho prussiano-alemão depois
de 1866 e 1870, que provocou o horror de Nietzsche. Foi assim também
com o barulho ainda mais feroz do nacional-socialismo desde 1933.
Então, agora precisamos perguntar a nós mesmos se não estamos
sucumbindo novamente a outro barulho, se não estamos ficando
presunçosos, se não estamos nos concedendo uma legitimidade pelo simples
fato de termos sobrevivido e sofrido.
Tenhamos claro o seguinte: o fato de vivermos e sobrevivermos não
ocorre graças a nós; o fato de estarmos em novas situações com novas
chances em meio à terrível destruição não foi conquistado com esforço
próprio. Não nos atribuamos uma legitimidade que não é nossa de direito.
Como todo governo alemão hoje é um governo autoritário instituído
pelos Aliados, então todo alemão, cada um de nós, hoje, deve seu espaço
de atuação à vontade ou à permissão dos Aliados. Este é um fato cruel.
Nossa honestidade nos obriga a não esquecê-lo nem um único dia. Ela nos
protege da soberba, ensina-nos a humildade.
Hoje também, como a todo tempo, há pessoas indignadas, que acreditam
ter razão e entendem como fruto de seu esforço aquilo que aconteceu por
meio de outros.
Ninguém pode se esquivar totalmente dessa situação. Nós mesmos
estamos indignados. Que a indignação se purifique. Nós lutamos pela
purificação da alma.
Faz parte disso não apenas o trabalho da razão, mas, estimulado por
ela, um trabalho do coração. Os senhores, que estão ouvindo esta
preleção, estarão em sintonia comigo ou terão sentimentos contra mim, e
eu mesmo não me movimentarei sem agitação nas profundezas de meu
pensamento. Mesmo se nesta preleção unilateral não estamos falando de
fato um com o outro, não posso evitar que um ou outro se sinta
interpelado quase pessoalmente. De antemão, peço aos senhores:
desculpem-me se ofendo. Não quero fazê-lo. Mas estou decidido a ousar os
pensamentos mais radicais com a maior ponderação possível.
Quando aprendemos a falar uns com os outros, conquistamos mais do que
a conexão entre nós. Criamos, assim, a base imprescindível para
podermos falar com os outros povos.
É na abertura e na sinceridade plenas que residem não somente a nossa
dignidade — que também é possível na impotência — mas também a nossa
própria oportunidade. A questão que se coloca para todo alemão é se ele
quer seguir por esse caminho, correndo o risco de todas as decepções,
correndo o risco de mais perdas, e do cômodo abuso por parte dos
poderosos. A resposta: esse caminho é o único que preserva a nossa alma
de uma existência de pária. O que resultará desse caminho veremos
adiante. É uma ousadia espiritual e política à beira do abismo. Se o
sucesso for possível, então ele será somente a longo prazo. Ainda
desconfiarão de nós por muito tempo.
Uma postura que silencia, orgulhosa, por um breve momento pode ser
uma máscara justificada, atrás da qual se busca respirar e recobrar a
consciência. Mas ela se transformará em autoengano e em astúcia diante
do outro se for permitido esconder-se, renitente, em si mesmo, se ela
impedir o esclarecimento para escapar da compungência da realidade. O
orgulho que, erroneamente, se julga masculino e que, na verdade, se
esquiva, toma o silêncio como a última postura de luta que ainda
permanece em meio à impotência.
Falar um com o outro está difícil hoje na Alemanha, mas é a mais
importante das tarefas, porque nós somos extremamente diferentes uns dos
outros em tudo o que vivemos, sentimos, desejamos e fizemos. Debaixo da
coberta de uma comunidade forçada pelo exterior, escondia-se aquilo que
está cheio de possibilidades e que agora pode desabrochar.
Precisamos ver as dificuldades nas situações e posturas divergentes das nossas próprias e aprender a compartilhá-las.
Em linhas gerais, talvez nós, alemães, tenhamos em comum apenas
coisas negativas: pertencermos a um povo de um Estado irremediavelmente
derrotado, entregues à graça ou à desgraça dos vencedores; a falta de um
chão comum que nos una a todos; a dispersão: cada um essencialmente só
tem respaldo de si mesmo e, ainda assim, enquanto indivíduo, está
desamparado. Comum a nós é a ausência de comunidade.
Em meio ao silêncio por baixo das falas niveladoras da propaganda
pública desses doze anos, adotamos posturas internas muito diversas. Na
Alemanha, não temos uma Constituição unificadora de nossas almas, juízos
de valor e desejos em comum. Justamente porque aquilo em que
acreditamos por todos esses anos, que julgávamos ser verdade, que para
nós era o sentido da vida, era tão divergente, agora também a
transformação precisa ser diferente para cada um. Todos nós nos
transformamos. Mas não trilhamos todos o mesmo caminho em direção ao
novo chão da verdade comum, buscado por nós e que nos unirá de novo.
Numa tal catástrofe, cada um poderá se refundir num renascimento, sem
temer tornar-se desonrado nesse processo.
O fato de eclodirem agora essas diferenças é consequência da
impossibilidade de um debate público durante doze anos, e mesmo na vida
privada tudo o que fosse oposição se limitava a conversas
ultraparticulares, sendo que mesmo diante de amigos se era reticente.
Público e geral — e por isso sugestivo e quase óbvio para a juventude
que cresceu nesse contexto — era apenas o modo nacional-socialista de
pensar e de falar.
Como hoje podemos falar livremente de novo, sentimo-nos como se
viéssemos de mundos distintos. E, apesar disso, falamos todos a língua
alemã, todos nascemos neste país e temos aqui a nossa pátria.
Queremos nos encontrar uns com os outros, conversar, buscar nos convencer.
Nossas concepções sobre os acontecimentos eram divergentes ao ponto
da incompatibilidade: alguns vivenciaram a ruptura já em 1933 com a
experiência da indignidade nacional, outros a partir de junho de 1934,
outros ainda em 1938 com os pogroms judaicos, muitos a partir de 1942,
quando a derrota era possível, ou então desde 1943, quando ela era
certa, e alguns apenas em 1945. Para os primeiros, 1945 foi a libertação
para novas possibilidades, já para os outros, foram os piores dias, por
ser o fim do Reich supostamente nacional.
Alguns viram a origem da desgraça com radicalismo e tiraram as
conclusões disso. Já em 1933, eles desejavam a intervenção e a entrada
das Forças Ocidentais. Como agora as portas do presídio alemão estão
trancadas, a libertação só poderá vir de fora. O futuro da alma alemã
estava atrelado a essa libertação. Se a destruição da essência alemã não
se completasse, então essa libertação deveria acontecer o mais rápido
possível através dos Estados irmãos de mentalidade ocidental, em nome do
interesse comum europeu. Essa libertação não aconteceu, mas o caminho
levou até 1945, para a mais terrível destruição de todas as nossas
realidades físicas e morais.
Mas essa concepção não é comum a todos nós. Além daqueles que viam ou
ainda veem no nacional-socialismo a era de ouro, havia opositores ao
nacional-socialismo que estavam convictos de que uma vitória da Alemanha
de Hitler não teria como consequência a destruição da essência alemã.
Antes eles viam numa vitória da Alemanha as bases de um grande futuro,
porque acreditavam que uma Alemanha triunfante se livraria do partido,
fosse imediatamente, fosse pela morte de Hitler. Eles não acreditavam na
máxima de que todo poder de Estado só se segura pelas forças que o
fundaram, e também não acreditavam que o terror, pela natureza da coisa,
justamente depois da vitória seria inquebrável, que depois de uma
vitória e depois da dispensa do Exército a Alemanha seria mantida sob
controle pela SS como um povo escravo, para exercer um domínio mundial
árido, aniquilador, desprovido de liberdade, em que tudo o que era
alemão seria sufocado.
Em sua configuração especial, a miséria hoje é bem diferente.
Certamente todos têm preocupações, limitações severas, sofrimento
físico, mas trata-se de algo bem diferente: se alguém ainda tem casa e
objetos de casa, ou se vive diante da perda de tudo por bombardeios; se
alguém sofreu ou teve perdas na luta no front, em casa ou no campo de
concentração; se foi perseguido pela Gestapo ou se foi beneficiário do
regime mesmo com medo. Quase todos perderam amigos próximos ou parentes,
mas a forma pela qual os perdeu — pela luta no front, por bombas,
campos de concentração ou assassinatos em massa por parte do regime —
tem como consequência posturas íntimas muito diferentes entre si. O
sofrimento varia de acordo com o tipo. A maioria só entende realmente o
próprio sofrimento. Todos tendem a interpretar grandes perdas e
sofrimento como sacrifício, mas a razão desse sacrifício tem
interpretações tão abissalmente distintas que num primeiro momento isso
separa as pessoas.
Impactante é a diferença pela perda de uma fé. Apenas uma fé
eclesiástica ou filosófica de base transcendente consegue manter-se ao
longo de todas essas catástrofes. O que tinha validade no mundo
esfacelou-se. O nacional-socialista devoto só consegue ir atrás de
sonhos obsoletos através de pensamentos ainda mais absurdos do que
aqueles do seu tempo de poder. O nacionalista encontra-se desorientado
entre a rejeição do nacional-socialismo, que ele percebe, e a realidade
da situação da Alemanha.
Todas essas diferenciações levam-nos constantemente à ruptura entre
nós, alemães, e ainda mais porque falta à nossa existência a base comum
ético-política. Temos apenas a sombra do chão político realmente comum, e
poderíamos ser solidários permanecendo de pé sobre ele, mesmo nas
disputas mais intensas. Falta-nos em grande medida falarmos uns com os
outros e ouvirmos uns aos outros.
Isso ainda é agravado pelo fato de que tantas pessoas não querem
pensar realmente. Elas buscam apenas palavras de ordem e obediência.
Elas não perguntam e elas não respondem, a não ser pela repetição de
fórmulas batidas. Elas só sabem afirmar e obedecer, e não examinar e
reconhecer, e por isso também não podem ser convencidas. Como falar com
pessoas que não querem ir aonde se examina e se raciocina, onde as
pessoas buscam a sua autonomia por meio do reconhecimento e da
convicção?
A Alemanha só poderá voltar a si se nós, alemães, nos encontrarmos na
comunicação. Se aprendermos a realmente falarmos uns com os outros, nós
o faremos apenas com a consciência de nossa grande diversidade.
Unidade por coerção de nada serve; ela se esvai como um clarão na
catástrofe. Consenso através do diálogo e da compreensão leva à
comunidade que se sustenta.
Quando representamos o típico, ninguém precisa se classificar. Quem se sentir representado o faz por conta e risco.

Nossos agradecimentos à todavia, personificada aqui por Leandro Sarmatz e Nathalia Pazini.



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