Em entrevista a Gabriel Almeida Prado, para o Estado da Arte,
o psicólogo Steven Pinker fala de seu último livro e explica o que
entende por iluminismo, que - ainda bem - não tem tanto a ver com os
movimentos históricos do século XVIII, mas não deixa de manifestar uma
crença talvez excessiva na razão, calcada mais no otimismo que no
realismo:
Steven Pinker poderia ser um acadêmico como qualquer outro. Professor
de psicologia da Universidade de Harvard, onde obteve seu doutorado em
1979, Pinker fez uma carreira investigando a linguagem e a cognição
humana. Seu trabalho é ainda hoje bastante influente entre os
pesquisadores da área, mas certamente não foi o que fez ele deixar de
ser um acadêmico como qualquer outro. Explicar como crianças aprendem
verbos irregulares pode até fazer sucesso entre cientistas cognitivos,
mas não incita o calor das massas.
Foi quando começou a escrever para o público geral que passou a
chamar atenção. Em 2002, publicou Tábula Rasa, livro em que argumenta
que o comportamento humano é substancialmente regido pela nossa história
evolutiva e que características como as habilidades matemáticas ou a
propensão à violência estão sujeitas a uma forte influência genética.
Desagradou diversos acadêmicos que alegam que o que chamamos de natureza
humana é só um conjunto de construções sociais, e que é a cultura — ou
as condições materiais — que determina como pensamos e agimos. Seu
ativismo a favor da ciência também acumulou descontentes, como grupos
religiosos. Controvérsia a controvérsia, Pinker foi deixando de ser um
acadêmico como qualquer outro para se tornar uma mente afamada do debate
público, um nome indispensável nas listas de pessoas mais influentes do
mundo
No ano passado, ele voltou ao foco das atenções com seu novo livro, O
Novo Iluminismo. A polêmica da vez? Dizer que o mundo nunca esteve
melhor.
Ele já havia tratado do tema em um livro anterior, Os Anjos Bons da
Nossa Natureza, publicado em 2011. Nele, Pinker argumenta que a
violência tem declinado década após década e apresenta estatísticas para
explicar por quê. Agora, em O Novo Iluminismo, ele vai além: não foi só
em segurança que o mundo melhorou, mas também em democracia,
longevidade, educação, paz, direitos civis… a lista continua. As razões
do progresso? As ideias defendidas pelos filósofos iluministas, como a
uso da ciência para entender o mundo e aprimorá-lo. O livro se tornou o
favorito de Bill Gates e angariou elogios de diversos intelectuais, como
o biólogo Richard Dawkins e o historiador Yuval Harari.
Junto com a recepção positiva, veio uma quantia significativa de
críticas. Foi acusado de desmerecer os problema do mundo e de ser um
“evangelista da ciência” e defensor do neoliberalismo.
Pinker me recebeu em seu escritório para conversar sobre o livro,
suas ideias e seus críticos. A sala parece uma materialização das coisas
que devem ocupar sua cabeça: pedaços de cérebro e reproduções da mente
humana, prêmios nas paredes, artefatos esquisitos como uma réplica da
barra de ferro que atingiu o famoso paciente neurológico Phineas Gage, e
livros — muitos livros. Com seus longos cachos grisalhos e uma camisa
azul (ele parece só usar azul ou roxo), ele sentou à minha frente na
poltrona em que recebe visitas. Antes que eu pudesse começar a
entrevista, uma mulher entrou na sala com um livro nas mãos: ela queria
que Pinker autografasse pois daria o livro de presente. Após essa
distração, pudemos começar nossa conversa.
Em seu novo livro, você usa evidências e dados para defender a
tese de que o mundo nunca esteve melhor. A qualidade de vida tem
crescido em todo mundo e as pessoas estão mais seguras, mais saudáveis e
mais felizes. O que lhe motivou a escrever sobre isso?
Em parte foi a surpresa de descobrir esses fatos. Como a maioria dos
leitores de jornais, eu partia do princípio de que as coisas estavam
piorando porque as notícias são uma amostra não-aleatória das piores
coisas acontecendo no mundo em um determinado dia. E num mundo com sete e
meio bilhões de pessoas, sempre haverá coisas terríveis acontecendo
todos os dias. Foi só quando eu vi gráficos, a começar pela violência,
mostrando que as taxas de crimes violentos tinham caído; taxas de
mortalidade e de guerra, número de países com violência
institucionalizada como a pena de morte e a tortura: historicamente
todos eles apresentam uma tendência de queda. E foi por meio de uma
série de coincidências que eu me deparei com esses gráficos e percebi
que muitas pessoas não sabem sobre eles, que valeria a pena colocá-los
entre duas capas e explicar por quê. Como psicólogo, eu não fico
satisfeito apenas vendo um monte de tendências e dizendo “Bem, é assim
que o mundo funciona.”, eu quero saber por quê. E certamente quando se
trata do progresso, da vida melhorando, é como um mistério, porque as
forças do universo não melhoram a vida naturalmente; elas pioram a vida.
As coisas quebram, a desordem aumenta… A evolução é um processo
competitivo, então não importa o quão feliz e saudáveis nós estamos,
sempre há parasitas e germes evoluindo para nos atacar. Como conseguimos
melhorar nossa vida mesmo assim? Quando se trata de violência, atuando
como psicólogo, eu fiz a pergunta de por que somos violentos para começo
de conversa. Quais os diferentes motivos que fazem as pessoas
violentas? E quais as partes da natureza humana que inibem nossos
impulsos violentos? E então, o que há em uma determinada sociedade em
uma determinada época que faz com que nossos “anjos bons”, como colocou
Abraham Lincoln, controlem nossos impulsos violentos? Ao fazer essa
pergunta de forma mais abrangente, para incluir não somente a violência
mas também coisas como saúde, longevidade, democracia e educação, eu
olhei para as ideias que permitiram que as pessoas melhorassem a
condição humana. E eu usei o Iluminismo como uma diretriz, como um termo
geral para os processos históricos que nos permitiram melhorar nossa
situação, a saber a razão, a ciência e o humanismo. A razão e a ciência
sendo a tentativa de entender o mundo para que possamos mudá-lo, o
humanismo sendo o objetivo de aplicar nosso conhecimento para fazer a
vida dos seres humanos melhor.
Em suas obras anteriores, você era conhecido por sua defesa do
impacto dos genes em nosso comportamento e pela tese de que existe algo
como uma natureza humana — características inatas e universais da
humanidade. Escrever sobre propensões à violência fez você ser visto
como tendo uma visão pessimista da humanidade, mas agora você é visto
como o cara mais otimista do pedaço. O que mudou?
[Rindo] Sim, eu estou bastante ciente desse conflito. E é um
conflito. Eu comecei meu interesse pela violência em meu livro
defendendo a própria ideia de natureza humana, The Blank Slate em inglês
— e acho que em português era Tábula Rasa. Primeiro de tudo, nós temos
sim propensões violentas: você pode ver isso em crianças de dois anos
de idade que chutam, mordem e batem, você vê isso em nossos parentes
primatas, você vê isso no fato de que a violência é um universal humano:
não existe sociedade sem violência e não importa quão longe você volte
na história e na pré-história, você vê sinais dela. Mas, ao mesmo tempo,
eu questionei a objeção que as pessoas têm ao aprender sobre esses
dados, que era: “Nós não queremos que isso seja verdade, porque se for
verdade isso indicaria que a violência é inevitável, que a guerra é
inevitável, que seria inútil tentar buscar um mundo mais pacífico porque
a guerra está nos nossos genes, ou em nossa natureza, e não queremos
que isso seja verdade”. Então, em Tábula Rasa, eu argumentei que,
primeiro de tudo, essa não é uma implicação lógica: mesmo se realmente
tivermos propensões violentas, isso não significa que estamos condenados
à violência porque a natureza humana é complexa, tem várias partes.
Junto com nossas propensões à violência nós temos “anjos bons” que podem
inibi-las, como o auto-controle, a empatia, as normas morais e os
processos cognitivos que nos permitem resolver problemas. Se definirmos a
violência como um problema a ser resolvido, então podemos pensar em
soluções e alternativas para reduzi-la, como o sistema judiciário, o
Estado de direito, as forças de paz, as normas contra a violência. E eu
mencionei [no livro], de passagem, que havia exemplos claros na história
em que a violência diminuiu, como a abolição da escravatura, a queda do
Império Soviético, a redução dos homicídios desde a Idade Média (um
fato com o qual eu tinha me deparado). E foi depois que eu publiquei
isso que eu comecei a receber correspondência de acadêmicos de outros
campos — sociólogos, cientistas políticos, economistas — dizendo: “Você
poderia ter adicionado muito mais exemplos à sua lista”. Que não era só
na Inglaterra que a violência havia diminuído desde a Idade Média, mas
em todos os países europeus, e que as mortes em guerras haviam caído. Eu
não tinha percebido que a violência contra as mulheres, como o estupro e
a violência doméstica, a violências contra crianças, tudo isso tinha
diminuído. E foi [só quando] eu direcionei minha atenção às forças que
podem levar a violência para baixo que eu percebi quantos exemplos havia
na história.
Se o mundo tem melhorado tanto em tantos aspectos diferentes, o
que leva tantas pessoas a acreditar que o mundo está terrível e, mais do
que isso, piorando?
Acho que boa parte é devida simplesmente à natureza do jornalismo,
que se você tem uma visão de mundo que é movida por acontecimentos — e
são acontecimentos repentinos, que é do que se trata o jornalismo —, é
muito mais fácil para algo ruim acontecer rapidamente do que para algo
bom acontecer rapidamente. Que você pode ter uma ataque terrorista, uma
guerra começando, uma crise de fome, uma pandemia, e essas coisas
acontecem rapidamente e são consideradas notícias. As coisas boas tendem
a consistir de nada acontecendo, como uma região do mundo que não teve
nenhuma guerra nos últimos 30 ou 40 anos — mas isso não dá uma manchete.
Ou as coisas que mudam gradualmente, como todos os dias 137 mil pessoas
escapando da extrema pobreza. Acontecimentos graduais tendem a não ser
notícia, então não ficamos cientes deles, enquanto as coisas que dão
errado estão no topo dos sites de notícia e ficamos bem cientes delas.
Também existe na cultura do jornalismo, além desse viés negativo
inerente, um pouco de viés negativo proposital. Muitos jornalistas com
os quais eu conversei acreditam que qualquer mudança positiva não é
jornalismo real, sério e responsável; que é propaganda para o governo,
que é relações públicas corporativas, que é imprensa cor-de-rosa, e que
se você é um jornalista responsável você noticia corrupção, fracassos e
catástrofes.
Algumas pessoas reconhecem que o mundo melhorou em diversos
aspectos, mas argumentam que alguns acontecimentos recentes podem abalar
essa tendência geral. Por exemplo, dados da organização Freedom House
apontam que houve uma diminuição substancial no número de democracias no
mundo e na qualidade das existentes. Vimos também a ascensão de
movimentos políticos populistas. Como você vê esses acontecimentos e
como eles se encaixam em sua perspectiva otimista?
Bem, eu tendo a resistir à ideia de que é uma perspectiva otimista. É
só, na verdade, atenção aos dados. E isso inclui coisas que pioram,
porque seria inconcebível que tudo melhorasse em todo lugar todo o
tempo. Isso seria um milagre! E o progresso não é um milagre, ele
consiste de seres humanos usando o conhecimento para resolver problemas.
Mas problemas são inevitáveis, soluções criam novos problemas, então
não deveria ser surpreendente que mesmo com esse cenário de progresso as
coisas podem dar errado. Ao mesmo tempo, é importante quantificar as
mudanças, mantê-las em proporção. É verdade que houve desafios à
democracia durante a última década, mas o índice da Freedom House é um
dos mais pessimistas — outros não mostram a mesma queda, embora eles
certamente mostrem uma desaceleração. Mas mesmo com a Freedom House, em
quaisquer das medidas, o mundo nunca esteve mais democrático do que ele
esteve nesta década. A América Latina seria um caso para estudo: nos
anos 1980, a maioria dos governos eram ditaduras de direita ou
militares; hoje a maioria dos países latino-americanos são democracias. E
isso é verdade no mundo inteiro. Países como Espanha e Portugal, que
tão recentemente quanto nos anos 1970 eram ditaduras fascistas, hoje são
democráticos. Todo o Leste Europeu, que estava sob o controle de
ditaduras comunistas: todos democráticos. No Leste Asiático: Taiwan,
Coreia do Sul, Filipinas. Portanto é fácil se deixar levar pelos países
que se tornaram menos democráticos recentemente, como a Turquia e a
Rússia, e esquecer o panorama geral. E é verdade que tem coisas que
estão piorando, as emissões de carbono sendo um exemplo notável, e
outras ameaças ao meio ambiente. E junto com mudanças específicas que
são negativas, existem forças políticas e intelectuais que eu diria que
estão lutando contra os motores do progresso, entre as quais o populismo
autoritário é o exemplo principal. De muitas maneiras o populismo
autoritário é um movimento contra-iluminista: ele exalta líderes
carismáticos ao invés do processo democrático de pesos e contrapesos;
ele glorifica a nação ou a tribo, às vezes a raça, ao invés de dar valor
a toda a humanidade; ele tende a depositar muita confiança na religião
ao invés de na razão e na ciência; e ele se opõe a algumas instituições
específicas inspiradas pelo Iluminismo, como o livre comércio e os
mecanismos de governança global, como a União Europeia e a ONU. E é o
mais recente de uma série de movimentos que se opuseram aos valores
iluministas desde o próprio Iluminismo.
Você mencionou “valores iluministas”. O nome do seu livro no
Brasil é O Novo Iluminismo. O que tem de novo no Iluminismo que você
defende e como ele é diferente das ideias dos séculos XVII e XVIII?
É, e na verdade eu inicialmente pensei em chamar a versão em inglês
de The New Enlightenment [O Novo Iluminismo] — esse era meu título
original. O Iluminismo do século XVIII não deveria ser visto como uma
fonte de revelação ou uma espécie de era de ouro da qual devemos sentir
saudade. Isso iria contra a própria ideia do Iluminismo, que é a de
usarmos a razão e a ciência para constantemente atualizar nossas crenças
à luz de novas evidências, de novos argumentos e da experiência.
Portanto, eu vejo o Iluminismo como um processo contínuo mais do que um
período histórico específico. Um dos motivos pelos quais eu acredito que
realmente faz algum sentido falar sobre um novo Iluminismo é que
vários dos ideais do Iluminismo original realmente só passaram a existir
nos últimos 50 ou 60 anos, como a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, como os objetivos globais — de eliminação da pobreza no mundo,
eliminação da fome —, igualdade para as mulheres, igualdade para os
gays, igualdade de raças. Essas ideias foram abordadas no Iluminismo mas
meio que se dissiparam, e foi só nas últimas décadas que esses ideais
foram realmente implementados. Além disso, houve uma expansão incrível
de nosso entendimento da natureza humana, algo pelo qual os philosophes
iluministas eram obcecados, mas obviamente tinham muita pouca informação
em sua época. Não existia nada como a neurociência, não existia nada
como a biologia evolutiva, não existia nada como a genética, não existia
nada como a psicologia experimental. Hoje temos uma ciência da natureza
humana, o que realiza um dos sonhos dos filósofos iluministas, e nós
estamos usufruindo dela hoje.
Em seu livro, você aborda bastante o progresso material, como os
avanços tecnológicos e a melhoras nas condições de vida, mas também
menciona o progresso moral, como o fim dos regimes autoritários, a
abolição da escravatura e a expansão dos direitos civis. Você acredita
que existe alguma distinção significativa entre essas duas formas de
progresso?
Certamente há uma diferença conceitual significativa. Mas é
interessante que, empiricamente, eles nem sempre andam em sintonia
perfeita; mas eles tendem a se influenciar. Em média, países que são
mais ricos têm muito do que nós geralmente consideramos ser valores
morais melhores: igualdade para as mulheres, democracia, ausência de
guerras civis, ausência de genocídios, ausência de guerras, mais
proteção ambiental, melhor proteção dos direitos dos animais. São países
como a Suíça, a Noruega, a Dinamarca, a Nova Zelândia e o Canadá que
tendem a estar na vanguarda desses avanços morais. Com algumas exceções!
Se você traçar um gráfico do Índice de Progresso Social, que é como uma
soma de todas as coisas boas que acontecem em uma sociedade, em relação
ao PIB per capita, você verá uma linha bem reta com exceção de alguns
países árabes de extração de petróleo, como a Arábia Saudita e o Kuwait,
que são podres de ricos mas de muitas maneiras atrasados moralmente,
como em relação aos direitos das mulheres.
Um dos críticos da sua obra, o filósofo John Gray, propõe que o
progresso moral que você descreve no livro é ilusório. A qualquer
momento, nós poderíamos ter um retrocesso imenso. Como evidência disso,
poderíamos citar o apoio à tortura após o 11 de setembro, os crescentes
movimentos xenofóbicos e homofóbicos nos Estados Unidos, ou os casos de
antissemitismo na Europa. Essa crítica afeta sua tese geral?
Pois é — ela está completamente errada! A tendência geral vai
imensamente contra a tortura, apesar do aparecimento bem breve da ideia
de que suspeitos de terrorismo poderiam ser coagidos a divulgar
informações que poderiam salvar vidas, como no “cenário da
bomba-relógio”. Você não pode comparar isso de jeito nenhum com o uso da
roda de tortura, com a flagelação e a evisceração, com a morte na
fogueira para hereges e criminosos, onde a tortura era usada como
punição, não como um método de coerção para obter informações para
salvar vidas. Agora, isso não é uma defesa da tortura para obter
informações para salvar vidas, mas moralmente elas são coisas bem
diferentes. E mesmo o uso da tortura para extrair informações foi
denunciada rapidamente e logo abandonada. Da mesma forma, […] o fato de
que nem 100% do mundo é a favor dos direitos dos gays não significa que o
mundo esteja ficando menos tolerante à homossexualidade — pelo
contrário. Se você olhar para o número de países que descriminalizaram a
homossexualidade, se você olhar para as posições em relação aos gays,
pelo menos entre os países ocidentais, para os quais temos dados (na
verdade acredito que no mundo todo), a tendência vai imensamente na
direção de maior tolerância. Da mesma forma para o antissemitismo: ele
certamente não foi extinto da face da terra, mas dizer que depois de
séculos de pogroms e expurgos, e depois o Holocausto, que não houve
avanços na luta contra o antissemitismo nos últimos 70 anos seria um
delírio, iria de encontro aos fatos.
John Gray também lhe chamou de “evangelista da ciência”, sugerindo
que você trata a ciência como uma religião e a razão como um dogma. Mas
é interessante que tanto você como Gray são ativistas do ceticismo.
Como você vê os comentários dele?
O fato de que Gray hipoteticamente alegaria ter um argumento
razoável, que o que ele está dizendo é racional, que é uma implicação
lógica, significaria que ele próprio tem um compromisso com a razão.
Dado que a ciência não é nada mais do que o uso da razão para entender o
mundo físico, seria inconsistente produzir um argumento para dizer que
quando se trata de entender como as coisas funcionam, deveríamos voltar
para a superstição e a intuição. Então ele seria completamente
inconsistente se ele não fosse um um ativista da ciência para entender o
mundo. E de fato o ceticismo é o fundamento da razão, pelo menos desde
Descartes e provavelmente antes, desde Erasmo. Não podemos aceitar nada
pela fé, mas devemos ser persuadidos pelas evidências e pela lógica.
Então sim, nós compartilharíamos o ceticismo como um ponto de partida,
apesar de que ser cético sobre tudo a despeito de evidências e
argumentos também não seria racional — apenas ter um ônus da prova de
que uma pessoa só deve acreditar em coisas para as quais há evidências e
argumentos.
Nessa tendência de progresso moral da qual temos tratado, há
movimentos crescentes nas universidades nos Estados Unidos e no Brasil
para limitar a liberdade de expressão de discursos ou palestrantes
considerados reacionários ou conservadores. Ativistas pela justiça
social argumentam que o racismo, a homofobia e o machismo não devem ser
considerados parte da liberdade de expressão, e que precisamos de
estratégias como não dar palanque a essas pessoas e criar espaços livres
desses discursos para garantir o progresso moral que atingimos nessas
áreas. Como você vê esses movimentos?
Eu sou um forte opositor desses movimentos, por diversas razões. Uma
delas é que se eles querem justificar qualquer uma de suas ações, eles
próprios estão exercendo a liberdade de expressão, e a menos que eles
estejam dispostos a alegar que são infalíveis, oniscientes e angelicais,
eles não podem negar esse mesmo direito às pessoas que discordam deles.
Em segundo lugar, dado que os seres humanos falham, que as convicções
de qualquer época e local podem ser — e frequentemente foram —
demonstradas falaciosas em retrospecto, isso significa que se buscamos o
progresso moral, fazer do mundo um lugar melhor, nós temos que deixar
as opiniões serem expressas e avaliadas, já que esse é o único caminho
para o conhecimento. Ninguém é inspirado por Deus, ninguém é infalível,
nem mesmo o Papa — apesar de alegações do contrário —, e expressar
opiniões e permitir que elas sejam avaliadas é o único caminho pelo qual
podemos obter progresso. E também a história nos mostra que ideias que
tomamos como certas hoje foram polêmicas em suas épocas, que as pessoas
que primeiro se opuseram, digamos, à escravidão, ou à perseguição dos
hereges, ou ao direito divino dos reis, ou à negação dos direitos das
mulheres, ou à glorificação da guerra, todos essas ideias foram opostas
em seus tempos por vozes heterodoxas, polêmicas, e até “nocivas”. Temos
que ser gratos agora que suas opiniões foram expressas em suas épocas e
eventualmente foram vitoriosas e, portanto, nos tempos atuais, temos que
preparar terreno para ideias desconfortáveis, porque não sabemos, até
que permitamos que elas sejam avaliadas, se elas têm mérito ou não.
Como um defensor da razão, você também trata de muitas situações
em que as pessoas não pensam racionalmente. Como você sabe, há uma área
de pesquisa crescente que busca entender como e por que cometemos erros
de raciocínio. Como pessoas leigas podem usar essas novas descobertas
para tomar decisões melhores?
Eu acredito que precisamos estar cientes de nossas próprias
limitações. Que deveria ser parte da sabedoria de toda pessoa educada
que a intuição humana do dia a dia é falha, que todos nós somos
vulneráveis a ilusões e vieses, e que precisamos estar cientes deles,
tentar colocá-los de lado. [Temos que] perceber que nossa confiança em
anedotas, por exemplo, não deveria ser a base de nosso conhecimento
sobre o mundo, que nossa tendência a pensar em estereótipos sempre
merece ser repensada, e que vieses como a falácia dos custos
irrecuperáveis e a falácia da regressão à média… tem uma lista saudável
de irracionalidades previsíveis da mente humana que uma pessoa educada, e
as instituições da razão, como as universidades, a imprensa e o Estado,
devem estar cientes e buscar combater.
Deveríamos ensinar esses erros cognitivos nas escolas?
Eu acho que sim. Eu acho que isso deveria ser uma parte tão básica da
educação quanto a alfabetização e a aritmética: o pensamento crítico.
A existência da natureza humana, que você defendeu em livros
anteriores, é uma ideia ainda muito controversa, especialmente em
departamentos de ciências humanas. Muitos acadêmicos alegam que nossos
comportamentos e ideias são socialmente construídos, e não universais, e
você escreveu um livro inteiro contra-argumentando essas ideias. Por
que você acha que ainda existe tanta resistência à ideia de natureza
humana?
É, você está certo de que existe resistência. Eu tenho um paper que
vai sair daqui a algumas semanas sobre a universalidade da música, com
um time de Harvard, em que incluímos no apêndice uma sondagem com
antropólogos sobre se música é universal, se existe nas sociedades que
eles estudaram. Recebemos muitas respostas inflamadas, de que isso é
racista e colonialista; bizarramente dado que você poderia imaginar que
mostrar que algo é universal provaria a igualdade de toda a humanidade,
mas não. Uma razão é que muitos intelectuais ficam aterrorizados com a
ideia de que se a natureza humana existir pode haver diferenças entre os
sexos, entre indivíduos, entre grupos étnicos, e isso justificaria a
discriminação e a opressão. Eu defendo que isso é um non sequitur, que é
ilógico, que o princípio da igualdade é de que as pessoas devem ser
tratadas de forma justa como indivíduos e não por preconceitos pelas
estatísticas de seus grupos. E portanto podemos afirmar o princípio da
igualdade mesmo que seja o caso que grupos de pessoas não sejam
indistinguíveis; isto é, que o conceito de equidade não deve ser
confundido com o de homogeneidade. A segunda objeção é um medo do
fatalismo, que se seres humanos têm defeitos “de fábrica”, então nunca
poderemos ter uma sociedade perfeita; logo seria uma perda de tempo
tentar fazer do mundo um lugar melhor. Eu defendo que isso também é um
erro básico, porque como a natureza humana é complexa, nós temos
características bem desagradáveis mas também temos empatia, temos
auto-controle, temos cognição, temos linguagem, e podemos pensar em
alternativas para os defeitos em nossa natureza. Isso abre caminhos para
melhora, e como falamos anteriormente na entrevista, eu mostrei que
isso aconteceu de fato quando se trata de violência. Um terceiro medo é o
medo do determinismo, de que se nosso comportamento é determinado por
nossa história evolutiva, por nossos genes, por nossos estados mentais,
então ninguém poderia ser considerado responsável por suas ações, que
todo mundo terá uma desculpa: “Não fui eu! Meus genes me fizeram agir
assim!” e ninguém poderia ser considerado responsável por nada. Agora
isso, por sinal, atravessa o debate de “natureza versus criação”, porque
mesmo se formos determinados pelo nosso ambiente, você pode dizer:
“Bem, eu tive uma infância triste, sou uma vítima de abuso, tive um
trauma, e por isso eu matei o vendedor”. Portanto eu acredito que essa
objeção se aplica aos dois lados [do debate], mas é também irrelevante
porque todos os fatores que influenciam o comportamento são
probabilísticos; o determinismo é a rigor falso no sentido de ser capaz
de prever exatamente o que alguém vai fazer. E, de qualquer maneira, se
nós queremos considerar as pessoas culpadas, estamos, paradoxalmente,
esperando que o comportamento delas seja previsível, isto é, nós
presumimos que se ameaçarmos alguém com punição ou vergonha, este alguém
melhorará o seu comportamento. Então na verdade nós estamos contando
com alguma previsibilidade no comportamento pelo próprio ato de
considerar as pessoas culpadas, por recompensá-las por coisas boas e
puni-las por coisas ruins. A propósito, existe um medo mais confuso de
que se for o caso que somos criaturas biológicas, de alguma maneira a
vida perde todo o sentido e propósito, um medo da ideia de que nós
morremos quando nosso cérebro para de funcionar. Que razão existe para
viver uma vida moral se não vamos para o paraíso, ou não temos que nos
preocupar com ir para o inferno? Se não temos uma alma imortal que pode
sobreviver à morte do cérebro? E eu defendo que essa também é uma crença
ilógica, que a moralidade vem do fato de que cada um de nós quer
prosperar e florescer, que preferimos estar vivos a estar mortos,
preferimos estar saudáveis a estar doentes, preferimos ser educados a
ser ignorantes, e é inconsistente querer todas essas coisas para você
sem desejar o mesmo para todo mundo. A moralidade vem da universalização
de suas próprias preferências e isso dá sentido à vida: tornar a vida o
mais benéfica possível para o maior número de pessoas possível;
eliminar a fome, a doença, a guerra e a ignorância; e eu acho que isso
fornece razões suficientes para a existência.
Nós conversamos bastante sobre progresso moral, então para
terminar eu gostaria que você fizesse uma previsão. A humanidade mudou
muitas de suas convicções morais nos últimos séculos. Quais de nossas
convicções morais atuais você imaginaria que serão questionadas nas
próximas décadas ou séculos?
Eu suspeito que nosso tratamento dos animais — esse é um candidato
óbvio. Provavelmente algumas das práticas punitivas do sistema de
justiça criminal; certamente punir crimes sem vítima como a posse de
drogas e possivelmente a prostituição, e em geral a severidade da
punição criminal. [Eu suspeito] que possamos pensar em maneiras melhores
de influenciar o comportamento do que trancar pessoas por longos
períodos de tempo. Vejamos… Eu suspeito que ter armas nucleares será
visto como algum tipo de insanidade moral — mesmo que não as usemos, o
fato de que temos a capacidade de causar mortes e destruição em larga
escala. É também concebível que a lentidão em agir a respeito das
mudanças climáticas poderia ser visto como um crime moral se as futuras
gerações sofrerem por nossa inação hoje.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário