O “programa progressista” tem vários pontos em comum com o apresentado –
e fragorosamente derrotado – pelo Partido Trabalhista na Grã-Bretanha
na eleição de 12 de dezembro. Vilma Gryzinski:
Pedro Sánchez cedeu os anéis, os dedos e, se Pablo Iglesias exigisse mais alguma coisa, cederia também.
Pelo sistema parlamentarista, ele só conseguiria passar de interino a
definitivo, como primeiro-ministro, se fizesse uma coalizão. Ou nova
eleição, tudo o que queria evitar.
Como político mais de centro-esquerda, a posição para a qual penderam
os socialistas europeus na “era do consenso”, Sánchez fez um governo
relativamente anódino, sem apavorar os mercados nem prejudicar a
dolorosa rearrumação econômica pós-crise de 2007.
Seu gesto mais marcante, como esquerdista, foi mais no campo
simbólico: a remoção dos restos mortais do caudilho Francisco Franco
para um lugar menos abusado do que sob a lápide de granito de 1 500
quilos na igreja do Vale dos Caídos.
Acabou esta fase. Para formar maioria no Parlamento, abandonou as
posições menos radicais (com as quais ganhou eleições duas vezes) e
entregou tudo ao Podemos, um partido que funciona na mesma sintonia que o
PSOL.
Só que muito mais votado e mais bem sucedido. Com o espertíssimo
Iglesias no comando, Sánchez assinou a rendição, sob a forma de um
programa comum de governo que inclui praticamente todas as demandas da
esquerda puro sangue.
“Mais impostos, mais gastos, mais controles, mais planos estatais,
mais burocracia, mais considerar que nós, cidadãos, somos carneiros a
quem devem nos dizer constantemente como viver nossas vidas”, resumiu,
em tom evidentemente amargo, Martí Saballs, diretor-adjunto do El Mundo.
O jornal está obviamente mais para a direita, mas o balanço só peca pela parte da retórica.
Do controle dos aluguéis ao fim da reforma trabalhista, passando por
imposto mínimo de 15% para empresas e 18% para bancos, o “programa comum
progressista”, é o sonho do esquerdista não reformado.
Tem também aprovação da eutanásia, luz e água sem cortes para quem
está em situação de vulnerabilidade, mudança do Código Penal para “só o
sim seja sim”, endurecendo nos casos da área cinzenta do abuso sexual, e
assim por diante. São nada menos do que 370 propostas.
Para não falar numa especificidade da Espanha, a do independentismo da Catalunha.
Como um pequeno partido, a Esquerda Republicana Catalã também está no
acordo de forma a garantir a maioria no Parlamento- com o compromisso
de não vetar propostas do novo governo, pois votar a favor seria
demais-, o próprio tecido institucional da Espanha está em jogo.
Como a Bolívia, o país pode estar a caminho de se tornar um estado plurinacional.
Arriba, Espanha.
O “programa progressista” tem vários pontos em comum com o
apresentado – e fragorosamente derrotado – pelo Partido Trabalhista na
Grã-Bretanha na eleição de 12 de dezembro.
Será, assim, um dos espetáculos mais interessantes de 2020 ver como
países europeus importantes evoluem com programas tão diferentes.
E tão representativos da direita e da esquerda, ambas mais inspiradas
por suas origens depois de décadas de confluência para um campo central
em comum.
A Espanha foi um dos exemplos mais significativos dessa confluência,
com o Pacto de Moncloa, o acordo em que os socialistas ficaram menos
esquerdistas e a direita muitíssimo menos franquista para conduzir a
transição democrática a partir de 1977.
O campo centrista hoje, na Europa, é ocupado por Emmanuel Macron, que foi um fenômeno político e eleitoral.
Sua tática foi misturar propostas progressistas como a transição
energética, apresentando-se como guerreiro climático pronto para invadir
a Amazônia – hahaha -. com a defesa de reformas existenciais nas
encarquilhadas estruturas francesas.
Fora da França, os corações esquerdistas bateram forte, a ponto de
apresentarem Macron como o novo líder não só da Europa como do mundo,
uma ideia mais baseada no desejo (de quebrar as pernas de Donald Trump)
do que na realidade.
Hoje, a posição dele não é nada confortável.
Depois da explosão dos coletes amarelos, uma onda vinda da periferia
dos “invisíveis” que se deixou cooptar pela violência, agora são as
sucessivas greves contra a reforma no sistema de aposentadorias.
É uma reforma evidentemente antipática – e necessária.
Curiosamente, Macron está em baixa enquanto Boris Johnson, pintado
como um bufão que seria engolido e cuspido pelo Brexit, ainda desfruta a
glória da vitória histórica de 12 de dezembro.
Vai durar pouco. Boris tem que fazer um quádruplo tuíste carpado:
negociar um acordo razoável para o Brexit, a base de todas as suas
promessas de campanha e evitar que os inevitáveis tropeços da transição
para fora da União Europeia pareçam fracassos definitivos; além de
agradar sua nova e surpreendente base eleitoral, os eleitores da região
norte, mais desfavorecida economicamente, que sempre votaram nos
trabalhistas.
Ah, sim, e insuflar o crescimento com base no manual tradicional da
direita: incentivos aos empreendedores como forma mais garantida de
criar empregos e bombar a economia.
Fácil, não?
A “concorrência” de propostas com a Espanha é apenas hipotética, em nome do debate.
Nem um único súdito britânico dedicará mais do que três segundos de
atenção caso o manual do progressista renascido leve a Espanha para
vários tipos de buracos.
Sendo o mais conhecido deles a fuga do dinheiro: capital,
investimento ou, puramente, consumidores ricos que preferem estacionar
sua grana em outros lugares menos hostis quando o ambiente de negócios e
os impostos ficam insuportáveis.
Obviamente, são problemas que nunca, jamais, acontecerão na Argentina.
Consagrado nas urnas por um antecessor desastroso e uma vice muito,
muito poderosa, Alberto Fernández tem certeza que vai dar tudo certo.
Ele também acha que vai emplacar seu próprio estilo e comandar o
renascimento do peronismo de esquerda (tem também o de direita, o de
Vênus, o de Marte etc etc).
Além de tirar o país da miséria, aumentar as aposentadorias,
controlar o dólar, fazer um acordo favorável para o pagamento da dívida
e, claro, atrair um monte de investidores estrangeiros.
Tirando a parte unicamente argentina do fenômeno peronista, não é
muito diferente do que a alternativa ao poder vigente no lado de cá da
fronteira defende.
O que torna 2020 um ano mais interessante ainda.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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