No mundo civilizado ou em vias de o ser, o capitalismo tem corrido bem,
obrigado. E em Portugal? Nada de novo. Começámos a década com a típica
bancarrota socialista. Crônica de Alberto Gonçalves, publicada aos
sábados pelo Observador:
Dantes era fácil. Houve os loucos anos 20, os doidos anos 40, os
chalupas anos 60, etc. Como é que chama à década que termina (sei que,
na ausência do ano zero, a década só termina daqui a um ano, mas ponham
as mariquices de lado por um instante e deixem-me continuar a crónica)
agora? Não faço ideia. A década de 10 provoca confusões com a do século
passado. Aliás, o conceito de década, assim toda arrumadinha e autónoma,
parece ter nascido e se esgotado no século passado. Em pleno séc. XXI,
como dizem os pasmados na televisão, os anos sucedem-se sem grande
atenção a esses pormenores. Ainda assim, estão a completar-se 10 anos
desde o início de 2010 e é de bom tom encher chouriços, e textos, com
“resenhas” (ai) do período em causa. Eis, pois, a minha “resenha” das
tendências destes anos 10, na perspectiva portuguesa que, por
inclemência do Senhor e dos meus pais, é a que me calhou.
Aquecimento global. Depois as alterações climáticas. Num
ápice, a emergência climática. Qualquer dia termos o holocausto
meteorológico. Os sucessivos disfemismos pretendem convencer o mundo de
que o mundo acabou anteontem. A solução passa por eliminar cada vestígio
de progresso excepto o progresso necessário para os activistas
defenderem a eliminação de cada vestígio de progresso. Não admira que o
símbolo do movimento seja uma criança iletrada e doente. Por cá, não há
um partido – nem um – que não tenha adoptado a lengalenga.
Nuvens. A Netflix, a HBO, a Amazon Prime e, se soubermos catar
o que importa, cada vez mais o YouTube tornaram obsoletas as televisões
de antigamente. Hoje, no caso português, só vê a RTP, a TVI, a CMTV e a
SIC quem quer. E quem quer realmente ver aquilo já tem, por definição, o
castigo que merece. Além disso, o jornalismo tradicional, impresso em
papel e vendido em banca, quase sumiu. Os discos sumiram. Os filmes que
vinham numa caixinha sumiram. Os livros estão a sumir. O sujeito que
conduzia o automóvel talvez suma em breve. Fora os rojões e os trapinhos
(por enquanto), o mundo físico está a desaparecer. É grave? Apenas para
os que sonham voltar à natureza, e registar a aventura num diário
guardado na “nuvem”.
Politicamente correcto. Não nasceu nesta década, ou sequer nos
últimos séculos. A censura, a inquisição e a caça às bruxas são
tradições ancestrais recuperadas recentemente com inegável sucesso. À
conta de inúmeras “causas”, distorcidas ou fictícias, divide-se para
reinar, vigia-se para oprimir, castiga-se para lavar as almas do Mal.
Não sei como chegámos a semelhantes trevas. Convinha, se possível, saber
como sair. Em Portugal, que não tarda nem falha na adesão à
modernidade, já se calam e já se punem blasfemos sob o aplauso da turba.
Populismo. Não vale a pena perder tempo a debater a definição
de populista: são os políticos de que a esquerda não gosta. Nos últimos
anos, à semelhança dos anteriores, criaturas que apoiaram ou toleraram
tiranos de gabarito irromperam aos gritinhos a anunciar o segundo
advento de Hitler. Trump. Bolsonaro. Boris Johnson. Para certa direita,
são todos iguais e encantadores. Para a esquerda em peso, são todos
iguais e propensos a destruir a Terra em cinco minutos. Depois passam-se
os minutos, os meses e os anos e, visto não acontecer nada, a esquerda
passa ao Hitler seguinte. Parece impossível, mas o truque funciona.
Redes sociais. Deram montra ao maior conjunto de chalados da
humanidade: a humanidade. Após incontáveis “selfies”, pratadas fartas,
cachecóis do Benfica, gatinhos, termómetros do carro, árvores de Natal,
frases erradamente atribuídas a Gandhi, criancinhas amorosas e desabafos
escritos e pensados com os exactos pés que se perfilam junto à piscina,
estamos esclarecidos quanto à sofisticação da espécie. Por sorte, as
mesmas “redes” permitem manter a comunicação com a espécie a uma
saudável distância. E há uma coisa pior do que dar voz a biliões de
patetas: a voz dos milhares de patetas que antes detinham o exclusivo.
Terrorismo islâmico. Raramente é terrorismo e nunca é
islâmico. Perdeu o carácter espectacular da década anterior e
transformou-se em coisa pior: uma trivialidade. Pela Europa desenvolvida
fora, não há dia sem que um jovem “belga” ou “sueco” com problemas de
emprego e integração não ataque infiéis à machadada. E não é notícia –
porque não é de bom tom e porque, de facto, a recorrência retira-lhe
interesse.
Vida portuguesa. Não acreditem em pantomineiros profissionais.
Nestes 10 anos, criou-se muita riqueza, diminuiu-se muito a pobreza,
aumentou-se muito a esperança de vida, reduziu-se muito a mortalidade
infantil, etc. No mundo civilizado ou em vias de o ser, o capitalismo
tem corrido bem, obrigado. E em Portugal? Nada de novo. Começámos a
década com a típica bancarrota socialista. Prosseguimos com uma
intervenção estrangeira para superar a bancarrota. Continuámos com
interpretações sortidas da bonita “Grândola”. E concluímos com uma
legislatura em que, para efeitos de experiência social, se adicionou ao
socialismo os transtornados do leninismo. Entretanto, os portugueses
perderam poder de compra, vibraram com a bola, pagaram mais impostos,
vibraram com a bola, patrocinaram criminosos da banca, vibraram com a
bola, toleraram criminosos e charlatães da política, vibraram com a
bola, foram diária e metodicamente humilhados pelos avençados dos
“media”, vibraram com a bola, viram a saúde pública escangalhar-se sem
estrondo, vibraram com a bola, constataram que a educação abdicou em
definitivo de educar, vibraram com a bola, assistiram indiferentes ao
avanço do país para os fundilhos da Europa, vibraram com a bola. Ou com a
“gastronomia”. Ou com o sol, que é tão lindo. Temos imensa sorte.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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