Ricardo Robles, o inimigo do capitalismo que gosta de acumular propriedades. |
Paulo Tunhas, sobre o Bloco de Esquerda, que governa Portugal: "sociologicamente,
o Bloco é uma entidade muito interessante. Desde a sua fundação, e até
pelas suas origens, os seus dirigentes (trotskistas, maoistas, ex-PCs)
representavam convenientemente as formas mais anquilosadas do marxismo,
visceralmente comprometidas com o horror totalitário ou (caso dos
trotskistas) eternamente buscando a possibilidade de uma conciliação com
ele em nome de princípios doutrinais originariamente comuns (o marxismo
e sobretudo o leninismo, é claro). É lícito supor que o curso do mundo e
a simples idade não tenham apagado esse fundo de convicções". Aí vai o
artigo na íntegra, via Observador:
Sei perfeitamente
que, depois de tudo o que se escreveu sobre a curiosa história do Prédio
Robles, praticamente tudo o que vier a seguir é, para todos os efeitos,
chover no molhado. Mas o episódio é de tal maneira interessante que é
difícil resistir. Interessante, note-se, não no que respeita ao próprio
Robles. Aí, tudo, desde as justificações esfarrapadas e absolutamente
inverosímeis para a aquisição e remodelação do prédio até à própria
responsabilização da família pelos actos de um homem adulto, entra
largamente pelo patético dentro e o melhor é não perder tempo com a
história. Interessante, sim, por aquilo que nos revela sobre essa
singular organização política que é o Bloco de Esquerda e que confirma
às mil maravilhas o que muitos de nós desde há muito pensámos.
Aparentemente, o
Bloco escandalizou-se por o seu vereador lisboeta ter feito uma coisa
perfeitamente legal. Dir-se-á: legal, mas contrário aos princípios do
Bloco. O escândalo seria assim eminentemente demonstrativo da grandeza
moral de uma associação política que coloca não só a legalidade como um
cego respeito por elevados princípios no fundamento da sua acção
política. Bom demais para ser verdade? Sim. Porque, mal a história do
prédio apareceu na imprensa, logo as três figuras mais conhecidas do
Bloco – Catarina Martins, Mariana Mortágua (em debate com um estupefacto
Adolfo Mesquita Nunes) e Francisco Louçã – apareceram na televisão a
proclamar a perfeita inocência de Robles e a pureza das suas intenções.
Dito de outra maneira: os princípios, nos cultores de um delírio de
virtude que se vê em combate contra aqueles que defendem uma legalidade
por eles vista como pouco virtuosa, estão, no mínimo, abertos a
excepções. Só quando o mal estava feito, quando a incoerência gritante
do comportamento de Robles foi percebida como podendo ferir gravemente o
Bloco, quando o olhar dos outros subitamente se cravou neles, os
princípios voltaram em força, dirigindo-se contra as opções do “Ricardo e
da sua família” (Catarina Martins). É o que se chama uma virtude ágil.
Sociologicamente, o
Bloco é uma entidade muito interessante. Desde a sua fundação, e até
pelas suas origens, os seus dirigentes (trotskistas, maoistas, ex-PCs)
representavam convenientemente as formas mais anquilosadas do marxismo,
visceralmente comprometidas com o horror totalitário ou (caso dos
trotskistas) eternamente buscando a possibilidade de uma conciliação com
ele em nome de princípios doutrinais originariamente comuns (o marxismo
e sobretudo o leninismo, é claro). É lícito supor que o curso do mundo e
a simples idade não tenham apagado esse fundo de convicções. Por outras
palavras: que não tenham contrariado no seu mais profundo uma visão das
coisas assente na mais brutal e simplista visão do mundo, que hoje em
dia por aquelas bandas não ousa dizer o seu nome com as letras todas. É
claro que se vestiram desde cedo com a mágica armadura das causas
fracturantes e que foi por esse modo que se transformaram no caso de
sucesso (uso a expressão propositadamente) que todos conhecemos. Mas a
armadura não dissolve o esqueleto que dentro dela está, muito
sorridente.
Se esse é o caso dos
dirigentes, não o é sem dúvida o de muito do seu eleitorado, cuja
vocação marxista-leninista é claramente inexistente. O Bloco foi para
esta gente uma feliz surpresa: a descoberta da possibilidade de abraçar
um partido que lhes garantia uma plena boa consciência “progressista” e
até “revolucionária” (mas não demais, ou não no sentido mais popular) e
de, simultaneamente, poderem viver uma vida privada onde os restaurantes
da moda e restantes requisitos de uma vida com tradicionais delícias
burguesas sejam adornos correntes e imprecindíveis da existência. Não é
de admirar, portanto, a admiração acéfala dessa gente – particularmente
notória no mundo da “cultura” – pelo inacreditável exibicionista
Varoufakis, que ostenta na perfeição esse tipo de duplicidade e o gosto
de com ela chocar os burgueses mais conservadores. Gente “com pinta” é
outra coisa.
Este tipo de atitude,
que, em passadas alturas de rigores estalinistas de pensamento e de
controles burocráticos de comportamentos, podia até ter um conteúdo
libertador (toda uma literatura de outros tempos se dedicou, com algum
didactismo, a salientar este aspecto), não representa hoje senão o mais
impecável conformismo. Nem sequer há qualquer já de si duvidosa
provocação cínica. É só mesmo patetice. E é exactmente essa patetice que
permite o desprezo indisfarçavelmente reaccionário face às origens
humildes de Cavaco Silva ou à casa de Massamá e aos fatos de Passos
Coelho. E, já agora, que mostra a flagrante desonestidade na relação com
as ideias e o oportunismo da adesão a elas.
Uma das lições da
história do Prédio Robles é que, sendo a sedução do Bloco ditada por uma
inconfessável duplicidade, o principal erro de Ricardo Robles foi o de
pensar que podia comportar-se como a maioria da gente da sua classe que
vota no Bloco e com a qual provavelmente se dá. E, num partido dúplice e
“burguês” como o Bloco de Esquerda, o erro é até um pouco perdoável,
não é? No fundo, tem razões para se considerar vítima de uma injustiça.
Uns podem e outros não? A única coisa verdadeiramente indesculpável foi
ter metido a família ao barulho. Mas isso, cada um é como é.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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