CANSADOS, PUÍDOS E COOPTADOS - Assediados por intervencionistas, grevistas batem continência a militares... (Fábio Motta/Estadão Conteúdo) |
Quem são,
de onde vêm e a quem estão ligados os que aproveitaram a greve dos
caminhoneiros para pedir o retorno a um regime militar. Matéria da
revista Veja desta semana:
Não faz
muito tempo, intervencionista era a palavra preferida de cientistas
políticos e economistas para sintetizar o agônico governo de Dilma
Rousseff, que intervinha no câmbio, nos preços dos combustíveis, nos
juros e tudo o mais que ousasse oscilar na direção contrária à vontade
presidencial. A greve dos caminhoneiros emprestou novo sentido ao termo.
Durante os nove dias que durou a paralisação, ele foi usado para
identificar grupos que — presencialmente, nas estradas, ou virtualmente,
pelas redes sociais — defenderam a “intervenção militar” no governo,
eufemismo para “golpe”, dado que não se trata de coisa prevista na
Constituição. Os intervencionistas já haviam feito algum alarido em
2015, durante as manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff,
quando surgiram os primeiros grupos de WhatsApp destinados a demonizar
políticos e enaltecer generais. Desta vez, porém, a estridência do
discurso foi amplificada pela diluição de lideranças entre os
caminhoneiros e pelo fato de nenhum movimento organizado ter apadrinhado
a paralisação. A categoria não é filiada à Central Única dos
Trabalhadores (CUT) nem recebeu apoio de outras agremiações como o
Movimento Brasil Livre (MBL) ou Vem pra Rua. Dessa forma, os
intervencionistas encontraram uma avenida livre para trafegar — e
aproveitaram.
…e pintam na Régis Bittencourt um “pedido de ajuda” às Forças Armadas, que condenaram publicamente a ideia do golpe.
Nas
estradas, espalharam faixas, cartazes e farta doutrinação. Nas redes
sociais, inundaram os grupos de WhatsApp com uma profusão de postagens
falsas, incluindo as que atribuíam a generais do Exército mensagens de
que os militares estavam perto de tomar o poder. “Avisem a todos que
quem não colocar a faixa de apoio à intervenção poderá ser preso pela
Polícia Rodoviária Federal”, dizia uma delas.
Hoje,
somados, os maiores grupos de intervencionistas no Facebook chegam a
reunir mais de 600 000 integrantes — uma insignificância quantitativa
quando se pensa que a cantora Anitta tem 13 milhões de seguidores. Mas a
popularidade das redes sociais entre os caminhoneiros — que organizaram
a greve basicamente por WhatsApp — e o senso de oportunidade dos grupos
intervencionistas anabolizaram a repercussão da grita pela “volta do
regime militar”. Segundo o Monitor do Debate Político no Meio Digital,
coordenado pelo professor da Universidade de São Paulo Pablo Ortellado,
das dez postagens sobre o tema “intervenção” mais populares no Facebook
em 29 de maio, oito eram favoráveis aos militares. Juntas, tiveram mais
de 1,8 milhão de visualizações e 112 mil compartilhamentos.
No ápice
da greve, a maior rodovia pavimentada de São Paulo, a BR-116, que liga a
Região Sul à Nordeste, chegou a ter mais de 100 pontos de bloqueio. No
trecho que conecta São Paulo a Curitiba, o da Regis Bittencourt, eram
cinco. Algumas concentrações se estendiam por mais de 3 quilômetros e
chegavam a reunir mais de 1 000 caminhões enfileirados no acostamento.
Já acostumados a ficar longos dias longe de casa, os caminhoneiros
esticavam redes e varais de uma carreta a outra, montavam mesas para
jogar carteado e dominó e colocavam cadeiras de praia na beira da
estrada. Era nesse ambiente que recebiam a visita dos grupos
intervencionistas, munidos de agrados como panelas cheias de arroz de
carreteiro e carnes para churrasco.
O
empresário Carlos Carvalho Júnior, por exemplo, que mora em Porto
Alegre, no Rio Grande do Sul, administra dois grupos no Facebook
pró-militares — Grupo Intervenção Militar – 2014, com 49 000 membros, e
Acorda Brasil, com 28 000. Ele disse ter juntado turmas de até trinta
pessoas para levar alimentos e faixas até os bloqueios. “Tudo pago do
nosso bolso.” Ao chegarem ao local, distribuíam os presentes e partiam
para as tentativas de cooptação. “Aos que não sabiam o que era
intervenção, a gente explicava e eles acabavam concordando. A ideia é
fazer uma nova ordem, estabelecer um tribunal militar, que é mais
eficiente, e afastar os políticos corruptos”, diz. Em um bloqueio na
cidade de Paranaguá (PR), o doutrinador era o caminhoneiro Nilsson
Carlos Aimi, 52 anos, intervencionista de longa data. Churrasqueiro do
acampamento, espeto na mão, dizia crer na intervenção como a única forma
de “pôr todos os corruptos na cadeia”, armar a população e acabar com o
governo que ele considera “comunista”. O termo comunista costuma ser
usado por intervencionistas para descrever todo aquele que discorda da
ideia do golpe. Fazem parte desse conjunto desde o líder do MBL Kim
Kataguiri até o comandante-geral do Exército, o general Eduardo Villas
Bôas.
FÃ
DA FARDA – Membro de uma família de caminhoneiros, Nilsson Aimi
acredita que militares poriam “imediatamente todos os corruptos na
cadeia”, liberariam o uso de armas pela população e livrariam o Brasil
do regime “comunista” supostamente em vigor.
No
início da semana, diante da velocidade de disseminação das informações
falsas aspergidas pelos intervencionistas, o comando do Exército
despachou seus generais para declarar em uníssono que a instituição
condenava a ideia. Até mesmo o incendiário general Hamilton Mourão, hoje
na reserva, criticou as investidas golpistas. “O país não tem de ser
tutelado pelas Forças Armadas”, disse ao site de VEJA. A marcha da
insensatez avançou a ponto de trazer à razão inclusive o presidenciável
Jair Bolsonaro. “Se tiverem de voltar (os militares), que voltem pelo
voto”, disse o capitão da reserva.
A
concertação de desmentidos, no entanto, nem sempre chegou aos seus
principais destinatários, os caminhoneiros. No último dia da greve, em
um acampamento próximo ao Porto de Paranaguá, um deles fez cara de
espanto quando foi avisado por um policial rodoviário federal de que a
paralisação havia terminado e que os áudios que ele acabara de escutar
pelo celular — entre eles uma falsa mensagem do general Villas Bôas que
advertia que o governo Temer seria destituído — não passavam de fake
news.
O
caminhoneiro, como a grande maioria de seus colegas de profissão, passou
todo o período da paralisação informando-se unicamente através de sites
não profissionais e grupos de WhatsApp. Em Jacupiranga (SP), o pastor
Flavio de Oliveira Cândido, de uma igreja batista que fornecia
alimentação diária aos caminhoneiros estacionados na região, disse ter
mantido a TV desligada durante todo o tempo em que recebeu os grevistas
por medo de eles “se revoltarem com as notícias desfavoráveis” ao
movimento. Os motoristas, portanto, só se atualizavam por meio de
mensagens de apoio.
Nem a
restrição de informações, porém, impediu que, no fim da greve, os
próprios intervencionistas admitissem o insucesso na tentativa de obter
apoio à sua causa. Frustrado, Carvalho Júnior, o administrador de grupos
pró-militares de Porto Alegre, reconheceu: “Há muito desinteresse da
parte dos militares”.
Ao
contrário do que ocorreu em abril, às vésperas do julgamento pelo
Supremo Tribunal Federal do habeas-corpus em favor do ex-presidente
Lula, desta vez nenhum segmento do Exército se deixou inflamar pelas
demandas golpistas. Naquela ocasião, a possibilidade de o voto da
ministra Rosa Weber resultar na não prisão do ex-presidente acirrou a
tal ponto os ânimos entre alguns generais da reserva e jovens oficiais
apoiadores de Bolsonaro que o comandante Villas Bôas decidiu agir para
serenar os ânimos. Com o conhecimento do governo, ele postou um tuíte em
que dizia que “o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de
todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à
Constituição” e estava “atento às suas missões institucionais”. O texto
teve ampla repercussão e também provocou reações indignadas. O decano no
STF, ministro Celso de Mello, chegou a dizer que “insurgências de
natureza pretoriana descaracterizam a legitimidade do poder civil
instituído e fragilizam as instituições democráticas”. Na ocasião, um
general do alto-comando do Exército disse a VEJA sob condição de
anonimato que a não publicação do tuíte pelo comandante provocaria
consequências “bem piores”. A postagem teria sido a única maneira de,
nas palavras do general, aplacar os ânimos da “horda de hunos” que
ameaçava se movimentar naquele momento. Desta vez, porém, a ressonância
dos gritos golpistas nas fileiras do Exército foi zero — o que deve
contribuir para que a palavra intervencionista, também em sua nova
acepção, volte em breve ao merecido esquecimento.
Com reportagem de Victória Serafim
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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