Primavera atropelada: corpos esmagados por tanques soviéticos. |
No esplendor barroco de
Praga, sufocado pela tirania, os checos e eslovacos que aderiram à
primavera da liberdade queriam simplesmente o que o pessoal da Rive
Gauche sempre teve. Colocar
os dois movimentos como se fizessem parte do mesmo conjunto
ideológico-cultural, porque aconteceram em 1968, é um ato de astrologia
intelectual. Texto de Vilma Gryzinski, via Veja.com:
Demonstrando que a
idade nem sempre traz juízo, septuagenários do tipo que não tira a boina
da cabeça comemoram os cinquenta anos das manifestações de maio de 1968
em Paris, além de diferentes tipos de protestos em outros lugares do
mundo, como se tivessem sido uma vitória revolucionária.
Como é típico do
pessoal de boina, passam correndo, quando passam, pelo mais amplo,
emocionante, perigoso, massacrado e, numa fenomenal guinada histórica,
finalmente vingado movimento daquele ano: a liberalização da
Checoslováquia durante os sete primeiros e embriagantes meses de 1968.
A ideia de que um país comunista pudesse ser reformado, inclusive ou principalmente para melhor, comprovou-se totalmente errada.
Qualquer mínima
alteração no edifício ao autoritarismo, à infernal e burocrática máquina
do estado, ao imobilismo, à ineficiência e à vigilância policialesca de
todos os desvãos da sociedade criada pelo império soviético, em suas
fronteiras e seus satélites, desabaria o prédio inteiro.
Mikhail Gorbachev viu
isso aconteceu quando tentou “melhorar” o comunismo e os primeiros a
saltar fora do barco foram os estados-vassalos.
A derrubada do Muro
de Berlim foi o símbolo mais poderoso dessa derrocada, mas em nenhum
outro país o grito de liberdade e independência teve nome mais bonito do
que na Checoslováquia.
A revolução de
veludo, ou sametová revoluce, completou o arco histórico iniciado em
janeiro de 1968, com a eleição de um comunista convicto e idealista,
Alexander Dubcek, e uma nova leva de dirigentes dispostos a eliminar a
censura, liberar a imprensa, permitir a livre expressão e, em meio às
eternas e ingênuas discussões do gênero, debater como dinamizar a
economia para competir com o capitalismo.
Dubcek era
ideologicamente tão puro que Leonid Brejnev, o poderoso manda-chuva e
raios soviético, permitiu que a experiência avançasse durante alguns
meses, contra promessas de que os dogmas não seriam minimamente
alterados.
Filho de pais
eslovacos tão comunistas que, dos Estados Unidos, para onde haviam
emigrado, foram para a União Soviética, nas lonjuras do Quirguistão,
construir o socialismo, Dubcek foi criado desde pequeno como um
autêntico “homem novo”.
Era, para os russos
da cúpula comunista, o “nosso Sacha”. Por isso, Brejnev tinha lágrimas
nos olhos quando o viu em Moscou, depois de ser preso pela polícia
política soviética em Praga, levando uma coronhada de fuzil, e embarcado
no mesmo avião que havia trazido 100 agentes secretos para desmantelar o
coração político e intelectual da experiência de abertura.
“Eu confiei em você.
Como pode nos trair?”, gritou o homem que, com a invasão da
Checoslováquia, deixaria o próprio nome para sempre ligado à “doutrina
Brejnev”: o vassalo que saísse da linha no cinturão de satélites da
Europa Oriental, seria devidamente trazido de volta a ela.
A demonstração de
poder dada por Brejnev foi avassaladora: 250 mil soldados soviéticos, de
um total que chegaria a meio milhão, foram deslocados para a
Checoslováquia em 20 de agosto.
Para dar a impressão
de movimento unido, havia a participação simbólica de tropas de quatro
“aliados” do Pacto de Varsóvia: Bulgária, Hungria, Polônia e Alemanha
Oriental.
Na madrugada de 21 de agosto, o país estava dominado.
A resistência não foi
pacífica, ao contrário da mitologia criada a respeito. Com os militares
devidamente cercados em seus quartéis pelos invasores, a população
civil saiu em massa às ruas, sem nada nas mãos a não ser a revolta.
Alguns atacaram os
invasores assim, na raça; outros grupos aprenderam rapidamente a fazer
coquetéis molotov, mas a dinâmica gritos de protesto contra tanques
tornou-se um clássico dos levantes populares.
Os ônibus
estacionados às pressas nas ruas de Praga para tentar “segurar” os
blindados acabaram esmagados como se fossem de brinquedo. A dramática
foto acima mostra pessoas mortas debaixo de alguns desses ônibus.
Ao longo de toda a
ocupação, 137 civis foram mortos. Entre os invasores, foram 110 mortes,
na maioria provocadas pelo motivo mais comum de letalidade nos grandes
deslocamentos motorizados contra populações desarmadas: acidentes entre
veículos e blindados.
Houve também
suicídios dos dois lados, o mais dramático do universitário Jan Palach,
que se imolou no centro barroco de Praga em 19 de janeiro de 1969.
Oito – repetindo,
oito – cidadãos soviéticos de uma coragem monumental fizeram a primeira
manifestação de protesto da era comunista. Solitários em sua bravura,
ergueram pequenos cartazes contra a invasão na Praça Vermelha. Alguns só
foram soltos vinte anos depois.
Ao contrário dos
septuagenários de boina, que passam batido pela hedionda subjugação da
Checoslováquia porque acham que “nós perdemos”, jovens esquerdistas
fizeram protestos em muitos países.
Até partidos comunistas capachos, como os da Itália e da França, também protestaram.
Depois de uma semana
de inferno em Moscou, Dubcek e os outros presos da cúpula foram
embarcados de volta, com uma agenda a cumprir chamada “Protocolo de
Moscou”: falar e fazer tudo o que, claro, Moscou mandava ou ver a
Checoslováquia sofrer consequências piores ainda.
A jornalista da Rádio
Praga que entrevistou Dubcek em 27 de agosto, Margita Kollarová,
lembrou-se para sempre do homem alquebrado que falava em frases
truncadas. A certa altura, ele travou.
“Houve um silêncio e
eu não sabia o que fazer”, contou ela, anos depois. Ansiosa, fez sinal
pedindo um copo d’água. O som do copo colocado na frente dele recuperou a
compostura sofrida de Dubcek. “Depois de um tempo, ele recomeçou a
falar. As lágrimas corriam pelo rosto dele.”
Esmagados, os checos e
eslovacos, que depois se dividiriam em dois países, passaram a
praticar a usar alguns métodos de resistência pacífica. Uma das lendas
urbanas mais propaladas foi a dos sinais de trânsito trocados e até de
cidadezinhas inteiras que mudavam de nome – Dubcek e Svoboda, em
homenagem ao presidente.
Batalhões inteiros de invasores se perdiam, numa era em que, acreditem, não existiam celulares nem navegação por satélite.
Viktor Suvorov,
pseudônimo do historiador Vladimir Bogdanovich Rezun, tem uma explicação
mais prosaica. A maioria dos soldados deslocados para a invasão era dos
confins do império, muitos dos “lugares que criam renas”. Entendiam
apenas dez palavras de comando em russo, “sendo que uma delas era
‘Hurra’”.
Ele sabe do que está
falando: como oficial da inteligência militar, participou da operação
Checoslováquia, exasperando-se com a ineficiência terminal de
reservistas “gordos, destreinados e indisciplinados, que tinham
esquecido tudo o que sabiam”.
As tropas bem
treinadas e equipadas era reservadas para o mais importante, vigiar e,
se fosse o caso, “neutralizar” a massa de soldados. Quando o grosso dos
invasores foi retirado, muitos foram levados direto para ser reeducados
na fronteira com a China”.
O stalinismo havia
acabado há vinte anos, mas não o conceito de que não existia coisa mais
perigosa de que um soldado soviético “contaminado” pela experiência de
conhecer outro país, descobrindo que o paraíso operário estava na
vanguarda do atraso.
Ainda mais um como a
Checoslováquia, onde o gosto da liberdade havia reinado durante os sete
meses da Primavera de Praga, até chegaram os “libertadores”, título de
um dos livros de Suvorov, que fugiu para a Inglaterra em 1978.
“A triste lição da
libertação tinha sido aprendida e todos nós entendemos que, pelos
próximos dez anos, não importando o que acontecesse no mundo, ninguém
ousaria nos mandar para libertar qualquer país com um padrão de vida
mais alto do que o nosso.”
O movimento de
renovação na Checoslováquia começou a dar os primeiros sinais há 51
anos, em junho de 1967, quando alguns escritores que, claro, faziam
parte do Sindicato dos Escritores, lançaram cautelosamente uma ideia
heterodoxa.
A literatura,
propunham, não devia ser subordinada aos interesses do Partido
Comunista. Em outras palavras, não deveria ser censurada. Foram
castigados, claro.
A revista literária
da qual participavam foi transferida para o controle direto do
Ministério da Cultura. Um ano depois, a onda libertária embriagava o
país. Até o nome da revista literária foi mudado.
O maio de 68 na
França também se originou de um pequeno protesto de intelectuais,
especialmente cineastas, quando André Malraux demitiu o diretor da
Cinemateca Francesa, Henri Langlois.
No primeiro protesto,
em 9 de fevereiro, Jean-Luc Godard fez um discurso e no
empurra-empurra, quebrou os óculos. “O discurso dele incluía a palavra
‘encriers’ (tinteiros), sabe deus por quê”, relembrou Stephen Frears, o
diretor inglês que estava presente por acaso, sem entender nada do que
estava acontecendo.
Godard virou um dos
figurões de maio de 68, representando a confluência de maoístas,
trotsquistas, anarquistas e outros istas que, num país livre de
democrático como a França, pregavam uma revolução radical.
No conforto da Rive
Gauche, cercados por tudo o que de melhor a civilização ocidental já
produziu, os “soixantehuitards” viam na China da Revolução Cultural, o
falso nome do movimento usado por Mao Tsé Tung para eliminar todas as
lideranças comunistas e o mais mínimo sinal de vida intelectual, um
paradigma.
Achavam, muitos
sinceramente, que era um progresso, um levante das bases, dos jovens que
colocavam chapéus de burro na cabeça de seus professores, contra a
ordem instituída.
No esplendor barroco
de Praga, sufocado pela tirania, os checos e eslovacos que aderiram à
primavera da liberdade queriam simplesmente o que o pessoal da Rive
Gauche sempre teve.
Colocar os dois
movimentos como se fizessem parte do mesmo conjunto ideológico-cultural,
porque aconteceram em 1968, é um ato de astrologia intelectual.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário