Caetano
Veloso, Paula Lavigne, Alexandre Frota e o Movimento Brasil Livre (MBL)
estão no meio de uma polêmica. O cantor e a produtora, que foram casados
de 1986 a 2004 e reataram o relacionamento em 2016, estão processando Frota e a organização,
que se referiram a Caetano como “pedófilo” nas redes sociais no último
fim de semana. Isso porque o artista tirou a virgindade de Paula quando
ela tinha 13 anos e ele, 40, na década de 1980, fato revelado por ela
própria em entrevista, anos atrás.
Ao
divulgar a notícia, alguns veículos de comunicação afirmaram que, à
época dos fatos, não era crime uma pessoa maior de idade manter relações
sexuais com menores de 14 anos, pois foi só em 2009 que o Código Penal
passou a prever o delito de “estupro de vulnerável”. Pela legislação
atual, “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor
de 14 (catorze) anos” rende reclusão de oito a 15 anos,
independentemente do consentimento da vítima. Mas é correto dizer que
foi só com o advento da Lei n. 12.015/2009, conhecida como Lei de Crimes Sexuais, que manter relações com menores de 14 anos se tornou crime? A resposta é não.
O que
acontece é que, antes de 2009, não havia a figura específica do estupro
de vulnerável, mas existia a presunção de violência vinculada ao crime
de estupro, como se fosse uma proibição geral. Basicamente a tipificação
ganhou outro nome, mas com objetivo de traduzir em lei o que já era
aplicado nas cortes brasileiras. Antes de 2009, recorria-se, nesses
casos, ao artigo 224 do Código Penal, revogado justamente pela Lei n.
12.015/2009: “Art. 224 Presume-se a violência, se a vítima: a) não é
maior de quatorze anos”.
Porém,
de acordo com Jovacy Peter Filho, advogado criminalista, a condenação
não era certa porque a presunção da violência era relativa. Peter Filho
explica que a Justiça levava em consideração dois critérios: o da
compleição física e o das experiências pretéritas. O primeiro dizia
respeito ao biótipo da pessoa, que, mesmo com 13 ou 14 anos, poderia
aparentar ser mais velha. “Utilizava-se esse critério para encontros
esporádicos, nos casos de pessoas que acabavam de se conhecer”, afirma o
advogado. O segundo aspecto estava relacionado à conduta social da
adolescente, que poderia ser compatível com a manifestação sexual. Mesmo
com os critérios presentes – que não eram, necessariamente, cumulativos
– havia condenações, porque “a análise da criminalização da conduta
cabia muito a um estudo concreto do magistrado”, salienta Peter Filho.
Para o
promotor Diego Pessi, a redação original do Código Penal já considerava
presumida a violência em caso de vítima menor de 14 anos e a presunção
do artigo 224 não poderia ser relativizada, ainda mais à luz da doutrina
da proteção integral da criança e do adolescente. “Esse entendimento
não parece ser o mais adequado à luz da jurisprudência dos tribunais
superiores”, diz. De fato, a jurisprudência no sentido das sentenças
desfavoráveis ao réu é farta até mesmo no Supremo Tribunal Federal
(STF).
O consentimento era irrelevante
Ao
relatar o Habeas Corpus (HC) 51.500/GB, em 1973, o então ministro
Antônio Neder negou liberdade a um homem que respondia a um processo por
ter mantido relações sexuais com uma jovem de 12 anos,
independentemente do consentimento da garota e de experiência sexual
anterior. O mesmo entendimento foi seguido por Carlos Velloso, na
análise do HC 76.246/MG, julgado em 1998. O ministro considerou
“irrelevantes” o consentimento da vítima ao fazer sexo com um homem de
24. Para o juiz, “uma menina de doze anos está, indiscutivelmente, em
formação, [e] não sabe ainda querer”.
Já em
2008, Ellen Gracie relatou o HC 94.818/MG, que envolvia uma menina de 11
anos. A alegação da defesa foi de que a garota consentiu com o ato e
que já tinha “compleição física avantajada”. A ministra anotou que “é
pacífica a jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido de que o
eventual consentimento da ofendida, menor de 14 anos, para a conjunção
carnal e mesmo sua experiência anterior, não elidem a presunção e
violência, para a caracterização do estupro”.
À época
também vigorava o entendimento de que esse tipo de crime era de ação
condicionada à representação, isto é, que depende de uma manifestação de
vontade da vítima, ou de seus representantes legais, para que o
Ministério Público (MP) promova a denúncia. No caso de Paula Lavigne,
seus pais deveriam ter se manifestado – o que não aconteceu.
Desde o Império
O Código
Penal do Império, de 1830 – a primeira legislação penal genuinamente
brasileira, visto que antes eram seguidas as Ordenações Filipinas –, já
previa a presunção de violência quando o assunto eram relações sexuais
com menores de idade. Na época, homem que “deflorar mulher virgem, menor
de dezessete anos” podia ser punido com o desterro, que era a retirada
temporária do condenado do local onde foi cometido o crime. O réu
poderia se safar da pena se casasse com a vítima.
Já em
1890, quando foi promulgado o primeiro Código Penal Republicano,
passou-se a presumir com violência qualquer crime sexual sempre que a
pessoa ofendida fosse menor de 16 anos. O Código Penal em vigor
atualmente é de 1940.
E chamar alguém de pedófilo, é crime?
É importante a ressalva de que “estupro de vulnerável” não é sinônimo de “pedofilia”, ainda que sejam usados como tal.
A
pedofilia é conduta que não contempla tipificação penal no ordenamento
brasileiro. Trata-se de um transtorno de preferência sexual – ou seja,
uma doença – que deve ser diagnosticado por um médico. Segundo a
Organização Mundial da Saúde (OMS), pedófilos são adultos, tanto homens
quanto mulheres, que têm preferência sexual por crianças que ainda não
atingiram a puberdade ou que estão no início dela. O que se pune no
Brasil é a relação sexual – justamente o estupro de vulnerável –, e a
aquisição ou exploração de material pornográfico que envolva crianças,
bem como sua exploração sexual. Esses delitos são regulados pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
No caso
de Caetano Veloso e Paula Lavigne, o MBL e Alexandre Frota estão sendo
processados na esfera cível, numa ação de indenização por danos morais.
“Mas caberia aqui um crime de injúria, que diz respeito a uma violação à
honra subjetiva, à autodeterminação do sujeito”, explica Jovacy Peter
Filho. Pelo Código Penal, injuriar alguém consiste na ofensa à
“dignidade ou decoro” de alguém. O delito pode ser punido com detenção,
de um a seis meses, ou multa.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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