Liberdade é um princípio
fundamental do liberalismo; "libertação" é prática antiliberal de
revolucionários. O professor João Carlos Espada trata do tema em artigo
publicado pelo Observador:
"a patrulha politicamente correta acusa as normas de conduta diferentes
das suas de serem fundadas no "preconceito". Ocultam o preconceito da
sua campanha “libertadora”: preconceito contra a liberdade". Ao texto:
Uma das notícias
nacionais mais peculiares do passado mês de Agosto residiu na censura
governamental a dois livros inofensivos de uma empresa privada, a Porto
Editora. Os factos são conhecidos e não será necessário voltar a
repeti-los. Mas o alcance político e cultural do episódio merece ser
revisitado.
Não se trata de um
fenómeno estritamente caseiro. Um pouco por todo o mundo ocidental
cresce um activismo agressivo contra normas de comportamento
espontaneamente adoptadas pela generalidade das pessoas comuns. A
“revolução cultural em curso” denuncia essas normas como “opressivas”.
E, contra essa alegada “opressão”, advoga a “libertação”: ataca o
casamento heterossexual monogâmico, pretende a legalização da eutanásia e
sustenta que o aborto deve ser entendido mais ou menos como a extracção
de um dente. Agora, ataca também todas as distinções entre os sexos,
acusando-as de igualmente opressivas.
Este programa da
revolução cultural assenta num paradoxo facilmente observável: em nome
de uma alegada liberdade sem entrave, recorre a medidas coercivas para
tentar impor às pessoas uma visão do mundo — em rigor, a visão do mundo —
que considera politicamente correcta. Este é o paradoxo que ficou
particularmente patente no acto de censura aos dois livros inofensivos
da Porto Editora.
Acontece que este
paradoxo não é novo na história das ideias políticas. É um paradoxo que
distingue uma longa tradição de um certo tipo de pensamento autoritário,
alegadamente “libertador”. Nos últimos três séculos, ficou
particularmente patente em autores como Jean-Jacques Rousseau
(1712-1778) e Karl Marx (1818-1883).
Rosseau e Marx
apresentaram-se como defensores da “verdadeira liberdade”. Só que esta
não era a liberdade dos indivíduos concretos, ou das pessoas que
conhecemos no dia-a-dia. As pessoas que nós conhecemos (e que nós somos)
estão enraizadas em modos de vida realmente existentes — pessoas com
uma família, uma profissão, alguma propriedade, eventualmente uma
igreja, seguramente uma concepção particular do bem e da vida. Por
outras palavras, são pessoas concretas e, por isso, variadas.
Em contrapartida, os
indivíduos a que se referiam Rousseau e Marx não são estas pessoas
concretas, ou, em rigor, são apenas algumas destas pessoas. São aquelas
que têm uma interpretação muito particular da liberdade: as que entendem
a liberdade como “libertação” de todos os laços sociais particulares
que nos ligam àquilo que nos é familiar.
É por isso que, em
bom rigor, esta liberdade como libertação do familiar supõe a ideia de
um “Homem Novo” — um homem que, no dizer de Rousseau e Marx, se
“libertou” de todos os laços particulares e começou a raciocinar a
partir do zero, recusando heranças da experiência vivida pelas gerações
anteriores. Era o cidadão da Esparta continental e colectivista
imaginado por Rousseau (contra o comerciante da marítima e liberal
Atenas); ou o revolucionário profissional imaginado por Marx (contra o
“alienado” homem comum realmente existente).
Um dos problemas
inerentes a esta visão da liberdade como “libertação” do familiar é
bastante simples: a maior parte das pessoas não quer “libertar-se” do
que lhes é familiar. As pessoas têm os seus modos de vida — aos quais
estão ligadas porque neles se sentem confortáveis, porque estes lhes são
familiares e não lhes foram centralmente impostos por ninguém. E esses
modos de vida familiares têm as suas concepções do bem que não são as do
“Homem Novo”.
É por isso que a
construção do “Homem Novo” vai exigir — exigiu sempre que foi tentada —
um enorme exercício de engenharia social autoritária, visando redesenhar
a partir de cima os modos de vida das pessoas. Rousseau disse
claramente que os homens tinham de ser libertados — se necessário,
contra a sua própria vontade. Marx advogou para esse efeito a “ditadura
do proletariado” — que os seus discípulos fervorosamente ensaiaram.
Esta engenharia
social para construir o “Homem Novo” terá sempre — e teve sempre que foi
tentada — como alvo principal aquilo a que Edmund Burke (1729-1797)
chamou “os pequenos pelotões”: as instituições espontâneas e
descentralizadas da sociedade civil, que incluem em primeiro lugar as
famílias, a vizinhança, as associações voluntárias, as igrejas, as
escolas não centralmente dirigidas pelo estado, as empresas privadas e
os mercados não centralmente comandados.
Estas são as
instituições espontâneas cuja riqueza e variedade distinguem os países
livres. A Magna Carta de 1215 continua a ser uma referência crucial para
este ideal de uma sociedade livre — protegida pela lei contra as
decisões discricionárias dos poderes de plantão.
As actuais patrulhas
politicamente correctas acusam hoje as instituições descentralizadas, e
as normas de conduta por elas espontaneamente adoptadas, de serem
fundadas no “preconceito”. Ocultam, ou ignoram, no entanto, o
preconceito em que se funda a sua campanha “libertadora”: o preconceito
contra a liberdade.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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