Carlos Andreazza escreve, no Globo, sobre o injustamente criticado discurso de Donald Trump na ONU:
Não é irrelevante que
se trate um comunista ditador assassino, que dispara mísseis por sobre
territórios alheios, como folclórico, quase fofinho, um gordinho
irresponsável, ao passo que tudo quanto feito ou falado por um chefe de
Estado legitimamente eleito, regulado pela mais rígida
institucionalidade, seja recebido como potencial ataque à humanidade.
O episódio recente
que opõe o presidente dos EUA — na verdade, o mundo livre — ao déspota
norte-coreano é o último grito da relativização, não raro inversão, de
valores que adoentou a sensibilidade crítica mundial, com especial
efeito neste país incapaz de ler e analisar. Porque é disto — de uma
chaga da compreensão — que se trata, segundo se informa ao povo do
Brasil: a ameaça real não vem do tirano que factualmente solta bala, mas
do democrata que lembra ter muita bala para reagir.
Esse barbarismo
interpretativo, claro, tem consequências para muito além do autoflagelo
do intérprete bárbaro, pois planta as condições para que gente
importante, a sério, compare Kim Jong-un a Donald Trump, o que equivale a
nivelar opressão e autodeterminação. Para que reste bem claro: por
ignorância ou desonestidade intelectual, investe na histeria aquele que
equipara um ditador, herdeiro de uma ditadura, senhor das leis,
insubmisso a qualquer instituição, a um presidente eleito
democraticamente sob as regras da mais sólida democracia, submetido a
uma Constituição que vige há 230 anos — não importa quem ele seja.
Essa, objetiva, entre
ditadura e democracia, é a distinção que fundamentou o tão atacado
discurso de Trump na ONU. Intervenção — decerto inspirada em Ronald
Reagan — que se deveria comemorar: dura defesa do solo, o da liberdade,
sobre o qual a civilização hoje se assenta, convenção em nome da qual,
aliás, as Nações Unidas foram concebidas; afirmação da independência
nacional como alicerce inegociável; manifestação de compromisso com a
ideia de que nações as mais diversas podem cooperar para proteger suas
soberanias e prosperar; a rigor, corajosa apologia do Estado-nação como o
maior veículo à elevação da condição humana, razão pela qual seu
“America first” não deveria ser entendido como em detrimento dos demais
países, mas em benefício de que outros líderes não façam como Barack
Obama e também priorizem seus povos.
Mas que nada! O
brasileiro influente, homem do mundo, moderninho informado pela CNN,
achou ruim. E assim, sem qualquer reflexão, a coisa se fixou. Porque, se
vem de Trump, só pode ser negativo. Né?
Ocorre que Donald
Trump cumpriu memorável participação na última Assembleia Geral da ONU e
fez um discurso (oh!) revolucionário. E isso exatamente pelo motivo com
que tentam desqualificá-lo: porque — sem lhe passar a mão na cabeça —
cobrou da organização que tire os olhos covardes da burocracia e admita
que estão em curso uma cruzada contra os valores da civilização
ocidental e uma progressiva dilapidação do patrimônio democrático
erguido ao longo de séculos e de muitas guerras.
Foi, sim, uma fala
hostil à ONU. E daí? Por que não se pode discursar hostilmente à ONU, se
o que se denunciava ali, com palavras, são práticas hostis — violências
materiais — contra os próprios pilares da organização? Por que não se
pode exigir da ONU que se levante da acomodação em que se aboletou — e
que serve de escudo estimulante ao genocídio cometido ou patrocinado por
países-membros — para perfilhar as próprias bases, senão do concerto
equilibrado das nações, de sua caríssima estrutura?
Que se chamem as
coisas pelo que são: ditaduras, essencialmente depravadas, em diferentes
graus de putrefação, corroem a existência individual na Coreia do
Norte, em Cuba e na Venezuela — matam. É simplesmente transgressor — e
sintomático do tempo em que vivemos — um chefe de Estado ter o topete de
dizer a verdade na ONU: “O problema na Venezuela não é que o socialismo
tenha sido mal implementado, mas que o foi fielmente.”
Não é aceitável a um
democrata senão celebrar que o presidente de uma grande nação suba à
tribuna da ONU para acusá-la de complacência com membros que apoiam
terrorismos e minam a organização desde dentro, ocupando espaços e lhes
subvertendo as funções. Ou não representará o sequestro do sistema que
governos avessos ao mais mínimo direito humano integrem o Conselho de
Direitos Humanos das Nações Unidas?
É óbvio que, no cerne
da reação ao discurso de Trump, estiveram o embaraço ante as críticas
ao cultuado (porém miserável) legado obamista e o repúdio patológico a
Israel. O país foi homenageado na fala do presidente americano,
vergonhosa que é a forma como a ONU sanciona aquele Estado, democrático,
e afrouxa a cobrança sobre, por exemplo, o Irã, cujo cumprimento do
acordo nuclear (crime de responsabilidade chancelado pelo marqueteiro da
paz Obama) não pode ser aferido pelas barreiras que aquela ditadura,
esteio à barbárie na Síria, sustentáculo do Hezbollah, entre outros, e
agente desestabilizador do Oriente Médio, impõe à fiscalização formal
por organismos internacionais.
Mas tudo isso pode
ser franja, espuma, coisa menor; e a reação histérica ao discurso de
Trump decorrer verdadeiramente de ele haver falado, no plenário da ONU,
em pátria, Deus e família. Oh!
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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