Bruno Alves publica um interessante texto sobre as peripécias do governo italiano no site O Insurgente, de Portugal. Vale alertar que a Itália pode, segundo as notícias, criar mais problemas para a União Europeia. Si non è vero, è ben trovato:
A Itália, em certo
sentido, não existe. É, como país, uma invenção mais ou menos recente:
sendo uma região altamente montanhosa, o relativo isolamento das
diferentes povoações que daí resultava (evidente, ainda hoje, nas
diferenças entre o italiano que se fala em cada uma delas) favorecia não
só a sua fragmentação política (os habitantes de Turim não se viam como
conterrâneos dos habitantes de Veneza, muito menos dos de Nápoles) como
a tornava particularmente vulnerável a invasões estrangeiras, enquanto a
riqueza do norte da Península (abençoada com um solo rico e rios
navegáveis que facilitavam o comércio) e a localização no centro do
Mediterrâneo a tornavam apetecível aos reinos (e Impérios) da
vizinhança. Afinal, o Império Romano caíra assim, com invasões dos povos
germânicos a norte, e desde então, a divisão da península em vários
reinos pequenos e fracos foi sempre vista como a razão para as
constantes invasões e ocupações que, de Norte a Sul, marcaram os séculos
seguintes.
No final do século
XIX, os governantes do principado do Piemonte conseguiram finalmente
unificar sob o seu domínio estas várias províncias, mas como se
queixaria o Marquês de Azeglio, se “a Itália estava feita, restava ainda
fazer os italianos”: as várias gentes destas várias terras não se viam
como partes iguais de um mesmo povo – o cineasta “italo-americano”
Martin Scorsese conta que, na sua rua em “Little Italy”, as pessoas do
seu prédio, todas originárias da mesma vila siciliana, não falavam com
as do prédio da frente, por serem de uma outra vila – e o Estado central
era inevitavelmente visto como um poder ilegítimo e estrangeiro por
cada um deles. A história repleta de revoltas, pequenas guerras civis e
terrorismo que se seguiu era assim particamente uma inevitabilidade, e a
única forma que o poder político encontrou de pacificar a propensão de
províncias e grupos políticos para a insurreição era tentar comprá-las
com rendas: desde os Católicos que resistiram à unificação (por ter
posto em causa a independência dos Estados papais) aos partidos
regionais independentistas como a Liga Norte dos nossos dias, passando
pelos socialistas do século passado e pelos vários grupos de interesse
que, ao longo da história italiana foram ganhando força suficiente para
reclamarem um lugar à mesa do Orçamento (sindicatos, associações
patronais, trabalhadores agrícolas, donos de terras, etc.) todos foram
“integrados” no sistema, através da partilha da riqueza que este ia
conseguindo extrair ao resto da sociedade.
Se esta estratégia de
partilhar entre as várias forças políticas e seus clientes os despojos
do Tesouro conseguiu evitar a “desunificação”, não conseguiu evitar uma
série de problemas. Criou, em primeiro lugar, uma série de
ressentimentos mútuos que ainda hoje alimentam a política italiana: o
Sul pobre (com o solo bem menos fértil que no Norte, as províncias do
Sul de Itália nunca conseguiram gerar a riqueza dos seus vizinhos, nem
ter o capital suficiente para se industrializarem quando eles se
industrializaram) foi sempre economicamente atrasado em relação ao
Norte, ficando na sua dependência económica; enquanto o Norte se
ressentia (e ressente-se: a Liga Norte nasce e vive disto) de “pagar” a
“preguiça” do Sul (parece-vos familiar?), as províncias do Sul abominava
as imposições nortenhas (Cavour, o grande obreiro da unificação, achava
que o atraso sulista se devia à falta de instituições semelhantes às do
Piemonte, e tratou de as impor no Sul. Obviamente, não resolveu nada e
apenas conseguiu a hostilidade local). Em segundo lugar, criou uma fonte
de perenes problemas orçamentais e de sustentabilidade das finanças
públicas, tão ou mais graves hoje do que o foram no final do século XIX:
a necessidade de fazer chover dinheiro público em cima dos partidos,
dos governos regionais, das autoridades municipais, e das suas várias e
respectivas clientelas faz com que o Estado italiano tenha sempre que
gastar mais do que aquilo que consegue cobrar em impostos, problema que
só se irá agravar à medida que a população continuar a envelhecer e a
recolher pensões. Em terceiro lugar, criou uma sociedade profundamente
desigual e à beira do colapso, em que quem tem a sorte de estar dentro
do sistema se pode sentir relativamente seguro, mas quem esteja fora
dele (trabalhadores não sindicalizados, desempregados, os mais jovens)
fica à margem e sem grande futuro. E, por último, criou um quadro
institucional necessariamente frágil, que, tendo como principal
propósito equilibrar de forma mais ou menos equitativa as várias e
concorrentes reclamações dos grupos integrantes do sistema, não pode nem
quer enfrentar os seus problemas: a quantidade inacreditável de
governos que Itália teve e deixou cair desde o final da II Guerra
Mundial nasce daqui, como nascera daqui a fragilidade dos Governos que
se seguiram à unificação. O fascismo de Mussolini foi, entre outras
coisas, uma tentativa de, com “mão forte”, sair deste impasse, como o
foram também – de forma mais democrática - as propostas de reforma
constitucional de Matteo Renzi ontem derrotadas.
Renzi achava com
razão que com o sistema de governo actual – com bloqueios constantes no
parlamento, no Senado e nos governos regionais – a Itália não
conseguiria nunca fazer as reformas que precisa fazer. Não percebeu, no
entanto, que a Itália não faz as reformas que precisa fazer porque a
sociedade não as quer, e que é por não as querer fazer que tem o sistema
que tem. Não percebeu, por exemplo, que ao procurar introduzir um
sistema que praticamente garantia uma maioria absoluta no parlamento a
quem quer que conseguisse ser o partido mais votado em futuras eleições,
com o Senado mais fraco e amestrado e com governos regionais sem meios
para servir de obstáculo ao Governo, estava a dizer ao sistema político
italiano que quem perdesse cada futura eleição correria o risco de ficar
excluído do festim orçamental. Ou seja, estava a pôr em causa o
principal alicerce da política italiana desde a unificação.
Imaginemos que o
“Sim” tinha ganho e Renzi conseguia ver aprovadas as suas reformas
constitucionais e (o que não seria garantido) ganhar as eleições
legislativas seguintes (em 2018 como planeado, ou antecipadas para
2017). Se promovesse uma série de reformas “liberalizantes” que
destruíssem grande parte das protecções de que gozam aqueles que são
parte integrante do sistema, abrindo oportunidades aos excluídos, Renzi
enfrentaria necessariamente uma enorme oposição de várias “forças” mais
ou menos “vivas” do país, que não teriam outra alternativa que não lutar
até à (figurativa)morte contra a perda daquilo que as alimenta. O
descontentamento de quem dependia do estado de coisas liquidado seria
brutal, e daria certamente a vitória em próximas eleições ao populista
Cinco Estrelas, e muito provavelmente ao crescimento (também brutal) da
independentista Liga Norte. À medida que as “soluções fáceis” do Cinco
Estrelas se provassem não serem soluções nenhumas, a instabilidade
política cresceria ainda mais, principalmente tendo em conta que as
novas regras constitucionais lhe dariam um poder imenso quase sem
obstáculos, que incentivaria o combate desesperado das outras forças
políticas, sempre sob a ameaça da exclusão da partilha rentista. A
degradação do ambiente político prosseguiria, provavelmente com a Liga
Norte a conseguir explorar e aproveitar-se do ressentimento do Norte
rico com a barafunda generalizada, conseguindo talvez reduzir
drasticamente as transferências das zonas ricas que representa para o
Sul pobre, que se revoltaria com o abandono a que seria votado, ateando a
fogueira do conflito regional e levando mais tarde ou mais cedo a um
referendo independentista no Norte e à desintegração da unidade política
do país. E se porventura Renzi, uma vez eleito, recuasse nas suas
proclamadas intenções reformistas uma vez batendo no muro imobilista dos
interesses instalados, teria de viver com as consequências da
manutenção desse estado de coisas, desde a degradação das finanças
públicas à das condições de vida de grande da população, levando ao
crescimento do descontentamento com a sua governação, ao crescimento do
Cinco Estrelas e sua provável subida ao governo seguida de nova
desilusão e crescente instabilidade, e ao crescimento da Liga Norte e
consequente deflagração dos conflitos regionais e possível desintegração
do país enquanto tal.
A derrota de Renzi no
referendo de ontem e a sua consequente demissão lançam a Itália numa
profunda incerteza. O que não deve ser menosprezado, e em parte talvez
explique o resultado, é que o resultado inverso produziria o mesmo
efeito, porque não é o sistema político italiano que torna a sociedade
italiana como ela é: é o facto de a Itália ser o que é que faz com que o
seu sistema político seja como é. Renzi não percebeu que as reformas
constitucionais que quis introduzir eram, não uma solução para o que
quer que fosse, mas apenas um sintoma dos sérios problemas que a Itália
enfrentou, enfrenta, e enfrentará.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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