MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Um outro olhar

Esqueça os clichês: basta uma pincelada pelas ruas de Amsterdã para começar a percebê-la mais colorida, mais bonita e especialmente, mais artística


JOÃO LUIZ SAMPAIO/ AMSTERDÃ - O Estado de S.Paulo
Visitar uma cidade é sempre confrontar nosso imaginário com a realidade - mas há alguns locais em que a briga entre o real e a fantasia parece não deixar sobreviventes. Difícil não pensar nisso durante uma visita a Amsterdã. A capital holandesa derruba todo e qualquer clichê ou imagem preconcebida que se possa fazer dela.
 - Divulgação/Rijksmuseum
Divulgação/Rijksmuseum
E, sim, isso é muito bom.
Um passeio idílico de bicicleta por parques ou ruas centenárias? Só se você ignorar o caos de ciclistas que estão em todo o lugar - e sempre no seu caminho (ou seria o contrário?). Caminhadas à beira dos canais? Depende de a chuva dar uma trégua - se bem que, com água caindo, as pessoas buscam abrigo: e fica mais fácil de caminhar pelas ruas do centro histórico. Uma volta pelas escuras e proibidas ruas do Red Light District, então? Sim, mas um detalhe: elas são claras, nada discretas - e estão repletas de jovens e barulhentos turistas e suas muitas garrafinhas de cerveja.
Então, por um minuto, você deixa de lado suas expectativas. E a cidade começa a ganhar vida e a formar um novo imaginário. Uma primeira parada no Amsterdam Museum ajuda a entender a formação da capital holandesa. A partir do centro, a cidade foi crescendo ao longo dos séculos em círculos demarcados pela presença dos canais. É como uma cebola, com suas diferentes camadas. E, a cada uma delas, Amsterdã ganha novo significado, pautado por uma história que a coloca no centro de episódios marcantes, sejam as grandes navegações (lembre-se que os holandeses estiveram no Nordeste brasileiro), seja a Segunda Guerra, da qual a casa de Anne Frank oferece testemunho contundente.
Se você quer canais, vá a Veneza. Museus? Paris. História? Londres, Roma. Agora, quer tudo isso junto, em um só lugar? Vá a Amsterdã. É essa a piada na boca dos profissionais de turismo na Holanda. Mas, brincadeiras à parte, é justamente ao olhar para a sua própria história que a capital holandesa espera atrair um número maior de turistas. E, nesse processo, a arte tem desenvolvido papel importante. A orquestra da cidade, por exemplo, está completando 150 anos - e, assumindo sua vocação de embaixadora cultural, montou uma turnê que a levou a todos os continentes ao longo deste ano (eles estiveram em São Paulo e no Rio no começo de junho).
Renovados. As artes plásticas, porém, são o ponto central dessa política. Os dois principais museus de Amsterdã acabam de passar por um processo delicado de restauração. O novo Rijskmuseum, reinaugurado em abril depois de 10 anos de reformas. abriga uma vasta coleção de arte holandesa - com direito a algumas das principais obras de Rembrandt e seus contemporâneos. Não se trata apenas de ter contato com quadros seminais da cultura ocidental: você sai do museu e, de repente, a cidade ganha outras cores - ou é o seu olhar que passa a enxergar no verde e no cinza da paisagem gradações diferentes.
Já o Museu Van Gogh, que reúne obras do artista, optou, em sua reinauguração, por dedicar uma mostra ao processo de trabalho do pintor. Com isso, derrubou alguns mitos - como o de que ele jamais se interessou por estudos formais, ideia que sua correspondência e obras da juventude colocam no chão. Outro destaque: a recriação digital de quadros possibilitou recuperar as cores originais de algumas das principais telas do pintor, antes que a ação do tempo interferisse nas obras. Acredite: é um outro Van Gogh que o museu nos revela. Mais complexo, contraditório, ousado e moderno.
São adjetivos, no final das contas, que poderiam ser usados para descrever a própria Amsterdã. Na arte, afinal, nem tudo parece ser o que é - e o que se espera de uma obra é que ela nos afaste da realidade para fazer com que a enxerguemos de outra maneira. Justo, então, que seja assim também com a cidade que tenta fazer da criação uma de suas marcas.
Do prédio ao acervo, tudo é arte no Rijksmuseum. Dois milhões de visitantes ao ano fazem do Rijksmuseum o mais concorrido museu da Holanda. Ele é também a casa do principal acervo do país. Mas pode-se resumir tudo isso dizendo apenas que é nele que se encontra o mais famoso dos quadros de Rembrandt: A Ronda Noturna.
É em frente ao quadro que uma multidão se coloca diariamente, mas vale a pena desviar o olhar para outras salas do museu. Com uma verba anual de 40 milhões, eles têm investido na coleção de arte medieval - e isso tem permitido formatar um percurso cronológico. Há ainda telas de artistas como Vermeer e Crivelli.
Um dos atrativos do Rijks, porém - e não se assuste com as filas, elas são grandes, mas andam rápido -, é o próprio prédio. Ele foi idealizado no século 19 por Pierre Cuypers - e a brincadeira, por lá, é de que lembra a arquitetura dos palácios e castelos da série Harry Potter, mas, de verdade, nem parece tanto assim. Enfim, o que importa é que ele foi reaberto este ano após passar por um processo de restauração que levou dez anos e inclui a remodelação do átrio e de boa parte das galerias internas. Mais: rijksmuseum.nl; entrada a 15 euros.
Para chamar a atenção para sua reinauguração, o Rijksmuesum fez uma ação promocional em que A Ronda Noturna ganha vida. Veja o ótimo vídeo: tinyurl.com/museurijks
Pela Europa no encalço do artista. Estima-se que mais de uma centena de museus no mundo tenham obras de Van Gogh - no Brasil, por exemplo, o Museu de Arte de São Paulo guarda Passeio ao Crepúsculo; já nos EUA, pode-se conferir a vasta seleção no Museu de Arte Moderna de Nova York. Ainda assim, é possível montar um pequeno roteiro Van Gogh na Europa, para aqueles que, além de ver as obras, se interessem pelos locais onde viveu o artista.
Na Holanda, além de Amsterdã, uma boa parada é a pequena cidade de Zundert, que fica no sul do país, próxima à fronteira com a Bélgica. Foi lá que Van Gogh nasceu, em 30 de março de 1953, e passou sua infância. Sua casa ainda pode ser visitada, assim como a igreja em que seu pai foi pastor. Desde a capital, dá para acessá-la facilmente de trem, em uma viagem de cerca de 40 minutos. Mais informações podem ser encontradas no site vangoghhuis.com.
Depois de períodos em Haia e Bruxelas, Van Gogh muda-se em 1886 para Paris, onde vai dividir um pequeno apartamento em Montmartre com o irmão Theo, que será o grande confidente e amigo do pintor ao longo de sua vida. Não é possível visitar o prédio, mas não custa nada passar pelo local e imaginar que foi naquela região que o artista teve contato pela primeira vez com artistas como Toulouse-Lautrec, que o teria apresentado ao absinto, ou Monet, Renoir, Sisley, Pissarro, Degas, Signac e Seurat. Do outro lado do Rio Sena, parada obrigatória é o Museu D'Orsay, onde estão quadros como Igreja em Auvers ou a reprodução de seu quarto em Arles. Informações pelo site musee-orsay.fr.
Van Gogh viveu em Londres entre 1873-75. A Tate Gallery (tate.org.uk) tem a maior coleção britânica do artista, mas é possível encontrar seus quadros também na National Gallery (nationalgallery.org.uk) e no British Museum (britishmuseum.org).
O pintor termina sua vida em Arles, no sul da França. São desse período os quadros retratando os girassóis, assim como a Casa Amarela, onde viveu, tido por especialistas como fundamentais. A Fundação Van Gogh mantém essa memória viva, com exposições constantes (fondation-vincentvangogh-arles.org).
Van Gogh em cores ainda mais vibrantes. No imaginário ocidental, poucas figuras são tão fascinantes quanto a do artista. De onde vem a inspiração para a criação de uma obra? Qual o equilíbrio necessário entre técnica e emoção? Que papel a sua vida tem no processo de criação? São todas perguntas cabíveis - e, no caso de um artista como Van Gogh, envolvido em episódios emblemáticos, como a decisão de cortar a própria orelha, ganham ainda mais repercussão.
Foi lidando com essas e outras questões que a equipe de curadores se dedicou à tarefa de pensar que cara deveria ter a primeira exposição do Museu Van Gogh após a sua restauração. E, depois de muitas conversas, surgiu uma ideia: entender justamente o método de trabalho de Van Gogh - e, no processo, derrubar alguns mitos em torno de sua personalidade.
"Um dos grandes equívocos em torno de Van Gogh é de que se tratava de um talento natural, o que significaria que em momento algum ele demonstrou interesse por escolas ou mesmo pelo que outros artistas de sua época faziam", lembra Teio Meedendorp, um dos pesquisadores do museu, durante uma visita pela coleção. E complementa: "Um dos objetivos da mostra Van Gogh at Work(até janeiro de 2014) é justamente mostrar que, mesmo que ele não tenha obtido sucesso em instituições de ensino, isso não significou desinteresse pelo estudo. Ao contrário, no início de sua carreira, encontramos ele muito preocupado com esboços, exercícios e também com a troca de informações com outros artistas".
É esse o conceito que guia a disposição das obras do artista pelo museu, que completa 40 anos. De cara, encontramos obras do início de sua trajetória, menos conhecidas e que se "parecem" menos com o Van Gogh ao qual nos acostumamos - mas que o inserem no contexto de sua época.
É, enfim, um novo olhar, e oferece uma visão alternativa também para os quadros que conhecemos - ou que acreditávamos conhecer. Na busca por compreender o processo de trabalho do artista, uma parada importante era o material que ele utilizava em seus quadros. E isso levou a uma percepção interessante. Se a ousadia no uso da cor foi uma marca de Van Gogh, o fato é que as cores que vemos hoje não são exatamente aquelas imaginadas pelo artista: houve um desgaste nas telas, causado pelo tempo e pelo tipo de tinta utilizado. E, assim, é possível especular que muitos dos quadros carregavam cores ainda mais fortes do que vemos hoje.
Interferir nos quadros, restaurando a cor original, diz Meedendorp, não é uma opção. O museu, então, criou versões digitais que possibilitam a comparação. É fascinante e, no site do museu, é possível ver, mesmo de longe, a diferença: vangoghmuseum.nl. Ingressos custam 15 - e, para evitar filas, recomenda-se a compra pela internet.
Impressões de Van Gogh Versões
Van Gogh fez diversas versões de O Quarto
- a primeira delas é de 1888. Em todas, o que impressiona é o uso de cores fortes e expressivas, que formam uma série de contrastes e cujo objetivo é ressaltar o estado emocional do artista durante o processo de confecção da obra
Schipol, o moderno aeroporto de Amsterdã, é um ponto turístico à parte: tem lojas, hotéis, biblioteca, cassino, spas e até uma pequena sucursal do Rijksmuseum
Vista de Auvers
Um dos primeiros quadros feitos por Van Gogh na chegada à cidade, em 1890. A paisagem fascinou de tal forma o artista que ela seria tema de diversas telas

Autorretrato
O artista registra a si próprio, em Paris (1888). Para o nosso olhar, trata-se apenas de um pintor com suas tintas e pinceis. Mas, para os pesquisadores do museu, o quadro oferece informação preciosa sobre o método de trabalho de Van Gogh
Girassóis
Gauguin, após viver em Arles por um tempo, pediu para levar o quadro consigo para Paris. Van Gogh não deixou, mas fez
uma versão para o colega
Campo de Trigo com Corvos
Durante anos, acreditou-se que esta fosse a última obra do pintor, mas especialistas do museu acreditam que há quadros posteriores. Seja como for, está entre as criações da maturidade de Van Gogh, que via nele símbolo do que havia de saudável na vida no campo
Vista do Mar em Scheveningen
A pincelada brusca, as tintas de cores fortes, a espuma do mar, o céu escuro, a vela içada: tudo se presta a um retrato dramático de uma tempestade no norte da Holanda. Uma das pérolas do acervo, aparece como reprodução: o original foi roubado no ano passado

Telhados e Casas
A vista de Paris foi feita já sob o impacto da chegada à França. É testemunho do fascínio inicial do pintor por cores
escuras, mas também do contato com os pintores do Impressionismo

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