BLOG ORLANDO TAMBOSI
O relato da Paixão de Cristo é um compêndio intemporal da Humanidade, um catálogo da natureza humana. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
É o Evangelho mais longo do ano, o de Domingo de Ramos, que narra a Paixão. É sempre lido em diálogo e fala de nós e connosco.
É
um texto de grande dramaticidade por onde desfilam os nossos pecados e
debilidades e até a debilidade de Cristo, enquanto homem. Nesse sentido,
o itinerário da Paixão do Senhor, a Sua entrega até à morte que abre
portas à Ressurreição, sendo o mais misterioso e decisivo dos mistérios
da Fé, é um compêndio intemporal da Humanidade, um catálogo da natureza
humana. Judas, Pedro, os sacerdotes, Pilatos, a multidão, os dois
ladrões, o Centurião, José de Arimateia são de ontem, de hoje e de
sempre.
A
traição de Judas é a traição paga com dinheiro – trinta moedas de
prata. O papel de Judas é ingrato: tinha de haver um traidor para que se
cumprissem as Escrituras. Lembro-me de ser adolescente e de, com o meu
sentido humanista e revolucionário de então, achar que Judas era vítima
de um guião pré-definido que fazia dele o inevitável mau da fita, o
cúmplice daquela oligarquia oficial e oficiosa de sacerdotes, anciãos,
fariseus e escribas, uma colecção de intriguistas acomodados e
reaccionários, a classe política do Velho Testamento, a cerrar fileiras
contra a Boa Nova.
A
traição de Judas pode também ver-se como a traição de um radical que
queria um Jesus político, justiceiro e identitário, que levantasse os
judeus contra o colonialismo romano e os colaboracionistas judeus.
Traindo o Messias, forçava-O a recorrer ao Seu poder divino para
libertar o povo e impor neste mundo o Reino de Deus. A traição de Judas,
a tentação de politizar, de usar politicamente e de manipular a Boa
Nova para fins temporais é também uma tentação de sempre.
A
Páscoa judaica celebrava a libertação dos filhos de Israel da tirania
do Faraó do Egipto. Cristo trazia outro tipo de libertação. A noite da
última ceia era o princípio do dia judaico, e o sacrifício dos cordeiros
– memória da passagem do Egipto – vai coincidir com o sacrifício do
Cordeiro de Deus, a Páscoa cristã.
É
na ceia que Jesus diz que entre os doze que ali estão com ele está um
que O vai trair. E Judas, enredado já nas teias da traição, pergunta,
cinicamente se é ele; ao que Cristo lhe responde “Tu o disseste”. É o
modo de o Mestre responder a perguntas insidiosas. Fará o mesmo com
Pilatos.
Cristo
institui então a Eucaristia – nas formas do Pão e do Vinho, do Corpo e
do Sangue – outro mistério e outro milagre que é, para os católicos, a
transubstanciação.
A noite das Oliveiras
Depois
da Ceia, no Horto, no Jardim das Oliveiras, Cristo começa por prevenir
os discípulos de que, também eles, O vão renegar e abandonar. Pedro
responde que, mesmo que tenha de morrer, nunca o negará, mas Cristo
assegura-lhe que sim, que Pedro O vai negar três vezes antes que o galo
cante. Depois aparta-se, pedindo ao Pai que afaste Dele o cálice. A sós,
no Jardim de Getsémani, sofre e chora. Diz-nos S. João que Cristo,
quando chorara a morte de Lázaro, chorara um choro silencioso (edakrusen
é o verbo grego usado); mas em Getsémani chora mesmo e, segundo Lucas,
num estado de profunda angústia, sua sangue, implorando ao Pai que o
livre do que o espera – das humilhações, do martírio, da morte – antes
de se submeter à Sua vontade.
Depois
vem Judas, com a multidão dos captores, os agentes da ordem e a turba,
mandados por Caifás e pelos anciãos com espadas e varapaus; é o tempo de
Judas Iscariotes consumar a traição, beijando o Mestre. Um dos que está
com Cristo puxa da espada e corta a orelha a um lacaio de Caifás; mas
Cristo repreende-o, dizendo-lhe que se quisesse recorrer a esses meios,
contaria com legiões de Anjos: as regras do jogo e o guião do Reino de
Deus eram outros.
Então,
como Ele previra, todos o abandonam. Só Pedro O vai seguindo, como
anónimo; mas quando confrontado, acaba mesmo por O negar três vezes,
antes do cantar do galo.
Segue-se
o interrogatório de Caifás, que acusa Cristo de blasfemo e o remete
para Pilatos, o representante da autoridade de ocupação de Roma, o único
que O pode flagelar, condenar e executar. Mas Pilatos, diz-lhe o Réu,
só tem o poder que lhe é dado, e é menos condenável do que os que a ele O
entregam. Quando Jesus lhe responde, “Tu o disseste: sou rei! Vim ao
mundo para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que vive da Verdade
escuta a minha voz.”, Pilatos faz-lhe a célebre pergunta, tão definidora
dos tempos que vivemos: “O que é a verdade?”
A
seguir a multidão, perante a possibilidade que lhe é dada por Pilatos
de libertar Cristo, o Rei dos Judeus, ou Barrabás, um criminoso de
delito comum, escolhe Barrabás, instigada pelos agentes de Caifás.
Pilatos lava daí as suas mãos e entrega Cristo aos captores. Era lá com
eles e lá entre eles.
Pouco
depois da aclamação na entrada triunfal em Jerusalém vem o calvário do
linchamento popular: a tortura, a humilhação da coroa de espinhos e do
manto falso. Cospem-lhe, esbofeteiam-no, forçam-no a carregar a cruz
para o Gólgota. No caminho, encontra o Cireneu, que O ajuda a levar a
cruz.
Entre ladrões
Crucificam-no
no meio de dois ladrões. É nestas três cruzes que Santo Agostinho vai
ver concentrado o drama humano, pessoal e colectivo, perante a Verdade e
a Salvação: “Estão três homens pregados na cruz: um que dá a salvação,
um que a recebe, e um que a perde. No centro o Justo, a um lado o
pecador arrependido e a outro lado o que se fechou no seu pecado”.
Entretanto,
outros, continuam a desafiar e a provocar o Crucificado – se é Deus,
porque não desce da cruz? É A última tentação de Cristo, a tentação da
facilidade, de fugir à missão maior, que Martin Scorsese tentará
imaginar em filme.
Cristo
expira finalmente. Rasga-se o véu do templo e a terra treme. E é um
Centurião, um estranho ao “povo de Deus”, quem confirma a identidade do
Salvador: “Em verdade, Aquele era o Filho de Deus”.
No
fim, aparecem as santas mulheres e o também misterioso José de
Arimateia, um homem rico, um discípulo clandestino de Jesus, que vai
pedir a Pilatos para levar o corpo de Cristo. E são outra vez os
sacerdotes e os fariseus que pedem a Pilatos que ponha guardas no
sepulcro, com o governador a dizer-lhes que tratem eles disso. E eles,
além da grande pedra que tapa o túmulo, põem-lhe selos e guardas.
Dante
vai definir a traição como algo que pressupõe laços pré-existentes –
laços de sangue, como Caim, que mata o irmão, Abel, por inveja. Judas
também tem a confiança de Cristo; é um intelectual (tesoureiro, homem de
contas) entre homens simples, pescadores. Dante condena Judas ao Nono e
último Círculo do Inferno, uma região a que chama Judeca, de Judas, mas
talvez também de Judeu, supondo que o poeta possa ter sido movido por
algum preconceito anti-semita. Os traidores abundam em Shakespeare –
Macbeth, Iago, o próprio Ricardo III. Judas é o traidor por excelência,
mas, na noite da Paixão, todos vão, por medo, trair e abandonar o
Mestre, quando vem a multidão.
É
o reconhecimento da fraqueza da natureza humana, da fraqueza da nossa
condição – mesmo dos que virão a ser santos – e a certeza de que pode
ser redimida. Pedro, a pedra sobre qual Cristo quis fundar a Sua Igreja,
depois de, assustado, renegar o Filho de Deus, vai morrer por Ele e com
Ele em Roma.
Os
interlocutores de Judas são também intemporais e espelham realidades
que, muitas vezes, nos tocam de perto, pessoal e colectivamente: são os
poderosos do tempo e do templo; uma elite de serviço colaboracionista
com os romanos, como hoje as classes políticas dos países de periferia
em relação aos centros dominantes. O traidor Judas negoceia com estes
senhores do Templo a venda de Cristo, que está fora do controlo deles e
os perturba. As oligarquias, sejam do sangue, do dinheiro, do partido,
da cultura – e não só as oligarquias – continuam a ser assim: não gostam
de recém-chegados que não conhecem nem controlam. E sacrificam-nos ao
ocupante.
O
ocupante é o romano, representado por Pilatos, um burocrata que
sentimos como especialmente próximo de nós, no lavar de mãos e na
manipulação de palavras e conceitos. Pilatos e o julgamento de Jesus de
Nazaré é o livro que, no livro de Bulgákov O Mestre e Margarida, o
Mestre tinha escrito e acabado por ter de queimar. Pilatos, o burocrata,
não se quer comprometer, por isso dá as respostas que os políticos do
sistema (seja ele qual for) quase sempre dão – lavam as mãos, falam em
problemas estruturais e devolvem a decisão ao povo – ou “aos tribunais”,
ou “à comunidade científica”, ou “à opinião pública”, não querendo
ficar com o peso do sangue do justo – ou sequer do “injusto”.
E
aqui entra o povo, a multidão, que tinha aclamado o Nazareno, mas que
já trabalhada pelos sacerdotes, os anciãos e a sua gente, escolhe
Barrabás. Uma realidade de manipuladores e manipulados que também
conhecemos bem. É a gente agitada e empurrada pela comunidade mediática
ou por quem quer que a agite e manipule, dizendo-lhe o que é correcto
escolher, quem são os bons e quem são os maus, quais os culpados à
partida e quais os inocentes de sempre, uma multidão que quando decide a
favor dos instigadores é “sábia” e que quando os rejeita “está a ser
manobrada”.
É
por esta nossa humanidade de traidores, de cobardes, de ladrões, de
renegadores, de manipuladores, de multidões acéfalas e de elites
perversas, que se entrega um homem bom, uma espécie de convidado
surpresa nesta tragicomédia feita do “misto de trevas e brilho” que
somos. É por ela que ressuscita. Nestes tempos de Páscoa, meditando a
Sua paixão, olhando cada um dos que nela intervêm e confrontados com a
nossa verdade, temos, como todos os anos e como todos os dias, a mesma
escolha que os ladrões crucificados ao lado do Justo: abrirmo-nos à
Salvação ou fecharmo-nos no pecado.
Santa Páscoa.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
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