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Ao passo que novas pesquisas questionam a eficácia da abordagem “afirmativa”, países europeus que foram pioneiros na implementação dessas medidas como políticas direcionadas à transição de gênero agora adotam uma postura mais cautelosa. Gabriel de Arruda Castro para a Gazeta do Povo:
A
lógica dos defensores da transição de gênero é a de que a única forma
de evitar um alto risco de suicídio entre jovens com disforia de gênero
(sensação de inadequação com o sexo biológico) é injetar hormônios que
bloqueiam a puberdade e, mais adiante, realizar cirurgias de
redesignação sexual – medidas que são denominadas “afirmação de gênero”.
Até pouco tempo atrás, contestar tal dogma era tido como o equivalente a
colocar a vida dessas pessoas em risco.
Mas
as rachaduras nesses pilares são cada vez mais evidentes. Ao passo que
novas pesquisas questionam a eficácia da abordagem “afirmativa”, países
europeus que foram pioneiros na implementação dessas medidas como
políticas direcionadas à transição de gênero agora adotam uma postura
mais cautelosa.
Premissas questionadas
Os
estudos científicos sobre a melhor forma de lidar com a disforia de
gênero estão longe de construir um consenso, o que leva décadas para
acontecer. Como a literatura sobre o tema é relativamente recente, o
debate está em aberto.
A
Gazeta do Povo analisou artigos publicados em periódicos científicos
que versam sobre transição de gênero de 2021 para cá e encontrou
questionamentos aos dois estudos nos quais se baseia a defesa das
terapias “afirmativas” – ambos foram feitos na Holanda e publicados em
2011 e 2014 por Annelou de Vries.
Segundo
ela, os bloqueadores de puberdade, acompanhados de cirurgia de
redesignação sexual, são eficazes em melhorar a saúde mental dos jovens
com disforia de gênero, o que implicaria uma redução no número de
suicídios. É o fundamento da tese de que, se um jovem tem uma
dissintonia entre o sexo biológico e a sua identidade subjetiva, o
melhor a se fazer é a transição de gênero em vez de tratar a condição
psicológica ou psiquiátrica. Mas os estudos (o segundo deles, com 55
pessoas) são problemáticos – a começar pelo fato de que a única
tentativa de reproduzir os experimentos, feita por pesquisadores
britânicos, não obteve sucesso.
Um artigo
publicado no Journal of Sex & Marital Therapy em janeiro deste ano
aponta falhas graves na metodologia dos levantamentos de De Vries sobre
transição de gênero. “Estes estudos holandeses sofrem de limitações
profundas tamanhas que não deveriam jamais ter sido usados como
justificativa para a promoção dessas intervenções na prática médica
geral”, diz o artigo.
De
acordo com os três cientistas que assinam o artigo, a pesquisadora
holandesa e seus colegas selecionaram apenas os casos bem-sucedidos para
incluir no estudo. Além disso, o estudo teria sido feito de tal forma
que é impossível saber se as melhorias na saúde mental se devem à
redesignação sexual ou à psicoterapia.
Poucos meses antes deste novo artigo, em uma carta publicada
no Journal of the American College of Clinical Pharmacy, um grupo de
cinco pesquisadores chamou atenção para a falta de provas a favor da
eficácia dos bloqueadores de puberdade em adolescentes. Eles alertam
para a possibilidade de danos ao desenvolvimento neurológico e enfatizam
que essa abordagem acaba acorrentando a criança ou o adolescente a uma
identidade de gênero que poderia ser temporária.
“Mais
de 95% dos jovens tratados com análogos de GnRH [hormônio que libera a
gonadotrofina e tem a capacidade de parar a puberdade] passam a receber
hormônios do sexo oposto. Por outro lado, de 61% a 98% daqueles tratados
apenas com apoio psicológico reconciliam sua identidade de gênero com
seu sexo biológico durante a puberdade”, afirmam os pesquisadores.
A
carta continua: “Vários países europeus que foram pioneiros na
transição médica para jovens estão agora adotando uma abordagem mais
cautelosa quanto ao uso de análogos de GnRH e hormônios do sexo oposto,
depois que suas próprias análises de evidências não mostraram benefícios
para a saúde mental e demonstraram uma profunda falta de conhecimento
sobre os danos.”
Em
um artigo publicado em 2021, a psiquiatra Alison Clayton, da
Universidade de Melbourne, vai na mesma direção. Ela argumenta que
apoiadores das terapias “afirmativas” supervalorizam as evidências a
favor do método defendido por eles. Ela afirma que existe uma tendência
preocupante na literatura sobre disforia de gênero: a supervalorização
das evidências a favor das terapias de redesignação sexual. Além disso,
ela aponta, as descobertas contrárias à prática acabam recebendo muito
menos destaque em relação às que vão na outra direção.
Autismo
Outro
campo em que a literatura científica tem avançado é a correlação entre
disforia de gênero e autismo. Os dados já são conhecidos: em 2010, um artigo mostrou que 7,8% de crianças e adolescentes com disforia de gênero têm autismo, ante 0,6% do restante da população. Outro estudo de 2016 mostrou que 23% dos pacientes com disforia de gênero tinham Síndrome de Asperger.
Avançando sobre estudos que apontavam uma correlação entre autismo e disforia de gênero, um novo artigo
publicado na revista científica Autism identificou que o diagnóstico de
disforia de gênero era mais comum entre autistas com menor grau de
apoio familiar. Ou seja: fatores sociais podem explicar ao menos parte
dos casos dessa disforia.
Países repensam posição sobre transição de gênero
Nos
últimos meses, alguns países europeus têm recuado em suas políticas de
apoio à combinação de bloqueadores de puberdade e cirurgias de
redesignação sexual.
A
Suécia, o primeiro país a legalizar a redesignação sexual, decidiu no
ano passado aumentar o rigor com intervenções desse tipo em menores de
idade. As terapias hormonais foram interrompidas, exceto em casos
extremos. O Comitê Sueco de Avaliação Médica e Social (SBU), que
funciona como uma espécie de agência regulatória, não encontrou
evidências de que o tratamento hormonal trouxesse benefícios à saúde
mental.
Em
maio de 2021, o Hospital da Universidade Karolinska, em Estocolmo, já
havia proibido o uso de bloqueadores de puberdade. Também há um ano, a
Academia Nacional de Medicina da França aprovou uma resolução (por 59
votos a 20) que demonstra preocupação com o aumento repentino na procura
por intervenções desse tipo, especialmente entre adolescentes.
O
documento ainda afirma que “não há teste para distinguir entre disforia
de gênero persistente e disforia adolescente transitória”, e que “o
risco de diagnóstico excessivo é real, conforme evidenciado pelo número
crescente de jovens adultos que desejam desfazer a transição.”
Uma
postura semelhante foi adotada pelo Reino Unido. No ano passado, o
governo britânico decidiu fechar as portas de sua única clínica de
gênero, a Tavistock. A clínica havia aberto as portas em 1983. Nos
últimos anos, o número de atendimentos havia saltado rapidamente: de 138
em 2010 para 2.383 entre 2020 e 2021. Em 2020, a clínica ganhou os
holofotes quando Keira Bell, uma mulher que foi submetida à redesignação sexual quando era menor de idade, processou a Tavistock na Justiça.
A
pediatra Hilary Cass, que já presidiu o prestigioso Royal College of
Paediatrics and Child Health, investigou os problemas da clínica e
elaborou um relatório sugerindo que o local fosse fechado — o que foi
acolhido pelo National Health System (NHS), o sistema de saúde do Reino
Unido. A ideia é criar uma rede de centros de apoio locais que ofereça
um tratamento “fundamentalmente diferente”.
Em seu relatório,
Hilary Cass menciona problemas como a “falta de uma justificação clara
por escrito para decisões tomadas em casos individuais” e o fato de que
funcionários “se sentiam pressionados a adotar uma abordagem
‘afirmativa’ sem fazer questionamentos’”. Ela também menciona que
“existe uma falta de consenso e de uma discussão aberta sobre a natureza
da disforia de gênero e, portanto, sobre a resposta clínica
apropriada.”
“Esses
países estão fazendo revisão da literatura e vendo que o número de
arrependimentos tem aumentado muito”, diz o médico Raphael Câmara, que
foi secretário de Atenção Primária à Saúde na gestão Bolsonaro. “Nós não
temos como saber a priori quem vai se arrepender ou não. Quanto mais
cedo é dado o diagnóstico, mais casos de arrependimento existem”, ele
acrescenta.
Quando
o Conselho Federal de Medicina (CFM) discutiu o tema, Câmara defendeu
que o tratamento hormonal cruzado (com hormônios do sexo oposto) só
fosse autorizado a partir dos 18 anos de idade, e a cirurgia aos 21. Ele
acabou derrotado. Os limites aprovados pelo CFM são de 16 e 18 anos,
respectivamente.
Quebrando o silêncio
Os
países europeus que têm repensado sua abordagem à disforia de gênero
entre jovens não podem ser definidos como conservadores. O rótulo
tampouco se aplica ao The New York Times, símbolo da mentalidade dita
“progressista” nos Estados Unidos. Ainda assim, no começo do ano o
periódico foi alvo de uma carta pública de ativistas LGBT e de
colaboradores do próprio jornal. O motivo: o jornal estaria dando espaço
a vozes transfóbicas que levantam questionamentos sobre a efetividade
dos bloqueadores de puberdade – ainda que de forma tímida.
Um dos artigos criticados mostrava histórias de estudantes que adotaram uma nova identidade de gênero sem que os pais soubessem. Outra reportagem mostrava, de forma tímida, que as terapias irreversíveis aplicadas a adolescentes podem trazer sequelas. Uma terceira tinha o título inócuo de “Médicos discutem se adolescentes trans precisam de terapia antes dos hormônios.”
Foi
o que bastou para que os ativistas da GLAAD, uma ONG poderosa que
afirma defender os direitos LGBT, exigisse que o jornal parasse de
"publicar reportagens enviesadas anti-trans". Mas, em um comunicado interno, o jornal não deu sinais de que vá mudar sua cobertura do tema.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
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