BLOG ORLANDO TAMBOSI
Preconceitos, pressão social e culpa estão entre as razões de um desdobramento percebido em 13% dos transgêneros, segundo estudo de Harvard. Reportagem de Amanda Péchy e Duda Monteiro de Barros para a revista Veja:
Às
vezes, a sensação de que existe um descompasso entre o sexo biológico e
a identidade de gênero ocorre bem cedo na vida e nunca é trivial. É uma
descoberta delicada, quase sempre acompanhada de angústia, medo e a
face estúpida e inaceitável do preconceito. O fenômeno, que até menos de
uma década atrás era considerado uma doença a ser debelada, vem
gradativamente deixando o escaninho dos assuntos impronunciáveis e
ganhando rosto — 1 milhão de brasileiros e 35 milhões de pessoas mundo
afora hoje se classificam como transgêneros, a imensa maioria
enveredando pela trilha das transformações no próprio corpo. Como o
mundo não para de se abrir à diversidade das manifestações humanas,
porém o que se observa agora é uma mudança de rota por uma parte da
população trans, que busca o caminho de volta, interrompendo ou mesmo
revertendo a transição de gênero — processo já conhecido como
“destransição”.
O
retorno em uma decisão tão complexa — que pode envolver medicamentos
para frear a puberdade, a introdução no organismo de uma batelada de
hormônios do sexo oposto e cirurgias que alteram semblante e corpo — é
um desdobramento percebido em 13% dos transgêneros, de acordo com um
recente levantamento da Escola de Medicina de Harvard. Observados apenas
os que engatam em tratamento hormonal, um de cada três larga o processo
no meio. As razões elencadas revelam que, embora avanços civilizatórios
tenham atenuado a rejeição, ela ainda se faz presente no cotidiano
dessas pessoas — tanto assim que cerca de 80% dos “destransicionados”
relatam não ter aguentado a elevada pressão no entorno. Outros admitem
desconforto não só com a imagem pós-mudanças, mas também com o novo
gênero, desejando retornar ao que eram. Também a culpa é mencionada com
frequência.
CEDO
DEMAIS – Aos 12 anos, a americana Chloe Cole começou sua transição e,
aos 15 (à dir), retirou as mamas. Hoje com 18 (à esq.) e
“destransicionada”, diz ter sido induzida à mudança por uma clínica, que
agora processa.
Como
há até agora pouco conhecimento acumulado no campo das destransições,
faltam estatísticas para melhor mapear o universo, mas sobram
depoimentos da classe médica imersa no dia a dia de ambulatórios e salas
cirúrgicas. “Cabe ao profissional de saúde facilitar a transição quando
o paciente dá sinais de convicção e, ao mesmo tempo, saber freá-la se
capta algo mal resolvido, o que nem sempre acontece”, diz a psiquiatra
Carmita Abdo, do Programa de Estudos em Sexualidade da USP. A VEJA, o
britânico Ritchie Harron, 35 anos, conta que consumiu hormônios e se
submeteu a uma operação de redesignação sexual, com o qual se
identificou por sete anos, não sem altos custos. “A mudança não resolveu
minha ansiedade e depressão e acabou por agravá-las”, reconhece ele,
que optou pela reversão há dois anos e atualmente se apresenta como um
homem gay. “O tratamento psicológico que recebi foi muito ruim, me
induzindo à mesa de operação”, avalia.
Isso
não quer dizer que a trilha da transição não deva ser percorrida, mas
sinaliza que o passo adiante jamais pode ser dado sem o amparo de uma
equipe multidisciplinar no sentido mais amplo, com endocrinologistas,
psiquiatras e psicólogos prontos para emitir uma opinião equilibrada. A
ciência ainda procura decifrar o desencontro entre mente e corpo, mas a
linha mais aceita envolve alterações cerebrais e hormonais na gravidez
que levariam a essa condição, tecnicamente chamada de “disforia de
gênero”. Desse modo, a compreensão sobre o próprio gênero não passa por
uma escolha pura e simples, mas se baseia em uma característica
individual inata — trajeto que costuma envolver sofrimento até tudo se
tornar mais claro. Evidentemente, nem todo mundo que vive uma ebulição
dessa natureza apresenta tal condição — a insatisfação com o gênero pode
ter raízes fincadas em um caldeirão de emoções moldado pelas
circunstâncias, configurando uma fase. “É preciso cautela para
empreender uma mudança tão significativa “, ressalta Carmita Abdo.
Quando
a decisão é tomada precocemente, com o corpo em formação, os riscos de
um equívoco aumentam exponencialmente. Nos Estados Unidos, os holofotes
estão voltados para o caso de Chloe Cole, que, aos 12 anos, infeliz com a
imagem projetada no espelho, concluiu ser trans. Meses mais tarde,
começou a tomar bloqueadores de puberdade e testosterona e, aos 15
anos, tirou as mamas. Não deu um ano, e ela se entendeu novamente como
menina. Hoje, com 18 anos, processa a clínica que a tratou, alegando não
lhe ter apresentado vias menos drásticas nem provido suporte
psiquiátrico. “Falaram assim para meus pais: ‘Vocês preferem uma
filha morta ou um filho vivo?”, lembra Chloe, que reimplantou os
mamilos, o que ainda lhe traz incômodo, e virou uma indesejável bandeira
nas mãos de ultraconservadores que se alimentam de argumentos
reacionários. A inglesa Keira Bell, 23, tornou-se outro desses
símbolos, e sua história, carregada de aflição, se desdobrou em uma
mudança concreta. Movido por seu processo, o Supremo Tribunal inglês
definiu que menores de 16 anos, idade dela à época, não têm a maturidade
requerida para o uso de bloqueadores hormonais. “Me permitiram seguir
em frente com as ideias que eu tinha na adolescência, quase uma
fantasia”, diz Keira, que se destransicionou.
O GRITO - Manifestação a favor dos direitos trans: uma nuvem de rejeição e desconhecimento ainda paira sobre o grupo
No
Brasil, a lei permite que a terapia hormonal seja aplicada a partir dos
16 anos, enquanto as cirurgias — como a extração dos órgãos
reprodutores e a construção de genitais — podem ser realizadas apenas
após os 18 anos. No rol das exigências, consta o monitoramento ao longo
do ano que antecede o princípio do processo. Nos Estados Unidos, a lei é
menos rígida, ao passo que França, Finlândia e Suécia vêm postergando a
permissão de tratamentos hormonais, justamente para que a virada de
página se dê em solo mais firme. Mesmo com adultos, porém, a dureza pode
se impor. Aos 17 anos, o chileno Nicolás Raveau já se via como mulher,
mas aos 37 encarou hormônios e suavizou com bisturi os traços masculinos
Eis que ele voltou a se identificar como homem e, há cinco anos,
suspendeu os hormônios. As consequências logo vieram. “Perdi muitos
amigos trans”, diz Nicolás, que nunca largou o trabalho social com
pessoas trans e criou um grupo de apoio para pessoas que
destransicionaram.
IDAS
E VINDAS – O chileno Nicolás Raveau, 46, deu o passo para a transição
aos 37, mas isso só fez acentuar suas angústias e ele abandonou o
processo há dois anos, se entendendo no mundo como um homem. “Vivo hoje
sem a dura autocrítica de antes”, diz
Como
tudo é relativamente novo nesse campo, a medicina ainda está aprendendo
como reverter os efeitos da transição. Na área cirúrgica, a ciência
atua em caráter experimental e, em sistemas de saúde como o SUS, a volta
atrás não está contemplada. A maior parte dos relatos dados a VEJA cita
os incômodos da destransição, mas trata em especial das feridas
psicológicas. “Me senti fragilizada demais para seguir com a transição.
Havia sido expulsa de casa, precisei parar de estudar e dependia de
favor para comer”, lembra a potiguar Aylla Devereaux, 21, que havia
iniciado o processo aos 12, deu uma pausa seis anos mais tarde e agora,
convicta, retomou a transição. Arrepender-se de decisão que mexe tão
fundo na definição de quem somos é algo a ser incondicionalmente
respeitado, mas em nada ofusca a caminhada de tantos outros, que
ganharam vida mais feliz depois de abraçarem o gênero com o qual
verdadeiramente se identificam.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2023, edição nº 2834
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
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