Que saudades de quando as pessoas fingiam que eram melhores do que são. Que saudades da decência fingida, e da vaga e pouco convincente aparência de bons sentimentos. Via Crusoé, a crônica de Alexandre Soares Silva:
Dos
mortos não se fala mal — “De mortuis nil nisi bonum”, diziam os antigos
romanos. Mas, como estão todos mortos, pode ser que nesse ponto eles
não fossem completamente imparciais.
Apesar
desse ditado, o consenso ao longo da história sempre foi o de que você
pode, sim, falar mal dos mortos. É só esperar um pouco.
Quanto,
porém? Depois que uma pessoa morre, quanto tempo temos que esperar pra
poder falar mal dela? Eu não sei, mas diria que pelo menos até que os
parentes tenham saído do velório, dormido uns dois dias e voltado a
trabalhar.
Sempre
que alguém famoso morre e quero falar alguma coisa sobre essa pessoa,
me imagino nesta situação: estou no velório, levantei da cadeira, pedi
um minuto de atenção e agora os parentes e os amigos do morto estão
olhando para mim com os seus olhos avermelhados. O que digo nessa
situação? Isso é o que tento imaginar antes de escrever alguma coisa
sobre alguém que morreu.
E sempre só vejo duas possibilidades: se admirava o morto, elogios, e se não gostava, banalidades.
É
claro que à medida em que os dias passam as banalidades podem ir sendo
substituídas por “avaliações equilibradas e não passionais”, e logo
depois, abruptamente, quase de uma hora pra outra, por xingamentos. Mas
nos primeiros dias? Nas primeiras horas? Onde estamos, no Twitter?
As
pessoas passam a vida inteira dizendo banalidades, e no único momento
em que é preciso dizer banalidades, que fazem? Se recusam. Morre alguém
famoso de quem não gostam? Se mostram incapazes de dizer coisas normais
como “descansou”, “foi melhor assim” etc. Não, pelo contrário. Escrevem
longas e desavergonhadas celebrações da morte dos seus inimigos tribais.
Isto,
por exemplo, é o que Uju Anya, professora de linguística da
Universidade Carnegie Mellon, “antirracista e feminista”, escreveu no
Twitter:
“Ouvi falar que a monarca de um Império ladrão, estuprador e genocida está finalmente morrendo. Que a sua dor seja excruciante.”
Alguém
chamado “Hasan Abi” (não vou fingir que conheço “astros do Twitch”), ao
saber da morte da Rainha, celebrou, gritou de alegria, disse “Fuck you
Queen”, e começou a dançar num desses quartos tristes de luz fria de
astros do Twitch.
É
uma longa lista a das pessoas que celebraram em público — de irlandeses
e socialistas ingleses a “ativistas antirracismo”. Alguns brasileiros
também. Um candidato ao governo de São Paulo, Gabriel Colombo (PCB),
escreveu isto no Twitter:
“Hoje
é dia de abrir uma cerveja para comemorar a morte da rainha Elizabeth.
Ainda que tenha demorado e não tenha sido pelas mãos da classe
trabalhadora. A mídia liberal vai fazer o de sempre: homenagear a
monarca. Na história, prefiro ver os reis e rainhas sob a guilhotina.”
No
perfil de Instagram da professora de inglês Rachel Hartwright, que é
inglesa e mora há 12 anos no Brasil, e foi ingênua a ponto de lamentar a
morte da rainha num post, alguém escreveu:
“Sua rainha era uma criminosa genocida!!! Volte para o seu país escravocrata e racista, vc não é bem-vinda aqui.”
Me
corrijam se estiver errado, mas até muito pouco tempo atrás todo mundo
estava ocupado fazendo aquilo que se convencionou chamar de Sinalização
de Virtude. Lembra? Não faz mais do que dois invernos.
Isso
me irritava profundamente. Não era irritante? Não nos irritávamos? Todo
mundo se esforçando pra parecer bonzinho, falando das esmolas que
davam, da pena que tinham de mendigos, do quanto choravam lendo notícias
tristes e, de modo geral, mostrando seus belos sentimentos como uma
mulher bonita usando uma calça justa?
Sim,
eram sentimentos falsos. Mas que saudades dos sentimentos falsos. Que
saudades de quando as pessoas fingiam que eram melhores do que são. Que
saudades da decência fingida, e da vaga e pouco convincente aparência de
bons sentimentos.
Me
deem uma vaga e pouco convincente aparência de bons sentimentos! Finjam
que estão chorando pela morte de vítimas de maremoto, pelas pessoas com
escorbuto, pelas centenas de pessoas esmagadas por pianos todos os
dias!
Me
deem bijuterias de piedade! Sinalizem um pouco de virtude, de vez em
quando, só pra amenizar um pouco a monotonia da sinalização de
brutalidade e vulgaridade.
Mas
enfim, a propósito da monarquia britânica, vou terminar fazendo uma
(muito vaga) sinalização de cultura: o melhor livro sobre o príncipe e
agora rei Charles III não é uma biografia, mas um romance de Mark
Helprin, “Freddy and Fredericka”.
No
livro, Charles (com o nome de Freddy) passa por algumas experiências
humilhantes nos Estados Unidos e, de príncipe imaturo e um tanto incapaz
de aparecer simpaticamente na frente das câmeras, se transforma em
alguém pronto para ser um rei.
Sim,
o verdadeiro Charles infelizmente não fez isso. Gosto dele pela defesa
que faz da arquitetura tradicional, e porque é um bom pintor, e porque
se veste bem; mas é evidente que não vai ser um bom garoto-propaganda da
monarquia. Teria sido melhor se tivesse seguido o caminho do seu alter
ego, nesse livro que foi eleito pela National Review como um dos dez
grandes romances conservadores escritos depois de 1950.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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