Mobilizar reservistas, fazer referendo fake para anexar territórios ucranianos e insinuar uso de armas nucleares mostram por que até aliados se afastam. Vilma Gryzinski:
“Não é um blefe”. Vladimir Putin fez aquela cara fria de chefão mafioso ao dizer que a Rússia tem muitos “instrumentos” para responder a uma ameaça nuclear.
Não
só é um blefe, como quem faz ameaças nucleares constantes são os
russos. É inevitável deduzir que Putin estava falando grosso para
acalmar seus partidários mais à direita, os ultranacionalistas que
reclamam que ele está sendo brando demais contra a Ucrânia.
Outro
gesto em direção à linha dura, este com efeito bomba entre a opinião
pública, foi a mobilização de 300 mil reservistas para entrar na guerra,
o que mais que dobraria a força inicial que desfechou a invasão, em
fevereiro.
A mobilização mostra que as baixas sofridas pela força invasora, que poderiam passar de 70 mil, são realmente brutais.
Um
grande número de tropas reforçaria as posições russas, que em vários
pontos cedem a contra-ataques ucranianos, na maior derrota dos invasores
dos sete meses de guerra. E garantiria a ocupação dos territórios onde
serão feitos “referendos” – totalmente ilegítimos – para montar um
teatro surreal que justifique a pura e simples anexação dessas regiões à
Rússia.
“Hoje
um referendo, amanhã o reconhecimento de que fazem parte da Federação
Russa, depois de amanhã ataques contra território russo se tornam uma
guerra total de Ucrânia e Otan contra a Rússia, liberando nossas mãos em
todos os aspectos”, resumiu a belicosa Margarita Simonian, diretora de
redação de dois braços da propaganda do Kremlin, a televisão RT e o site
Sputnik.
Ameaças
desse teor, invocando o uso de armas nucleares, só fazem aliados
racionais como China, Índia e Turquia se afastarem do poço sem fundo de
problemas, envolvendo nada menos que a sobrevivência da humanidade, que a
Rússia se tornou.
Antes
de discursar na Assembleia Geral da ONU, propondo uma negociação de paz
que ninguém vai fazer, o presidente turco, Recep Tayyp Erdogan, deu uma
reveladora entrevista à PBS, o canal pública de televisão dos Estados
Unidos.
“A
devolução dos territórios invadidos será muito importante”, explicitou
em palavras equivalentes a uma cimitarra turca cravada, cuidadosamente,
mas sem vacilar, nas costas de Putin.
Erdogan
é um político matreiro, impiedoso quando acha que precisa ser assim,
ambíguo quando quer ver para que lado as coisas vão.
E
as coisas não estão indo bem para Putin. Ou, nas palavras do líder
turco, “estão indo numa direção problemática”, um eufemismo para as
perdas russas na região de Luhansk, onde seu controle parecia
inexpugnável.
Até
na Crimeia o aperto está aumentando: submarinos russos estão sendo
retirados da base naval de Sebastopol. A informação vem do Ministério da
Defesa da Grã-Bretanha e demonstra uma vulnerabilidade quase
inacreditável: a frota russa no Mar Negro, único abrigo do congelamento
das águas no inverno, está com medo de mais ataques com drones.
Erdogan
disse na entrevista que conversou muito com “meu amigo Putin” na
conferência de cúpula do Azerbaijão e ele “mostrou que está disposto a
acabar com isso o mais rapidamente possível”.
Putin,
claro, não está disposto a nada disso, mas Erdogan está criando uma
futura porta de saída. Com condições ruins para Putin.
Deveria
ser permitido à Rússia manter alguma parte do território ucraniano que
conquistou a partir da invasão da Ucrânia em fevereiro, perguntou a
entrevistadora.
“Não, indubitavelmente não”, cravou Erdogan.“As terras que foram invadidas serão devolvidas à Ucrânia”.
A
reunião de Samarcanda, a histórica cidade na Rota da Seda, foi um
desastre diplomático para Putin. Não ouviu uma palavra de apoio de Xi
Jinping, que manteve a inabalável política chinesa de não
comprometimento. Putin, ao contrário, teve que admitir as “questões e
preocupações” chinesas em relação à guerra na Ucrânia e prometer que as
levaria em conta.
Do primeiro-ministro indiano Narendra Modi, teve que ouvir que “não estamos mais no tempo de fazer guerra”.
Só aí já foram os líderes de 2,8 bilhões de pessoas, quase um terço da população mundial.
Para
completar, o presidente do Quirguistão, Sadir Japarov, deixou-o
plantado por 45 segundos para começar uma reunião conjunta. A tática já
havia sido usada por Erdogan, em retribuição nada disfarçada ao mesmo
tratamento que Putin lhe havia reservado.
O
homem que já deixou a falecida rainha Elizabeth II e até o papa
Francisco esperando, sofreu um constrangimento público infligido pelo
Quirguistão, uma das cinco ex-repúblicas soviéticas na Ásia Central.
Nenhuma delas votou a favor da Rússia na resolução da ONU em março
condenando a invasão da Ucrânia. Não ajudou muito que, no surto
ultranacionalista provocado pela guerra, personalidades russas tenham
começado a pedir a restauração da “Rússia histórica”. Todo mundo sabe o
que isso significa.
A
mobilização de 300 mil reservistas “com experiência de combate” mostra
que o maior país do mundo tem falta de mão de obra militar.
O
grupo Wagner, uma força paramilitar criada por um ex-dono de
restaurante que atendia Putin e virou oligarca das guerras paralelas,
está varrendo as prisões e campos do país, em busca de voluntários que
aceitem servir na frente de combate durante seis meses, em troca de
anistia.
Uma
ONG que trata de encarcerados, Rússia Atrás das Grades, disse que está
recebendo telefonemas desesperados de presos e familiares, o que mostra
que os russos sabem muito bem que a coisa está feia na Ucrânia. E deu um
exemplo: num grupo de 66 prisioneiros enviados para a guerra, 60 foram
mortos imediatamente.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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