Herbert Marcuse |
Grande parte do que hoje se chama de “direitos sociais”, “direitos das minorias” ou “direitos sexuais e reprodutivos”, numa tentativa de se imantar na aura das campanhas pelos direitos civis, não passa de um anseio de retorno ao princípio do prazer. Flavio Gordon via Gazeta do Povo:
“Um
mundo que confia seu futuro ao discernimento dos jovens é um mundo
velho e cansado, que já não tem futuro algum.” (Olavo de Carvalho, O
Imbecil Juvenil)
Vi
recentemente o documentário Desastre Total: Woodstock 99, disponível na
Netflix. Um filme interessante, porém, erigido sobre uma premissa
fundamentalmente errada. Em 1999, a tentativa de reedição do icônico
evento dos anos 1960, que completaria 30 anos, resultou num caos de
vandalismo e destruição. Após três dias sofrendo com problemas de
organização e logística (tal como falta d’água e vazamento dos banheiros
químicos, resultando num imenso lamaçal de fezes), e estimulada por
bandas adeptas de uma retórica agressiva e niilista de revolta, uma
parte numerosa do público – formada majoritariamente por jovens
hedonistas e educados para a “crítica radical de tudo o que está aí” –
resolveu dar início ao seu próprio festival, dessa vez de destruição,
violência (inclusive sexual) e incêndio, este facilitado pelas velas
distribuídas pela produção com o propósito de incentivar uma
demonstração coletiva de “paz e amor”. Uma das últimas atrações do
evento foi a banda Red Hot Chili Peppers, cuja brilhante ideia de
executar a canção Fire (“poor choice of words”) acabou fornecendo a
trilha sonora para o fogaréu assustador que lambeu o local, dando muito
trabalho às equipes de bombeiros. O saldo final foram três pessoas
mortas, milhares de feridos e um prejuízo milionário.
A
premissa errada à qual me referi – adotada tanto pelos personagens
entrevistados quanto pelos produtores do documentário – é a de que 1999
“traiu” 1969, ou seja, de que o resultado catastrófico dos anos 1990 foi
o oposto do espírito de “música, paz e amor” dos 1960. Ocorre que
“música, paz e amor” nunca foi mais que um slogan, e não se pode trair
um reles slogan. Enfeitiçados, contudo, pelo slogan – e consumidores
passivos da ideia nele propagandeada –, alguns personagens do
documentário culpam os produtores Michael Lang (idealizador e realizador
do festival original) e John Scher (CEO da Metropolitan Entertainment e
figurão da indústria da música) por terem sido mercenários e contrários
ao idealismo de outrora. Por sua vez, Lang e Scher – dois típicos baby
boomers, nascidos e criados nos prósperos anos 1950 – responsabilizam o
público por sua alienação, agressividade e carência do mesmo idealismo
de outrora.
E
qual era o idealismo de outrora? A ideologia do poder jovem, que tomava
conta do planeta, e que teve em Woodstock – e também no Maio de 1968
parisiense – um de seus grandes emblemas. Ocorre que, ao contrário da
vulgata romântica que retrata os jovens como criaturas independentes e
ansiosas por autonomia, a verdade é que eles costumam ser gregários e
ansiosos pela aceitação alheia. Por esse motivo também, mostram-se mais
suscetíveis aos apelos de ideologias e projetos para mudar o mundo. Como
sói acontecer em todo movimento de caráter revolucionário, os jovens –
nos quais um senso de inadiabilidade e um senso de tédio estão
naturalmente à flor da pele – são sempre mais propensos à ação, à
execução prática do conhecimento adquirido através de guias espirituais
(ou culturais). Não por acaso, quase toda revolução tem nos jovens sua
principal força motriz, ainda que, normalmente, sejam homens mais velhos
(ainda que eternamente infantilizados, como o próprio Michael Lang) que
os incitem e comandem. Dmitri Pisarev, teórico revolucionário do século
19 e um dos guias espirituais de Lênin, já constatara que “os maiores
fanáticos são as crianças e os jovens”. Lição que, na China da Revolução
Cultural, Mao Tse-tung levou ao limite.
Um
bom exemplo desta dinâmica é também o movimento de contracultura nos
EUA, com sua revolução sexual, o movimento hippie, o experimentalismo
com drogas lisérgicas, religiões orientais e vida comunitária. Embora
ele seja usualmente retratado como uma iniciativa espontânea de jovens
rebeldes em busca de autonomia, o movimento seria inconcebível sem a
influência de livros como Eros e a Civilização, de Herbert Marcuse, que
obteve êxito em transformar o pensamento de um autor conservador como
Freud em uma ferramenta revolucionária para a liberalização dos
costumes. Marcuse é, sem sombra de dúvida, o grande guia cultural de
Woodstock 1969, e seu objetivo era, no fim das contas, o controle
político de tipo neomarxista, jamais a autonomia individual. Arrisco-me a
dizer que sem a sua obra não teria havido contracultura ou, ao menos, o
movimento teria sido algo inteiramente diverso.
O
impacto do freudomarxismo marcuseano sobre a esquerda mundial foi
tamanho que, hoje, a agenda desta consiste quase exclusivamente na busca
por satisfação imediata das pulsões e apetites, ou, em outros termos,
naquilo que, em A Corrupção da Inteligência, propus que se chamasse de
luta pelos direitos do baixo-ventre. Marcuse foi o pai de gerações e
gerações de filhos bastardos, pessoas mimadas, imaturas, que parecem de
fato ter regredido a um estágio puramente libidinal do desenvolvimento
ontogenético humano, anterior à emergência do princípio de realidade.
Com
efeito, grande parte do que hoje se chama de “direitos sociais”,
“direitos das minorias” ou “direitos sexuais e reprodutivos”, numa
tentativa de se imantar na aura das campanhas pelos direitos civis, não
passa de um anseio de retorno ao princípio do prazer, um clamor por
eternamente mamar, gozar, receber, fruir. E nada poderia ensinar mais
sobre a natureza dos fins do que a mera observação dos meios pelos quais
a esquerda marcusiana os tem exigido: vômito, cuspe, excreção,
defecação, inserções anais e vaginais... Eis algumas das formas
contemporâneas de protesto, bem condizentes com as demandas, sugerindo
uma regressão às fases iniciais (oral, anal e fálica) do desenvolvimento
infantil. Se a utopia de Marcuse era uma nova civilização erótica, tudo
o que conseguiu promover foi uma nova barbárie escatológica.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário