Putin tem conseguido algum êxito levando alguns a acreditar que foi a Ucrânia que começou a guerra contra a Rússia e não o contrário. É ouvir o discurso do comunista Jerónimo de Sousa no final da Festa do Avante. José Milhazes para o Observador:
Se
antes era a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas “O Sol da
Humanidade”, “O futuro radioso da Humanidade”, o “Paraíso Terrestre”,
etc., hoje Vladimir Putin acha-se no direito de apresentar o seu país
como o baluarte das liberdades e o defensor dos princípios tradicionais.
Na História da Rússia, estas ideias messiânicas nunca deram bons
resultados e os desastres podem repetir-se.
Nos
últimos anos, principalmente depois da invasão da Ucrânia pelas tropas
russas a 24 de Fevereiro, o ditador russo tenta-se apresentar como o
salvador da humanidade, produzindo discursos e decretos cada vez mais
semelhantes a encíclicas papais, mas pouco convincentes. Como será
possível levar ao mundo princípios e conceitos que são espezinhados
diariamente na Rússia?
Por
exemplo, a 5 de Setembro, dia em que um tribunal de Moscovo condenou o
jornalista russo, Ivan Safronov, especialista em questões militares, a
22 anos de prisão por “alta traição” e outra “fábrica da justiça”
proibiu a publicação do jornal da oposição Novaya Gazeta, o ditador
Vladimir Putin decidiu publicar “A concepção da política humanitária da
Federação da Rússia no estrangeiro”.
Sublinho “no estrangeiro”, porque na Rússia corre tudo às mil maravilhas.
Um
dos objectivos deste “sábio documento” visa “a formação da ideia da
Rússia como um estado que preserva cuidadosamente a sua rica história e
herança cultural … e em que a vida sociocultural se desenvolve
dinamicamente nas condições de … pluralismo de opiniões, ausência de
restrições de censura”.
Os
exemplos acima citados são apenas dois exemplos de muitas centenas de
acções repressivas na Rússia, que vão desde a existência de centenas de
presos políticos ao assassinato de líderes da oposição, passando pela
imposição de uma impiedosa censura. Como será possível “vender” no
estrangeiro a imagem desejada por Putin?
Também
não consigo compreender que “história e herança cultural” Putin irá
apregoar se elas são quase revistas diariamente ao sabor das descobertas
ideológicas do ditador. No campo da história, provavelmente será a
última versão revista por ele, de onde desaparecerão nações e povos
inteiros, teorias delirantes como aquela de que “a Rússia nunca invadiu
outro país”, etc.
No
campo da herança cultural, as proibições dos concertos e actuações de
músicos e actores que ousam protestar contra a invasão da Ucrânia pelas
tropas russas. O último exemplo é o da proibição do concerto da pianista
mundialmente famosa, Polina Ossetinskaya, em São Petersburgo no dia 3
de Setembro.
Outros
dos grandes princípios que o Kremlin irá vender serão “o apego aos
princípios da igualdade, da justiça, da não ingerência nos assuntos
internos de outros Estados… o reconhecimento da identidade nacional e
cultural”.
Aqui,
verdade seja dita, Putin tem conseguido algum êxito, principalmente na
propagação do princípio da não ingerência nos assuntos internos de
outros Estados, ou melhor, na venda da imagem que o seu país não se
ingere nos assuntos dos outros, levando até alguns a acreditar que foi a
Ucrânia que começou a guerra contra a Rússia, e não o contrário.
O
discurso de Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP no final da
Festa do Avante, é um eco dessa propaganda putinista: “A escalada da
guerra na Ucrânia e a espiral de sanções impostas pelos Estados Unidos
da América, a União Europeia e a NATO, com a cumplicidade do Governo
português, são indissociáveis da desenfreada especulação e aumento dos
preços da energia, dos alimentos e de outros bens de primeira
necessidade, do ataque às condições de vida dos povos, arrastando o
mundo para uma ainda mais grave situação económica e social”.
Claro
que não é Putin e os seus falcões que atiçam a guerra na Ucrânia, que
matam milhares de pessoas e destroem aldeias, vilas e cidades. Não, o
que está implícito nas palavras acima citadas é que os ucranianos
deveriam ter-se rendido e entregue à bondade do Kremlin e que o chamado
Ocidente assistisse “impávido e sereno” à carnificina iniciada pelas
tropas russas no Leste da Ucrânia em 2014-2015. Isso, segundo os
comunistas, é que seria a “paz”.
Outra
das grandes missões é que a Rússia quer ser “o guardião e defensor dos
valores morais e espirituais, da herança da civilização mundial”. Aqui,
alguns dos cantores e artistas que actuaram na Festa do Avante poderão
vir a ter sérios problemas se Putin conseguir o seu objectivo.
Penso
eu que, a julgar pelo que se passa na Rússia, é perigoso deixar nas
mãos de Putin essa tarefa existencial. Prefiro que seja, por exemplo, o
Papa de Roma ou o Dalai-Lama a dirigirem a realização de semelhante
missão. Mas esta é apenas a minha humilde opinião.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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