Mises é, sem dúvida, um segundo Adam Smith, só que de nossos tempos, pois assim como o escocês que teorizou uma filosofia profunda para fundamentar a liberdade individual e de mercado, Mises seguiu o mesmo caminho com sua epistemologia e teses econômicas. Pedro Henrique Alves para a Gazeta do Povo:
Ludwig
von Mises foi, durante muito tempo, amado e odiado com o mesmo furor
por seguidores e críticos, e isso se deu, pois, ao mesmo tempo, sua
filosofia econômica era presunçosa e assertiva, seu método dedutivo era,
ao mesmo tempo, abrangente e definidor. Em suma, quem entendia e
absorvia suas ideias encontrava nelas uma motivação ativista.
Mises,
assim, apesar de seu altivo caráter intelectual e jeito moroso de levar
a vida, arrebatou legiões de seguidores em todo mundo – inclusive no
Brasil. Pode-se dizer, hoje, que seus seguidores são mais barulhentos e
perspicazes no debate público nacional do que seus críticos mais
aguerridos. Hoje, quase todos que se envolvem, em alguma medida, no
debate político-econômico brasileiro já ouviram falar dele ou do
instituto brasileiro que leva seu nome. Como explicar esse sucesso?
Só
para termos uma noção exata, em 2013, nas manifestações que levaram à
queda de Dilma Rousseff e à popularização de termos como conservadorismo
e liberalismo, e, por que não dizer, à eleição de Jair Bolsonaro sob um
discurso liberal-conservador, nas faixas que circundavam os
manifestantes não raro se lia os dizeres “Menos Marx, Mais Mises”. Quem
foi esse homem dos cartazes e das teses que cada dia mais angaria
seguidores e apoiadores?
O começo como socialista
Ludwig
von Mises é o filho mais velho de Arthur Edler von Mises e Adele von
Mises. Sua família, de origem judaica do Império Autro-Húngaro, pôde dar
a ele e a seu irmão (Richard Edler von Mises) uma infância tranquila na
atual Leópolis (Lviv), oeste da Ucrânia. Seus pais tiveram um terceiro
filho, Karl von Mises, que viria morrer, ainda bebê, de escarlatina.
Devido
à profissão de engenheiro do pai – função que seu irmão Richard também
exerceria –, financeiramente, os Mises eram independentes e
reconhecidamente intelectuais. O ambiente de alta cultura do próprio
Império Autro-Húngaro, aliado à confortável situação financeira da
família, possibilitou a Mises o foco quase integral aos estudos. Segundo
teórico político Erik Ritter von Kuehnelt-Leddihn, Mises, aos 12 anos,
já falava fluentemente alemão, francês, polonês e ucraniano.
Não
fica claro o porquê, mas, ainda na juventude, sua família volta para a
capital da Áustria, Viena. O mais provável talvez seja por suas raízes
familiares e oportunidades de trabalho a Arthur von Mises. Fato é que
ali, ante o ambiente intelectual que cercava a sociedade quase como um
todo, Ludwig von Mises se vê impulsionado a se dedicar ainda mais à
erudição, e é com tais pensamentos que, em 1900, ele efetivamente começa
a participar das aulas de Direito na universidade de Viena – cabe
salientar que não havia curso de economia na universidade de Viena,
sendo tal matéria desenvolvida como parte dos estudos de Direito.
Segundo Murray Rothbard,
Mises entra na universidade como um socialista convicto, porém não
demora para que ele se veja influenciado e absorto pelas ideias
econômicas ainda em desenvolvimento de Carl Menger, principalmente por
seu livro 'Princípios de Economia Política'. Menger acabaria sendo a
grande influência de Mises na academia, além de fundador clássico da
Escola Austríaca de economia, que posteriormente se tornaria uma espécie
de casulo intelectual e referência popular ao próprio Mises.
Outra
grande influência de Mises foi o economista Eugen von Böhm-Bawerk. De
acordo com a biógrafa de Mises, Bettina Bien Greaves, em 'Mises: An
Annotated Bibliography', ele frequentou assiduamente, durante dez anos,
de 1904 a 1914, os seminários de Böhm-Bawerk. Sua tese sobre o
socialismo e a sua impossibilidade empírica de funcionar como modelo
socioeconômico acaba apagando de vez quaisquer fagulhas de ideias
socialistas nele.
A Teoria da Moeda e do Crédito
De
1907 a 1908, divide suas horas de estudos com um trabalho na Câmara
Austríaca do Comércio, o que lhe dá experiência prática e política dos
meandros econômicos de Estado. Porém somente em 1912 que ele publica o
primeiro grande trabalho teórico, isto é: doze anos após ingressar na
Universidade de Viena. O trabalho é 'Theorie des Geldes und der
Umlaufsmittel' (A Teoria da Moeda e do Crédito). Após esse texto, Mises
começa a ser visto não somente como um estudante promissor, mas um
estudante prodígio, vindo a se tornar palestrante oficial – embora
não-assalariado – da Universidade de Viena com relação às teses de
Menger, que estavam em pleno desenvolvimento.
De
1918 a 1914, ele atua como capitão de artilharia no Leste da Ucrânia e
na Crimeia, anos em que sua produção acaba por diminuir muito apesar de
seus esforços para continuar sua vida intelectual. Em 1919, Mises
escreve uma das obras mais importantes, tanto quanto negligenciadas,
'Nation, Staat und Wirtschaft: Beiträge zur Politik and Geschichte der
Zeit' (Nação, Estado, e a Economia: Contribuições para a Política e a
História de Nosso Tempo); livro no qual ele expõe seu conceito de nação,
Estado e o que necessariamente é preciso para defini-los, um dos livros
de política mais geniais daqueles dias produzido por um liberal
austríaco.
De
1920 a 1934, ele conduz, às sextas-feiras, um seminário que contava com
a presença desde estudantes que recentemente haviam iniciado seus
cursos a PhDs. Um dos participantes memoráveis desse círculo foi
Friedrich August von Hayek, Nobel de economia de 1974. Dos frutos
imediatos desse seminário, pode-se citar o livro 'Socialismo: Uma
Análise Econômica e Sociológica', no qual Mises clareia as bases
sociológicas da Escola Austríaca em contraposição às ideias socialistas.
Até o advento de 'O Caminho da Servidão', essa obra era considerada o
texto mais elementar de análise do socialismo daquela escola econômica.
Socialismo recebeu uma tradução americana em 1936 e logo ganhou um
admirador importante, o economista Henry Hazlitt, autor do influente
'Economia numa Única Lição', além de Hazlitt, destaca Rothbard,
Socialismo acabou por converter ao liberalismo miseniano um dos
jornalistas marxistas mais duros dos EUA, J.B. Matthews.
Daí
em diante, sua vida se resume em três frentes: 1) a atuação na Câmara
Austríaca do Comércio, 2) as aulas que ministrava, por vezes em forma de
palestra, na Universidade de Viena e em seu seminário supracitado, 3)
além dos mais recorrentes e profundos livros que seriam lançados.
Em
1923, lançou 'Die geldtheoretische Seite des Stabilisierungsproblems'
(Estabilização da Unidade Monetária, do Ponto de Vista da Teoria), e, em
1924, a segunda edição alemã de 'A Teoria da Moeda e do Crédito'. Nesse
livro, Mises fez o que muitos à época consideravam impossível: integrou
os entendimentos de microeconomia e macroeconomia, ou a teoria da moeda
e a utilidade marginal.
Para
termos uma ideia de como isso foi revolucionário, nem seus pares de
Escola Austríaca, como Böhm-Bawerk, aceitaram a tese de Mises, evento
que marca o que, para muitos, seria o ponto de ruptura entre a Escola
Austríaca clássica e a Neo-Escola Austríaca.
Em
1926, foi para os Estados Unidos dar palestras em diversas
universidades, financiado pela Fundação Laura Spelman, um dos grupos da
Fundação Rockfeller. Em 1927, fundou o The Oesterreichisches Institut
für Konjunkturforschung (Instituto Austríaco para a Pesquisa dos Ciclos
Econômicos), nele atuou como vice-presidente e teve, durante alguns
anos, Hayek como gerente e pesquisador; no mesmo ano, ele lança uma das
suas obras mais populares até então: 'Liberalismo'.
Mudança para os EUA
Em
1933, lançou uma das suas obras mais complexas e pouco conhecida
'Grundprobleme der Nationalökonomie' (Problemas Epistemológicos da
Economia). Em 1938, Mises se casa com Margit Sereny, em Genebra, desde
então começa a se preparar para migrar para os Estados Unidos. Nesse
ínterim, de 1939 a 1940, atua como professor convidado de Relações
Internacionais no Institut Universitaire des Hautes Études
Internationales (Instituto Universitário de Altos Estudos
Internacionais) em Genebra. Em 1940, porém, vai em definitivo para os
EUA, onde viverá sua fase mais produtiva e madura.
Sob
o patrocínio do Fundo Willian Volker – um dos pouquíssimos fundos de
investimento privado a financiar intelectuais liberais naqueles dias –,
Mises se estabelece no país e consegue posição acadêmica de referência.
Sua primeira parada universitária foi a Universidade de Nova York. Lá
ele se estabelece e produz de forma abundante, de 1945 até a sua
aposentadoria em 1969.
Mas
devemos destacar as suas produções intelectuais e localizá-las em seu
devido patamar de importância antes de finalizarmos essa exposição da
vida do biografado. Em 1947, o austríaco lançou 'Caos Planejado', quase
ao mesmo tempo que participava da fundação da Mont Pelerin Society, com
seu amigo Heyek, em 10 de abril daquele mesmo ano – até hoje, a
sociedade reúne os mais célebres intelectuais e influenciadores liberais
do mundo.
'Ação Humana'
Mas
é somente em 1949 que ele lança a sua obra máxima, 'Ação Humana', livro
no qual Mises buscou trabalhar, além da economia, uma epistemologia
fundamental para explicar como sua teoria se encaixa na compreensão
multifacetada dos conhecimentos humanos.
Na
realidade, seu método praxiológico de economia gerava internamente um
desafio ao próprio autor: como correlacionar os demais aspectos da vida
humana à sua teoria dedutiva. Baseando-se na indeterminação intrínseca
das escolhas individuais, a teoria econômica austríaca construía sua
estrutura ativa nas livres interações individuais e nas leis do mercado
como base estruturante da vida em sociedade, dispensando assim quaisquer
teses intervencionistas que tivessem por base a programação ou captação
profética das ações dos indivíduos em busca de um fim determinado.
Para
Mises, as leis da sociedade giravam em torno das leis naturais e do
livre mercado, as ações ideológicas e estatais, que tentavam coordenar
as escolhas individuais, não passavam de tiranias e autoritarismos que,
no fim, descambariam em ditaduras puras e simples – tese central do seu
livro, de 1944, 'Governo Onipotente'. É em 'Ação Humana', por fim, que
ele conecta os elos filosóficos e sociológicos necessários para
sustentar sua metodologia praxiológica. Sem dúvida, um dos livros mais
primorosos de economia do pós-primeira guerra.
Após
a década de 1950, principalmente com trabalhos do professor Irving
Kristol e do historiador Richard M. Weaver, o livre-mercado e o
conservadorismo político se aproximaram muito, especialmente nos Estados
Unidos – movimento parelho ocorreria na Grã-Bretanha somente após a
vitória de Margaret Thatcher em 1979. Para termos uma exata dimensão da
aproximação das pautas liberais e conservadoras nos EUA, Mises foi pago
por seus trabalhos de docência, de 1945 a 1962, pela já citada Fundo
William Volker, instituição de matriz liberal-conservadora. Apesar
disso, diz Rothbard, Mises jamais se denominou “conservador”, mas sim
como um liberal de matriz clássica – o que muitos, hoje, denominam de
fato “conservador”, apesar das reais diferenças sistemáticas entre as
visões.
'A Mentalidade Anticapitalista'
Em
1956, Mises lança um dos livros mais populares da Escola Austríaca na
apologia do capitalismo e na contra-argumentação aos progressistas
americanos: 'A Mentalidade Anticapitalista'. Rapidamente a obra
tornou-se um de seus livros mais apreciados, vagando do debate estético à
psicologia, trata-se de um texto de estilo mais livre, ensaístico.
No
ano seguinte, 1957, o acadêmico lança 'Teoria e História', no qual ele
olha com toda desenvoltura para o problema do avanço econômico e
civilizacional da humanidade, mostrando, com rara capacidade, como a
descentralização das ações econômicas e políticas são o motivo primário
do sucesso relativo do Ocidente nos último 500 anos.
Do
dia 2 de junho a 15 de junho de 1959, Mises vai à Argentina pelo Centro
de Difusión de la Economia Libre. Logo em seguida, também convidado,
palestra no Centro de Estudios sobre la Libertad. Das palestras ali
ministradas, sai o seu livro mais popular aqui no Brasil: 'As seis
lições'. As palestras foram gravadas e anotadas, posteriormente
transcritas com ajuda da esposa e de amigos secretários. O livro é o
mais didático, ao mesmo tempo sintético, da leva produtiva de Mises. Com
uma linguagem acessível, argumentos coesos e diretos, pode-se dizer que
o livro se tornou um dos mais sintéticos na defesa da ótica liberal de
sociedade até os dias atuais.
Em
5 de junho de 1963, o acadêmico é laureado com um Diploma Honorário
pela Universidade de Nova York pela defesa da filosofia liberal e da
sociedade livre. E em 1969, ele se torna membro distinto da Associação
Americana de Economia.
Ludwig
von Mises morre em Nova York, em 10 de outubro de 1973, aos 92 anos.
Seu legado ainda é inestimável, pois influenciou muitos conhecidos
intelectuais, como Karl Popper, Friedrich Hayek e Eric Voegelin, mas
também porque ainda hoje vem convertendo silenciosamente muitos
defensores do Estado intervencionista, educando os curiosos estudiosos
caseiros, bem como encantando diversos estudantes universitários por sua
metodologia clara e assertiva com relação à liberdade individual e
descentralização do mercado.
Mises
é, sem dúvida, um segundo Adam Smith, só que de nossos tempos, pois
assim como o escocês que teorizou uma filosofia profunda para
fundamentar a liberdade individual e de mercado, Mises seguiu o mesmo
caminho com sua epistemologia e teses econômicas, reascendendo nas
universidades pelas quais passou a dúvida sincera nos coletivistas, a
ira espalhafatosa nos intervencionistas e a paixão pública dos
economistas que não se prendiam às suas calculadoras, mas olhavam com
profundo interesse para a economia a partir de um panorama mais profundo
e, paradoxalmente, também elevado, dos conhecimentos humanos.
Talvez
tenha sido um dos pouquíssimos economistas que tenham conscientemente
extrapolado suas funções doutrinais pré-estabelecidas. Um dos raros
economistas que soberbamente deixou em seu espólio intelectual uma
trilha de compreensão do homem na sociedade, e não somente da economia
que os homens em sociedade costumam embalar. Foi um economista completo,
pois ousou se questionar e teorizar sobre aquilo que vem antes da
economia, sobre os fundamentos, e por isso – principalmente por isso –
merece ser lido com distinção e intelectual devoção.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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