Reproduzo aqui a entrevista do romancista espanhol Javier Marías a El País, concedida a Maite Rico em 2017. O escritor faleceu hoje aos 70 anos, em Madri:
O apartamento de Javier Marías, no movimentado centro de Madri,
tem algo de santuário. É, mais do que nada, uma biblioteca habitada. E
animada. O escritor vive sozinho, mas com a impressão de estar
acompanhado por uma multidão de seres amigáveis. Talvez sejam os
batalhões de soldadinhos de chumbo espalhados pelos móveis, ou as
dezenas de pequenos homenzinhos sentados sobre os livros. Ou o olhar
irônico de Juan Benet que se destaca entre as dezenas de fotos. Sem
mencionar, é claro, os milhares de autores que povoam as prateleiras de
madeira, e que olham com apreensão para Tintim
e os moradores da Rue del Percebe, famosa história em quadrinhos
espanhola. Tudo está meticulosamente organizado. Um refúgio perfeito
para se proteger de um mundo que Marías (Madri, 1951) vê cada vez mais
hostil e estúpido. Aqui, ao longo de 770 dias (que terminaram sendo 331
pelas interrupções, de acordo com sua agenda), o escritor definiu seu
novo romance Berta Isla, que será lançado esta semana na Espanha pela
editora Alfaguara – ainda sem data para lançamento no Brasil. Um romance
a duas vozes, entre dois países e ao longo de três décadas. Escoltado
por uma reserva de pacotes de cigarros, puxa um de sua cigarreira de
couro e ouve a primeira pergunta soltando uma baforada.
Pergunta.
Há 10 anos, após publicar o terceiro e último volume de O Seu Rosto
Amanhã, você ficou com a sensação de que não tinha mais o que dizer. No
entanto, escreveu dois outros romances depois disso, e agora neste
último, Berta Isla, retoma personagens, cenários e obsessões da
trilogia. O que quis acrescentar?
Resposta.
Meus romances são todos interligados. Queria recuperar alguns dos
personagens e voltar ao mundo da espionagem, muito sui generis... Aqui
não há aventuras, ou missões, já existe muito disso; o que me interessa
essencialmente é o que acontece com uma pessoa, neste caso Berta Isla,
cujo casamento se transforma em uma convivência intermitente, com um
marido que aparece e desaparece, e do qual, em determinado momento, para
de ter notícias. Esse assunto da pessoa que desaparece, e volta ou não,
é tão antigo na literatura universal quanto a Odisseia.
P.
Vejo agora que esta cigarreira que está aqui em cima da mesa está
reproduzida no livro... Marcovitch, a marca que Tomás Nevinson, o marido
de Berta, fuma.
R.
Essa é uma velha cigarreira que tenho de quando existiam estes
cigarros... Sim, incorporo muitas coisas que estão à mão. Em Assim
Começa o Mal é reproduzido um quadro que um dos personagens olha muitas
vezes e que é meu, do pintor Francesco Casanova, irmão do famoso
Casanova. Não quer dizer que me identifico com este ou aquele
personagem; empresto coisas a eles. Eu sempre digo que trabalho com
bússola, não com mapa, e a bússola aponta para o norte: não é que eu não
sei aonde vou, apenas não sei qual será o percurso nem o final. Vou
mudando, vou improvisando, vou me contradizendo... Acho que uma das
coisas que me divertem ao escrever romances, entre outras, é descobrir
as histórias enquanto estou escrevendo. Depois, quando o romance é
publicado e se passaram alguns anos, parece inconcebível que seja
diferente de como ficou, mas enquanto estou escrevendo todas as
possibilidades estão abertas. Cada vez suporto menos saber muito sobre o
livro.
P. E, neste caso, voltou a ser atacado pela insegurança ao escrevê-lo?
R.
Sim, sempre. Quando você mencionou ao princípio Seu Rosto Amanhã...
continua me acontecendo o mesmo. Eu termino um romance e nunca sei se
haverá outro. Não tenho tantas histórias na cabeça. Nos últimos tempos
tenho publicado a cada três anos, não é deliberado, e em cada romance
que começo sinto uma insegurança horrível. As pessoas que estão perto de
mim e que me ouvem reclamar enquanto escrevo – isso é uma porcaria, não
faz sentido, desta vez está um desastre – me dizem: “Você falou o mesmo
da última vez”... E eu respondo: “Sim, mas o outro já está terminado, e
era mais fácil do que este que não terminei...”.
P. Isso é parte do seu caráter. Não muda.
R.
Infelizmente. Há pessoas que podem escrever um livro e outro e outro e
todos ficam bons. Mas dá para ver que são livros de ofício. Eu preciso
ter um estímulo, uma inspiração suficiente para chegar a ele. Olha, acho
que o ofício também é adquirido, e eu faz... 46 anos desde que
publiquei o primeiro, com 19. É horrível.
P. Tomás Nevinson, e outros personagens seus, são incapazes de conhecer a si mesmos. Você pratica a introspecção?
R.
Não, isso é um traço que compartilho com eles. Acho um desperdício de
tempo ficar olhando muito para si mesmo. Também acredito que no fundo
todo mundo se conhece o suficiente sem precisar de grandes esforços.
Todos podemos ter surpresas com nós mesmos, obviamente, mas apenas se as
circunstâncias nos obrigarem a isso, como pode ser uma guerra. Por
exemplo, quando pensamos na Guerra Civil,
que ainda dá muito que pensar aos espanhóis, acreditamos saber como
cada um teria se comportado, mas para ser honesto, a verdade é que
realmente não sabemos.
P.
Por sinal, no livro você insiste em outra ideia sua, a de que não se
pode julgar uma guerra a partir de um tempo de paz. Que aqueles que hoje
vivem confortavelmente não devem julgar aqueles que tiveram de sofrer o
desastre. O que acha da ânsia de ressuscitar a Guerra Civil por parte
de netos e bisnetos?
R.
Acho que existe um pouco de pose e algo de facilidade. Cai muito bem
clamar para que se faça justiça. Justiça para quem? Parece-me muito
respeitável, por exemplo, que existam pessoas que queiram desenterrar
seus mortos e dar-lhes uma sepultura melhor. Meu tio Emilio foi
assassinado aos 18 anos por uma brigada de milicianos de Madri, dirigida
pelo sinistramente famoso Agapito García Atadell. Não há justiça
possível que lhe possa ser feita. Não sei onde ele está enterrado, e não
me importa. Não tenho a superstição dos ossos e, além disso, acredito
que devemos deixar os mortos em paz. Por exemplo, fico muito indignado
sempre que, além de ir contra o critério da família, se insista em
procurar os restos de García Lorca.
Isso me dá a impressão de que em boa medida os querem para tirar
proveito deles... Mas também entendo que haja alguém que queira
recuperar seu parente, e me parece perfeitamente lícito. Agora, aqueles
que já estão muito longe disso... Tenho 65 anos, minha geração não viveu
a guerra, mas nossos pais, sim, plenamente, e na minha família tive,
por um lado, esse tio assassinado por milicianos e, por outro lado, meu
pai, que em 15 de maio de 1939 foi preso sob acusações muito graves e
falsas, de que era colaborador do Pravda, ficou preso por vários meses e
se salvou de ser fuzilado. Mas, para as gerações seguintes, tudo isso
fica um pouco distante, e essa insistência soa um pouco a impostura.
Chegou-se a exigir que pessoas mortas fossem julgadas por seus crimes no
regime franquista! Se estivessem vivas, me pareceria bem, mas julgar pessoas mortas parece um absurdo. Então eu acho que há um pouco de exagero.
P.
Sua preocupação com a traição, a hipocrisia, o rosto oculto, se forjou
na delação de que foi vítima o seu pai [o filósofo Julián Marías], ou
tem mais a ver com a atmosfera vivida na ditadura?
R.
Sim, indubitavelmente. Ouvi essa história sobre o meu pai desde menino,
embora um pouco edulcorada, e o fato de que aquele que fez a denúncia e
a difamação (meu pai era republicano, mas não tinha feito nada daquilo
de que foi acusado) fosse um amigo de toda a vida impressiona muito.
P. O que estava buscando?
R.
Não sei, e meu pai disse que tampouco sabia. Ele nunca quis se vingar
ou revelar os nomes, mesmo depois da morte de Franco. Eu fiz uma
armadilha... em Seu Rosto Amanhã, empresto a história do meu pai ao
personagem de Juan Deza, e dentro dessa ficção os nomes dos delatores
correspondem quase aos nomes reais. Lembro-me de que antes de publicar o
primeiro volume li essa parte para o meu pai, e então ele disse: “Está
bem, gostei. Mas eu nunca disse os nomes”. E eu disse: “Bem, mas agora
quem está contando a história sou eu”. Meu pai não queria saber de nada,
nem se contaminar combatendo essa gente. Coisa que eu entendo até certo
ponto. Você não pode entrar em todas as guerras, porque há inimigos que
realmente mancham demais, mesmo que seja para lutar contra eles, e se
você pode evitá-lo, melhor, por higiene mental, de vida e biográfica.
Mas é um assunto que aparece muito nos meus romances: a persuasão, a
conveniência de ter segredos, a suspeita... são temas universais, que
todos vivemos e padecemos.
P.
Diante de outros romances seus, em que a trama é contemporânea ao
momento da escrita, Berta Isla compreende quase três décadas, dos anos
sessenta aos anos noventa.
R.
Sim, também no anterior, Assim Começa o Mal, volto a outra época, aos
anos oitenta. É uma coisa curiosa, e aí eu parei um pouco para pensar no
que está acontecendo... Acho que uma das razões, e isso não vai cair
muito bem para as pessoas de hoje, é que o tipo de conflitos, de
ambiguidades, de dilemas, morais inclusive, que me interessa tratar em
meus romances e que se apresentam aos meus personagens, cada vez seria
mais inverossímil para mim atribuí-los às pessoas de 2017, porque tenho a
sensação de que as pessoas (com exceções) perderam substância. E não me
refiro aos jovens. Eu acho que os tempos influenciam todas as gerações,
e há pessoas de 70 anos que agora perderam substância em relação a como
eram elas mesmas, e não sei, há 20 anos não via um homem de 70 anos de
calção tirando uma foto de um azulejo ou qualquer outra estupidez. Agora
dá a impressão de que as pessoas perderam densidade, profundidade.
Então, colocar esse tipo de conflitos ou de complexidades em personagens
de hoje, acho que chocaria muito.
Detalhes da biblioteca de Marías
P.
Justamente em Berta Isla, você faz comentários sobre as mudanças de
costumes, a superproteção da juventude, a perda da cortesia, o desprezo
pela excelência... Você vive com nostalgia?
R.
Rapaz, sim. A verdade é que tenho uma sensação... mas isso pode ser
atribuído a mim, que vou fazendo anos, e quando ficamos velhos nos vemos
cada vez mais alheios ao mundo novo. Pode ser um defeito meu... Há uma
frase no romance que diz algo nessa linha, à medida que envelhecemos, o
mundo é usurpado...
P.
Eu a anotei aqui: “Os países são usurpados por aqueles que vão nascendo
sem querer, nós somos usurpados pelos adultos ou pelos velhos em que
nos transformamos sem querer”.
R.
Sim, existe uma maior ignorância deliberada do passado, maior
indiferença sobre o que aconteceu antes... Há pouco, em um breve
questionário me perguntaram: “Qual é o seu maior pesar?”. E eu respondi
algo assim como saber que vou deixar um mundo menos agradável e menos
inteligente do que aquele que encontrei ao nascer. Não estou,
obviamente, me referindo ao aspecto político, porque nasci durante a
ditadura de Franco, mas à maneira de ser das pessoas, aos valores, às
inquietudes... Tenho a sensação de que o mundo é muito menos inteligente
do que nos anos cinquenta e sessenta, e que é menos agradável. E então,
claro que tenho uma nostalgia de vez em quando; conheci outras épocas
que me pareceram globalmente mais sensatas, menos imersas em idiotices, e
essa sensação é o que faz com que muitas pessoas que leem meus artigos
dominicais considerem que estou irritado com o mundo.
P.
As queixas em relação à decadência já eram ouvidas do seu pai, e de
fato se repetem em todas as épocas. Por que seria pior agora?
Pelo
modo como as redes sociais funcionam é muito fácil manipular as pessoas
hoje em dia. Pense no que Goebbels teria feito com o Twitter...
R.
Não sei se sempre se repetem. Houve épocas em que se teve consciência
da melhora. Não acho que todas as gerações sempre pensaram que o passado
era melhor. E, em muitos aspectos, na própria Espanha,
os anos oitenta, que agora são denegridos por muitos, foram uma época
em que todos nós tínhamos a sensação de que eram infinitamente melhores
do que os anos sessenta e setenta que tínhamos deixado para trás.
P. Você acredita que a formação educacional se degradou na Espanha?
R.
Sem a menor dúvida. Conheço muita gente que está na universidade e
essas pessoas me falam do grau de incapacidade dos alunos para entender
um texto breve. E isso não acontece apenas na Espanha, mas também em
outros países. Isso nunca havia acontecido, que os universitários
tivessem dificuldade para entender o que leem. E, além disso, há outro
elemento de não querer saber, há uma espécie de redução deliberada de
tudo o que é dito... Eu escrevo artigos, tento argumentar, tento
matizar. De vez em quando escrevo arbitrariedades e exageros, é claro,
porque, se não, não me divirto, mas se digo que algo me parece falso, ou
errado, ou uma imbecilidade, me esforço em argumentar. E, apesar disso,
muitas vezes há leitores ou pseudoleitores que o reduzem a um slogan.
P. Você escreve colunas há 23 anos, 15 deles no EL PAÍS SEMANAL. Notou um aumento da intolerância?
R.
Sim. Especialmente nos últimos anos. Tenho um artigo pendente, que
também cairia muito mal, que teria de intitular como A Vitória das
Freiras ou algo assim. As freiras de sempre estão fazendo sucesso agora,
com outro disfarce, mas com os mesmos objetivos: que não haja beijos,
decotes ou minissaias. Dizem que agora é por boas razões. Veja, não, sob
a aparência de boas causas se reprime como nos tempos de Franco.
Portanto, se eu chamar de freiras aquelas que defendem tudo isso...
Máquina de trabalho de Marías
P. As feministas?
R.
Sim, feministas, sei lá... Outro dia eu li: “Não haverá mais beijos em
corridas de bicicleta”. E a federação de golfe dos EUA proíbe que as
jogadoras usem saias curtas... Fiquei atônito. Vejamos, as feministas
lutaram durante décadas para se vestir como quiserem. E as sufragistas
queriam descobrir o tornozelo. E agora acontece que, por outros motivos,
não se pode usar minissaia. Me deixem em paz!
P. Você acha que as redes sociais têm algo a ver com isso? Intolerantes sempre houve, mas talvez agora eles tenham mais capacidade de se manifestar.
R.
Sim, acho que têm muito a ver. Alguns anos atrás existiam as cartas
para a redação, e alguém que se dava o trabalho de escrever uma carta à
redação, mesmo que fossem 10 ou 12 linhas, parava para pensar. Hoje, na
base do tuíte se diz qualquer coisa, às vezes sem ter lido o artigo,
apenas a partir do que lhes foi dito. E então há um elemento de contágio
que não acontecia antes. Por causa do modo como essas redes sociais
funcionam (eu falo pelo que ouvi dizer, porque não as frequento e jamais
as vejo, nem sequer uso computador), basta que haja dois ou três
indivíduos que armem um escândalo sobre algo, com ou sem base, para que
os outros se associem imediatamente por mero mimetismo, e isso cresce. O
que também indica como é fácil manipular as pessoas hoje em dia. Pense
no que Goebbels teria feito com o Twitter... Teria sido terrível! A
propaganda dos nazistas se limitava ao rádio, à imprensa e nada mais, e
ainda assim eles tiveram muita influência, então imagine a capacidade de
influência que pode ter hoje alguém que organize bem tudo isso e
manipule bem... Ainda não apareceu Hitler, mas já apareceu Trump
[risos].
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário