O historiador e diplomata Hélio Franchini Neto diz que batalhas contra Portugal envolveram mais soldados que as de Simón Bolívar e ajudaram a criar a identidade nacional. Entrevista a Duda Teixeira, da Crusoé:
O
quadro “Independência ou Morte”, de Pedro Américo, eternizou o momento
em que D. Pedro I declarou, em 7 de setembro de 1822, que o Brasil seria
um império separado de Portugal. Para o historiador e diplomata Hélio
Franchini Neto, a pintura em que o protagonista ergue a espada não
traduz a realidade, por mostrar a independência como algo rápido,
pacífico e sem complicações. Amparado em pesquisas recentes, ele afirma
que a consolidação desse processo só se deu após batalhas encarniçadas,
que envolveram mais homens que aquelas lideradas pelo venezuelano Simón
Bolívar, o Libertador da América espanhola. Formado em direito, com
mestrado em ciência política, Franchini Neto defendeu uma tese de
doutorado em história sobre esse tema, em 2015. O material foi adaptado
para o público geral e acaba de ser publicado no livro Redescobrindo a
Independência: uma História de Batalhas e Conflitos Muito Além do Sete
de Setembro (Benvirá). Depois de trabalhar na embaixada brasileira em
Bogotá, Franchini Neto, de 43 anos, assumiu no início do ano a
vice-chefia na assessoria de relações federativas do Itamaraty com o
Congresso. Ele conversou com Crusoé.
Em seu livro, o senhor argumenta que a “Independência foi um desenrolar caótico, incerto, marcado por disputas, heterogeneidade de visões e de interesses, conflito político e guerra”. Como chegou a essa conclusão?
Uma
vez, li em um livro que a guerra entre as forças de Portugal e de D.
Pedro na Bahia envolveram mais soldados que a tropa do libertador
venezuelano Simón Bolívar. O jovem imperador mobilizou, entre Exército e
Marinha, algo em torno de 15 mil soldados no primeiro semestre de 1823.
Bolívar, que liderou a independência de Venezuela, Colômbia e Equador,
não ultrapassou 10 mil. Esse dado me impressionou muito. Então,
continuei estudando o tema até decidir fazer um doutorado. Meu objetivo
inicial era apenas o de mapear as operações militares desse período, mas
aos poucos fui vendo que as batalhas eram muito maiores do que eu
imaginava e que ocorreram em três frentes principais: na Bahia, no Norte
e na Cisplatina, hoje Uruguai. Além dos números superlativos, elas se
chocavam com as narrativas existentes. Ainda se fala muito que o
conflito na Bahia foi entre baianos e tropas portuguesas ali presentes.
Mas a guerra foi muito mais ampla e complexa.
Em que sentido?
Para
começar, os dois militares baianos que começaram a luta eram
originalmente defensores das Cortes de Lisboa. A disputa que se seguiu
era local, pelo poder militar da província. Depois que um dos lados ,
aquele liderado por Manoel Pedro, foi derrotado, seus partidários
refugiaram-se na cidade de Cachoeira e se aproximaram de D. Pedro. No
fim de 1822, essa guerra civil já tinha ganhado outra dimensão. Portugal
enviou sucessivamente o máximo de tropas que pôde, para apoiar o
brigadeiro Ignacio Luiz Madeira. De 3 mil soldados, ele passou a contar
com 10 mil no final do ano. Essa diferença, de 7 mil ou 8 mil soldados, é
equivalente à expedição enviada pela Espanha para lutar contra Bolívar
na Venezuela e na Colômbia. Vale ressaltar também que, entre os que
defenderam o lado de D. Pedro, não havia só baianos. Pernambucanos,
paraibanos e mineiros também lutaram.
A realidade nessas três frentes foi muito cruenta?
Uma
estimativa é a de que entre 3 mil e 5 mil morreram no período de um
ano, entre 1822 e 1823. Só na Bahia teria havido de 2 mil a 4 mil
óbitos. Cerca de mil baixas foram por doenças no fronte. Considerando
que 30 mil soldados foram mobilizados, isso dá uma taxa de 10% de
mortos, sem contar os feridos. É uma proporção muito alta. No Piauí, o
major português João José da Cunha Fidié reuniu 1,5 mil homens para
lutar contra os partidários de D. Pedro, que recrutaram entre 2,5 mil e 3
mil para combater na Batalha do Jenipapo. Eles se enfrentaram ao longo
de cinco horas, deixando entre 200 e 400 mortos. Foi um período de lutas
encarniçadas.
O que dizem os relatos desses conflitos?
Alguns
depoimentos são incríveis. Comandantes portugueses reclamaram que, no
cerco a Salvador, não se podia colocar a cabeça para fora da trincheira,
porque isso seria morte na certa. Do lado oposto, um coronel que tinha
mil soldados falou da dificuldade de alimentá-los e de conseguir
calçados para eles. Também conta que cada ferido que ia para o cirurgião
era uma morte certa. D. Pedro chamou isso de uma “crua guerra de
vândalos”.
Por que o sr. não fala em brasileiros lutando contra portugueses?
Até
a chegada da corte portuguesa, em 1808, o Brasil era formado por duas
identidades: a local — como mineiros, paraenses, cearenses, baianos — e a
portuguesa, ligada ao rei. A identidade brasileira ainda era
incipiente. As longas distâncias dificultavam um laço mais forte entre
as distintas populações. Quem saísse do Maranhão num barco demorava 15
dias para chegar a Lisboa. Mas a viagem até a Bahia, por causa das
correntes marítimas do Atlântico, tardava quase três meses. A vinda de
D. João VI alterou completamente essa ordem. Em 1808, o Rio de Janeiro
se tornou a capital do Império Português, com tribunais, academias
militares, corpo diplomático. Em 1815, O Brasil deixou de ser colônia,
com a criação do Reino do Brasil, o que constituiu um primeiro elemento
unificador. Esse movimento de coesão não se deu na América Espanhola,
onde os núcleos continuaram vivendo de forma relativamente autônoma. Se a
Coroa não tivesse vindo para o Brasil, poderíamos hoje estar
fragmentados em vários países, como ocorreu no restante da América
Latina.
As guerras que se seguiram à Independência ajudaram a moldar essa identidade brasileira?
A
presença da corte, embora trouxesse essa sensação de unidade, não
gerava benefícios homogêneos para todas as regiões. No Norte, havia
descontentamento por causa dos impostos pagos para financiar o Estado.
Quando os portugueses finalmente tomaram a decisão de acabar com o poder
do Rio de Janeiro e dar primazia a Lisboa, após a Revolução do Porto,
vários grupos políticos buscaram um projeto alternativo. Mas, em muitas
províncias, o apoio a D. Pedro era frágil. Então, tudo ocorreu de
maneira caótica, incerta. Fagulhas de guerra civil se espalharam por
todos os lados. Em muitos casos, houve lutas violentas. Em outros,
negociação. A guerra na Bahia foi o primeiro confronto que se poderia
chamar de nacional, com forças mobilizadas por D. Pedro e por Lisboa.
Quando a poeira baixou, paraibanos, cearenses, baianos e mineiros
começaram a se identificar como brasileiros.
O que teria acontecido se os partidários de D. Pedro tivessem perdido essas guerras?
Depois
da Declaração da Independência, Portugal tentou salvar alguma coisa do
território. Naquela época, o Brasil era visto como dividido em duas
regiões. O Sul já estava perdido, mas os portugueses ainda nutriam
esperanças de recuperar o Norte. Um parlamentar português sugeriu que se
fizesse algo parecido com o que ocorreu nos Estados Unidos, em que o
Império Britânico logrou manter o Canadá entre suas possessões. No
Brasil, a Bahia era o centro estratégico, pois era a transição entre o
Norte e o Sul. Se os militares portugueses tivessem vencido as batalhas
nessa região, eles poderiam ter permanecido com Pernambuco, Piauí, Pará e
Maranhão. O Norte do Brasil se tornaria um país separado e avançar
sobre o Sul, na tentativa de retomar tudo. Não foi o que aconteceu.
Portanto, pode-se deduzir que nossa independência foi consolidada na
guerra. Um desfecho distinto dessas batalhas mudaria radicalmente o rumo
da história.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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