Em sua coluna na Gazeta, Paulo Polzonoff Jr. recorda o encontro com Joel Silveira, que detestava ser chamado de "Víbora":
Sou mesmo um afortunado. E foi nessa condição que me coube conhecer
ninguém menos do que um dos ídolos da minha juventude: Joel Silveira. Ao
entrar naquele apartamento cheirando a mofo na divisa entre Ipanema e
Copacabana, eu era um jornalistinha de 26 anos com fama de virulento. Ao
sair de lá, algumas horas mais tarde, tinha me transformado num
escombro em vias de reconstrução (que levaria uns dez anos).
O convite me foi feito pelo saudoso Geneton Moraes Neto, que estava
gravando um documentário sobre Joel. Subimos eu, ele e o cinegrafista
num elevador apertado. A porta se abriu para um corredorzinho ladeado
por livros e quadros com lembrancinhas políticas. Lembro-me claramente
de um bilhete assinado por Jânio Quadros, com mesóclise e tudo.
Enquanto o cinegrafista montava o equipamento, ficamos conversando.
Joel Silveira já estava com a saúde debilitada. Sua vozinha aguda de
timbre metálico expressava cansaço. Suas pernas inchadas e cheias de
feridas ajudavam a compor um quadro de decadência. De repente, saiu da
cozinha a esposa de Joel Silveira com uma bandeja na mão. Foi o pior
café que já bebi na vida, mas bebi com gosto, porque estava diante de
uma lenda.
Até que surgiu na conversa a palavra que viria a definir Joel
Silveira: víbora. Ele recebera essa alcunha por causa de seu estilo
ácido e sua capacidade de destruir alguns dos personagens de suas
matérias. Foi graças a essa agressividade, aliás, que ele acabou enviado
à Europa a fim de cobrir a Segunda Guerra Mundial, tema da maioria dos
livros que se acumulavam naquela sala. “E não me morra!”, teria
aconselhado Assis Chateaubriand ao seu melhor repórter.
O problema é que Joel Silveira odiava o apelido. Ele o considerava um
insulto. Ali na conversa pré-entrevista, ele se virou para mim,
jornalistinha virulento da província, e me explicou por que rejeitava a
alcunha. Nunca me esqueci da lição que trago até hoje comigo.
Ortodoxia do Veneno
Evoco a figura de Joel Silveira por causa de uma reflexão que tenho
feito com frequência nos últimos tempos: qual o objetivo de tanto veneno
no debate público? Não que uma dosezinha de cicuta de vez em quando não
seja até divertido – para quem escreve e para quem lê. Mas o que há de
virtuoso nesse ímpeto destruidor, nessa linguagem que se pretende a
objetiva e purificadora, seca e letal, sem qualquer sinal de um humor
misericordioso?
Por algum motivo que me escapa no momento, fomos levados a acreditar
que a função da escrita (jornalismo, literatura e até aquele seu post
despretensioso nas redes sociais) é eliminar do debate aqueles que
percebemos como maus. Numa época em que valores subjetivos como honra
valiam mais do que o sucesso nas urnas, Joel Silveira fez isso como
ninguém. Ele realmente sabia contar histórias e conduzir entrevistas de
modo a destruir o perfilado ou entrevistado da vez.
Assim, um tanto quanto inadvertidamente, Joel Silveira criou toda uma
escola de narrativa jornalística que se baseia na ideia do “desagrado
geral” como forma de consolidar uma suposta credibilidade isenta de
paixões ideológicas. O que, evidentemente, não faz sentido nenhum quando
o objetivo real é usar essa mesma paixão para aniquilar o adversário.
Beberam dessa fonte todos os grandes jornalistas do século XX, de
Millôr Fernandes a Paulo Francis. O próprio Geneton Moraes Neto dizia
que, ao entrevistar alguém, sempre se perguntava “por que esse bastardo
[ele realmente falava “bastardo”] está mentindo para mim?”. Assim, Joel
Silveira deu origem a uma verdadeira “Ortodoxia do Veneno”.
E o pior é que, com o tempo, o veneno das víboras foi perdendo a
beleza para dar lugar ao ritual cotidiano de apedrejamento verbal. A tal
ponto que hoje temos todo um serpentário orgulhoso de sua condição e
que simplesmente não entende como pode existir algo fora dessa
ortodoxia. São, pois, tratados como hereges todos os que buscam um tom
mais conciliador – visto como sinal de submissão e bajulação.
Dedo carinhosamente em riste
Naquele dia, voltei para casa andando pela praia. O gosto do café
ruim não me saía da boca. Assim como estavam impressas na minha retina
as pústulas nas pernas inchadas de Joel Silveira. Que, com o dedo
carinhosamente em riste, me deu o melhor conselho que um jornalistinha
virulento de província poderia receber.
A vontade de restabelecer a justiça no mundo (um conceito bastante
subjetivo) não pode ser maior do que a busca pela verdade. Porque, em
nosso ímpeto justiceiro, não é raro tropeçarmos na injustiça da
vingança. Mais do que isso, o objetivo de encontrar o que entendemos por
verdade por meio da destruição do outro (dos ricos e dos poderosos,
como Joel fazia tão bem) não passa de uma perversão do intelecto.
Da posição estranhamente privilegiada de quem já contemplava a
própria morte e seu legado, Joel Silveira se arrependia de ser visto
como alguém que, por paixão ao texto e por causa de ideia distorcida da
própria intelectualidade, muitas vezes passou por cima de seus
semelhantes – independentemente da culpa ou inocência deles.
[Se você gostou deste texto, mas
gostou muito mesmo, considere divulgá-lo em suas redes sociais. Agora,
se você não gostou, se odiou com toda a força do seu ser, considere
também. Obrigado.]
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário