Ensaio do professor Carlos Alberto dos Santos, publicado pelo Estado da Arte:
Conforme mencionei no ensaio anterior,
havíamos previsto uma série de ensaios sobre alguns ganhadores do
Prêmio Nobel (PN), e quando se trata de PN, é inescapável a lembrança da
família Curie. Marie, Pierre, Irène e Frédéric ganharam cinco PN, caso
único na história desse prêmio. O lançamento recente do filme
Radioactive deu visibilidade popular ao casal Marie e Pierre Curie, com
muitas resenhas do filme e reportagens jornalísticas. Tive o cuidado de
ler todos os textos que apareceram no meu radar da Internet, para
elaborar este ensaio a partir de fatos históricos pouco conhecidos do
grande público e não abordados nesses textos que li. Todavia, para bem
definir o contexto no qual farei minha narrativa, algumas informações
familiares bem conhecidas devem ser aqui também apresentadas.
De toda a literatura que conheço sobre Marya Salomea Sklodowska, ou
Marie Curie, nome que adotou depois do casamento, ou Marie
Curie-Sklodowska, como consta em seu túmulo no Panteão de Paris, ou
Madame Curie nome que a consagrou como cientista, há dois livros que
aprecio mais do que todos, mesmo tendo em conta a importância documental
do livro de sua filha, Ève Curie [1]. Refiro-me aos livros de Françoise
Giroud [2] e Susan Quinn [3]. Excetuando casos muito especiais, todo o
conteúdo deste ensaio é baseado nesses dois livros.
Marya Salomea Sklodowska
Nasceu em Varsóvia, em 7 de novembro de 1867. Caçula de cinco filhos
de Wladyslaw e Bronislawa Sklodowski. Ele, professor de física e
matemática de um colégio masculino, e ela diretora de uma das melhores
escolas privadas para meninas, em Varsóvia. Marya fez seus estudos
primários na escola Sikorska, onde destacou-se como aluna aplicada e
inteligente, com as melhores notas em todas as matérias, e aos quinze
anos conclui o ginásio com medalha de ouro, mas não pode ingressar na
universidade, que naquela época não estava aberta às moças. Para ajudar
nas economias da família, Marya dá aulas particulares de aritmética,
geometria e francês. Aos 18 anos aceita um emprego de preceptora em uma
rica família de advogados de Varsóvia. Precisa ganhar dinheiro para
ajudar a irmã mais velha, Bronia, em seus estudos de medicina em Paris.
Depois, a irmã a ajudaria a mudar-se para a cidade-luz. Do primeiro
emprego parte para um com salário melhor, ainda como preceptora na
família Zorawski, produtores de beterraba em Sluski, a três horas de
trem de Varsóvia. Casimir, o primogênito da família, estudante de
engenharia agronômica em Varsóvia, apaixona-se por Marya. É sua primeira
decepção amorosa. O rapaz sucumbe à objeção de seus pais e abandona
Marya, mas ela permanece no emprego por quatro anos. A necessidade
financeira é maior do que a humilhação. Findo o contrato de quatro anos,
ela vai trabalhar na casa de ricos industriais de Varsóvia, e no outono
de 1891, aos 24 anos, desembarca em Paris, na gare du Nord.
Marie Curie nasceu no prédio à esq., com balão, na Av. Freta. |
Três anos depois, Marya que agora se chamava Marie, concluiu seu
curso de física em primeiro lugar. Um ano depois gradua-se em
matemática, em segundo lugar. Naquela época os avanços científicos na
França eram bem menos relevantes que aqueles em curso na Alemanha e na
Inglaterra, mas Marie teve bons e famosos professores na Sorbonne; o
físico Gabriel Lippmann, que ganharia o Prêmio Nobel de Física (PNF) de
1908, e os matemáticos Paul Painlevé, que seria Primeiro Ministro da
França por dois meses, em 1917, e Paul Appell, que seria reitor da
Universidade de Paris, a Sorbonne, entre 1920 e 1925. E, o mais famoso
entre os acadêmicos, o físico-filósofo-matemático Henri Poincaré. Com
dois títulos universitários debaixo do braço, Marie estava pronta para
exercer o magistério na sua amada Polônia. Mas, em algum dia da
primavera de 1894, ela foi apresentada a Pierre Curie, e a história da
física tomou um novo rumo. É ela quem relata o dia em que viu Pierre
pela primeira vez [2]:
Quando entrei, Pierre Curie estava no umbral de uma porta-janela que dava para o balcão. Pareceu-me jovem, apesar de na época ter trinta e cinco anos. Fiquei impressionada com a expressão de seu olhar límpido e com uma ligeira aparência de displicência em sua alta estatura. Sua fala um pouco lenta e reflexiva, sua simplicidade, seu sorriso ao mesmo tempo sério e jovem inspiravam confiança. Logo iniciamos uma conversa amigável; o assunto eram questões de ciências, sobre as quais eu estava contente por pedir sua opinião; a seguir, passamos a questões sociais e humanitárias, pelas quais nós dois tínhamos interesse. Entre sua concepção das coisas e a minha, apesar da diferença de países de origem, havia uma proximidade surpreendente, sem dúvida em parte por uma certa semelhança de atmosfera moral dos nossos meios familiares.
Pierre Curie
Nasceu em Paris, em 15 de maio de 1859, descendente de uma modesta
família burguesa da região alsaciana, nas proximidades do rio Reno, que
terminou por gerar médicos e cientistas de prestígio. Seu pai, Eugène
Curie, era médico. Sua mãe, Sophie-Claire Depoully Curie, era filha de
comerciantes da região de Lyon. Pierre tinha um irmão mais velho,
Paul-Jacques, que também graduou-se em física. Os dois irmãos inventaram
um equipamento, que anos depois seria crucial nas descobertas de Marie e
Pierre.
Pierre gradua-se em física em 1877, e no ano seguinte começa a
trabalhar como preparador adjunto no laboratório de física da Faculdade
de Ciências. Dois anos depois apresenta, à Academia de Ciências de Paris
(ACP), seu primeiro trabalho científico, em colaboração com Paul
Desains. No mesmo ano, os irmãos Curie apresentam o trabalho sobre a
descoberta da piezoeletricidade. Em 1882, Pierre ocupa o posto de
professor na recém-criada Escola de Física e Química Industrial. Entre
1882 e 1886, utilizando a propriedade piezoelétrica do quartzo, os
irmãos Curie inventam a balança de quartzo, um eletrômetro de quadrante e
um manômetro piezoelétrico. É com esses equipamentos que Marie e Pierre
vão descobrir, em 1898, os elementos radioativos polônio e rádio.
A partir de 1891, Pierre inicia uma série de estudos sobre
magnetismo, pelos quais é mais conhecido na história da física.
Descobriu a temperatura abaixo da qual os materiais como ferro e
cobalto, entre outros, tornam-se ferromagnéticos. Essa temperatura é
hoje conhecida como temperatura de Curie. Em 1895 ele conclui sua tese
de doutorado e casa-se com Marie Sklodowska. A lua de mel é uma viagem
de bicicleta, que o casal faz explorando a floresta da região de
Chantilly.
O casal Curie em lua de mel, na região de Chantilly. |
1898, o ano miraculoso de Marie Curie
Todo grande cientista tem em sua história um ano que se costuma
denominar de ano miraculoso, ou, no casto latim, annus mirabilis. O de
Newton foi 1666, durante a Grande Praga de Londres, quando ele inventou o
cálculo e fez grandes descobertas sobre as leis do movimento, a ótica e
a gravitação. O de Einstein foi 1905, quando ele publicou quatro
trabalhos que revolucionaram a física, entre os quais, a teoria da
relatividade especial e a equação do efeito fotoelétrico, pela qual
ganhou o PNF de 1921. Não há a menor dúvida que 1898 é o ano miraculoso
de Marie Curie.
No final de 1897, Marie publica seu primeiro trabalho, no assunto que
seu marido dominava, o magnetismo, mas tem que pensar em seu tema de
tese de doutorado. Toma conhecimento de um intrigante fenômeno
descoberto por Henri Becquerel, em seu laboratório do Museu de História
Natural. Dois meses depois da descoberta dos raios-X, exatamente em
fevereiro de 1896, Becquerel submeteu amostras de um sal de urânio à luz
solar. Sob a amostra havia uma chapa fotográfica protegida da luz
solar. A ideia do experimento era verificar a hipótese de que os raios-X
eram emitidos em consequência de um processo de fluorescência. O sal de
urânio era fluorescente. Becquerel supunha que excitando-o com a luz
solar ele emitiria raios-X, que sensibilizariam a chapa fotográfica. De
fato, isso ocorria, mas um dia, quando Becquerel se preparava para fazer
nova observação, o Sol não deu o ar de sua graça no céu parisiense. E
assim ficou durante dois dias. Becquerel resolveu revelar aquela chapa
fotográfica que estava guardada em alguma gaveta do laboratório,
totalmente protegida da luminosidade. Se a hipótese da fluorescência
estivesse correta, a chapa fotográfica não apresentaria mancha, ou se
apresentasse seria muito tênue. Para sua surpresa, a chapa apresentou
uma intensa mancha escura, como se tivesse sido fortemente atingida por
um feixe de raios-X. Becquerel atribuiu a sensibilização a uma longa
permanência do estado de fluorescência naquele sal de urânio. Ou seja,
em algum momento anterior, o material teria sido excitado pela luz solar
e assim permanecido por um longo tempo em seu estado fluorescente.
Becquerel chegou a denominar o processo de fluorescência invisível com
longo tempo de permanência.
Outros pesquisadores seguiram o mesmo caminho de Becquerel, mas
ninguém conseguia justificar os resultados experimentais com base no
fenômeno da fluorescência. Entre as conclusões equivocadas de Becquerel
destaca-se aquela segundo a qual o urânio metálico era o primeiro metal
puro que apresentava o fenômeno da fluorescência. Um metal puro não pode
ser fluorescente. Quando ele observou a radiação penetrante emitida
pelo urânio metálico, em maio de 1896, ele deveria ter-se dado conta de
que aquilo se tratava de um fenômeno diferente, e não de fluorescência
ou fosforescência. A partir desse trabalho de maio de 1896, Becquerel se
desinteressa pelo assunto e deixa de publicar sobre o mesmo, sem
conseguir estabelecer a natureza das radiações emitidas, nem a natureza
subatômica do processo [4].
O fenômeno era interessante, deve ter avaliado Marie, e sua
explicação encontrava-se em aberto. Fazia quase dois anos que aquela
área de pesquisa estava praticamente estagnada. Não há circunstância
melhor do que essa para uma tese de doutorado. Já em abril de 1898,
Marie apresenta seu primeiro trabalho sobre o fenômeno que ela
denominaria de radioatividade. Foi apresentado à ACP pelo seu velho
professor Gabriel Lippmann. Ela mesma não podia fazer a apresentação
porque não era membro da Academia. Intitulado Rayons émis par les
composés de l’uranium et du thorium, ela apresentava no artigo os
primeiros resultados mostrando que além de urânio, o tório também era
radioativo. Coincidentemente, este resultado foi obtido na mesma época
na Alemanha, por Gerhardt Carl Schmidt.
O sucesso obtido por Marie nesse trabalho e nos que se seguiram,
deve-se em grande parte ao uso do equipamento desenvolvido por Jacques e
Pierre Curie. Foi um verdadeiro pulo do gato metodológico. Sabia-se
que, assim como os raios-X, as radiações urânicas ionizavam o ar. Então,
em vez de usar o impreciso método fotográfico de Becquerel, Pierre deve
ter sugerido que ela medisse a ionização produzida pela radiação
fazendo uso de uma balança de quartzo acoplada a um eletrômetro de
quadrante e uma câmara de ionização. Até hoje nenhum método é mais
preciso para medir corrente elétrica do que o método utilizado naquele
equipamento inventado pelos irmãos Curie. O material radioativo era
colocado na câmara de ionização, e a corrente produzida era medida pelo
eletrômetro de quadrante. Com a balança de quartzo eles quantificavam a
intensidade da radiação. Foi assim que Marie conseguiu detectar
quantidades ínfimas de materiais radioativos presentes em amostras
minerais. Foi assim que analisando uma amostra de pechblenda (óxido de
urânio), Marie desconfiou que havia algum material desconhecido na
amostra. Com a colaboração de Pierre ela submete a amostra de pechblenda
a processos químicos de purificação até obter uma amostra com bismuto
associado ao material ativo. Eles não conseguiram separar os dois
materiais pelos processos químicos da época. No artigo que publicam em
julho de 1898, o casal Curie sugere [5]:
Cremos, portanto, que a substância que retiramos da pechblenda contém um metal ainda não identificado, vizinho do bismuto por suas propriedades analíticas. Se a existência desse novo metal for confirmada, propomos dar-lhe o nome de polônio, nome do país de origem de um de nós.
Na presença de Pierre Curie (ao centro) e do químico Gustave Bémont, Marie manipula o equipamento com o qual realizou seus experimentos sobre a radioatividade. |
Em 1899, com o título de Les rayons de Becquerel et le polonium,
Marie publica na Revue Générale des Sciences, a síntese e a conclusão da
área de estudo pela qual ela ganhou seu primeiro PN, o de física de
1903:
Os raios urânicos foram frequentemente chamados de raios de Becquerel. Pode-se generalizar esse nome, aplicando-o não apenas aos raios urânicos, mas também aos raios tóricos e a todas as radiações semelhantes.
Chamarei de radioativas as substâncias que emitem os raios de Becquerel. O nome de hiperfosforescência que foi proposto para o fenômeno parece-me dar uma falsa ideia de sua natureza.
Esse foi o momento do batismo da radioatividade. Ao contrário de
Becquerel, que foi pioneiro na observação do fenômeno, e sobre ele
trabalhou durante três meses sem conseguir caracterizá-lo como um
fenômeno subatômico, preso que estava à ideia da hiperfosforescência,
Marie Curie compreendeu que se tratava de um fenômeno novo, originado na
estrutura subatômica da matéria, ou seja, no núcleo, e apresentado por
determinados materiais, que ela denominou radioativos, e batizou o
fenômeno como radioatividade.
A partir de 1990, Roberto de Andrade Martins publicou uma série de
artigos argumentando que ao contrário do que consta na literatura
didática e historiográfica, foi Marie Curie, e não Becquerel quem
descobriu a radioatividade. Seu primeiro artigo sobre o assunto tem um
título bem sugestivo: Como Becquerel não descobriu a radioatividade [6].
Seus anos de estudo sobre o tema foram reunidos em um livro, em 2012,
premiado com o terceiro lugar no Prêmio Jabuti de 2013, na categoria
Ciências exatas, tecnologia e informática [4].
Todavia, parte da comunidade científica tem outros critérios para
avaliar a paternidade das descobertas científicas, que não aqueles
baseados unicamente em análises epistemológicas. Há critérios sociais
não muito claros, sobretudo no que se refere às indicações ao PN (ver ensaio anterior).
Em seu livro, La fondation des Prix Nobel scientifiques: 1901-1915,
Elisabeth Crawford faz uma boa discussão a esse respeito [7]. Por
exemplo, no capítulo 4 ela analisa o sistema de indicações e sua
influência sobre a escolha dos laureados. É importante ter em conta que o
Comitê Nobel (CN) não é obrigado a seguir as recomendações dos
cientistas responsáveis pelas indicações. Há inúmeros casos em que o CN
não escolheu os mais indicados pela comunidade científica. Além disso, a
decisão final não é do CN; é da Real Academia Sueca de Ciências (RASC).
E nem sempre a recomendação do CN é totalmente aceita pela RASC.
Os PNF e PNQ de 1903 revelam um aspecto de disputa entre comunidades
científicas muito interessante e que se manifestam até hoje no ensino
dessas duas ciências da natureza. A que área pertence a descoberta da
radioatividade e seus desdobramentos? Essa questão emergiu claramente na
concessão do PNF e do PNQ daquele ano, mas continuou nos anos
seguintes. Por exemplo, quando o PNQ de 1908 foi concedido a Rutherford,
por suas investigações na desintegração dos elementos, e a química das
substâncias radioativas, parte importante da comunidade científica
considerava que essa era uma área predominantemente da física. Essa
ambiguidade se transferiu para o sistema educacional básico em
praticamente todos os países. No ensino médio, costuma-se abordar o
modelo atômico nas disciplinas de química, apesar de que os avanços
nessa área do conhecimento, no início do século 20, tenham sido
apresentados por físicos. Os químicos da RASC consideravam uma
temeridade conceder o PNF a Becquerel e ao casal Curie, porque isso
poderia fazer com que os físicos passassem a considerar a radioatividade
e as descobertas de novos elementos químicos radioativos como uma área
da física, e não da química.
Se considerarmos os argumentos de Roberto A. Martins [4], podemos
questionar a concessão do prêmio a Becquerel, porque sua única
contribuição foi ter feito o experimento que mostrou a existência do
fenômeno. Foram infrutíferas todas as suas tentativas de explicar o
processo pelo qual os compostos de urânio emitiam aquela radiação. A
explicação veio dois anos depois, com as investigações de Marie Curie.
De fato, entre os três ganhadores do PNF de 1903, Becquerel, Pierre e
Marie Curie, talvez esta seja a que mais mereceu o prêmio. É verdade que
o uso do equipamento inventado pelos irmãos Curie foi fundamental, mas
tudo indica que os experimentos foram conduzidos e analisados por ela. A
participação de Pierre não é clara. Talvez este seja um caso em que
critérios sociais tenham sobrepujado critérios puramente científicos, ou
por desconhecimento dos principais votantes, ou por respeito ao status
acadêmico de Becquerel, o único entre os três a fazer parte da ACP e da
RASC. Aliás, Marcellin Berthelot, também membro das duas academias foi o
único a indicar Becquerel para o PNF de 1901, repetindo a indicação em
1902 e 1903, quando outros cientistas já indicavam a divisão do prêmio
entre Becquerel e o casal Curie.
A RASC decidiu conceder a metade do prêmio a Becquerel e a outra
metade ao casal Curie. Se houvesse justificativa científica para incluir
Becquerel, o mais justo seria 1/3 do prêmio para cada um. Consta no
anúncio que o prêmio foi concedido a Becquerel em reconhecimento de seus
extraordinários serviços pela descoberta da radioatividade espontânea, e
a Pierre Curie e Marie Curie em reconhecimento aos extraordinários
serviços prestados por eles, com as pesquisas sobre o fenômeno da
radiação descoberto pelo Professor Henri Becquerel.
Uma situação inteiramente assimétrica aconteceu na premiação de 1935,
envolvendo outros dois membros da família Curie, Irène, filha de Marie e
Pierre, e seu marido Frédéric Joliot-Curie. De acordo com o anúncio da
RASC, o PNF de 1935 foi concedido a James Chadwick pela descoberta do
nêutron. Este é o registro mais popular que se tem dessa importante
descoberta. Embora não se possa contestar a premiação de Chadwick, o
registro puro e simples de que o nêutron foi por ele descoberto
cristaliza uma injustiça aos trabalhos precursores de Irène Joliot-Curie
e Frédéric Joliot-Curie, entre outros. Essa descoberta deu-se num
contexto histórico que bem caracteriza, em toda sua dramaticidade, a
complexidade do trabalho científico e o estresse emocional a que estão
sujeitos os profissionais da área, quer seja pelo alto nível de
competição, ou pela necessidade de reconhecimento pela descoberta.
Ernest Rutherford foi pioneiro no estudo dos núcleos atômicos a
partir de bombardeio com partículas alfa. Foi assim que ele propôs, em
1911, o modelo atômico que seu auxiliar Niels Bohr desenvolveu e que
abriu as portas para o desenvolvimento da física quântica. Em 1919,
Rutherford bombardeou átomos de nitrogênio com partículas alfa e
descobriu o surgimento de oxigênio. Ou seja a reação nuclear resultante
do bombardeio produzia oxigênio e prótons. Foi a primeira vez que se
falou em transmutação nuclear. Desde então, vários laboratórios,
especialmente na Alemanha, França e Inglaterra passaram a realizar
experimentos similares com bombardeio de partículas alfa.
Por volta de 1930, o físico alemão Walther Bothe bombardeou películas
de berílio e observou o surgimento de átomos de carbono e uma radiação
tipo raios gama com alta energia. Em seguida, o casal Joliot-Curie
repetiu o experimento de Bothe e obteve o mesmo resultado, mas
levantaram a hipótese de que aquele raio gama de alta energia talvez
pudesse produzir transmutação. Repetiram o experimento, colocando vários
materiais na frente dos raios gama. Em 18 de janeiro de 1932, eles
relataram que prótons eram ejetados de materiais ricos em hidrogênio,
como a parafina, com energia da ordem de 5 MeV (cinco milhões de
eletronvolt). Concluíram que esse resultado vinha da interação entre os
raios gama energéticos e os núcleos de hidrogênio. Para que isso
ocorresse, o raio gama deveria ter energia da ordem de 50 MeV, algo
impensável para muitos cientistas da área.
Tão logo leu o artigo do casal francês, Chadwick relatou os
resultados para Rutherford, seu ex-orientador, que, serenamente disse:
não acredito nisso. Repita o experimento e explique o resultado supondo
que em vez do raio gama, o que há é uma partícula neutra, com massa
similar à do próton. Um mês depois, Chadwick publica seu artigo com
resultados idênticos aos de Irène e Frédéric Joliot-Curie, mas com
interpretação completamente diferente. Aquilo que se pensava ser um raio
gama, era uma partícula neutra que seria denominada nêutron. Em seus
cálculos, Chadwick mostrou que o nêutron teria energia da ordem de 4,5
MeV, suficiente para espalhar prótons com 5 MeV.
O casal Joliot-Curie usou o modelo nuclear da época para explicar
seus resultados. De acordo com esse modelo, o núcleo era constituído de
prótons e elétrons. No caso do berílio, seriam 9 prótons e 5 elétrons,
de modo que o núcleo poderia emitir raios gama de até 70 MeV. No
entanto, em 1932, esse modelo já era muito contestado pelas contradições
de vários resultados experimentais. Para interpretar seu resultados
Chadwick criou outro modelo, no qual o núcleo de berílio é composto de 4
prótons e 5 nêutrons.
Como afirmei no ensaio anterior,
se o CNF usasse a mesma lógica da premiação de 1903, onde a primazia
pela descoberta da radioatividade foi compartilhada por Becquerel e o
casal Curie, Chadwick e o casal Joliot-Curie deveriam compartilhar a
primazia pela descoberta do nêutron. Mas, não foi isso que aconteceu.
Neste caso parece que a polêmica envolvendo os dois comitês (CNF e CNQ)
foi mais séria do que o caso de 1903. Há uma história folclórica, que
corre nas alamedas dos campi e nas animadas conversas de botequins,
segundo a qual Rutherford teria viajado a Estocolmo para obrigar o CNF a
dar o prêmio apenas a Chadwick, pois o comitê estava propenso a premiar
o casal Joliot-Curie. Jamais vi essa bravata escrita em textos da
literatura pertinente.
O que os documentos confiáveis [8] registram é o seguinte. Em 1934,
Irène obteve 9 indicações para o PNF, Frédéric obteve 6, e Chadwick 7. O
comitê não conseguiu se definir a quem premiar. O curioso é que Otto
Stern obteve 15 indicações, entre as quais algumas de gente muito
importante, como Niels Bohr, Max von Laue e Max Planck. Stern seria
premiado em 1943. Neste caso, tudo indica que foi uma questão de
atribuição à importância do tema. Ou seja, o CNF estava convencido da
importância superior da descoberta do nêutron. Então, teria sido mais
simples se o comitê tivesse seguido o procedimento de 1903, quando
premiaram Becquerel e o casal Curie. Ao invés disso, não conseguiram
superar o impasse e deixaram de conceder o PNF em 1934.
Não conheço na literatura uma discussão detalhada sobre essas
polêmicas em torno das premiações em 1934 e 1935. Não sei qual a razão,
mas naquele ano de 1934, Rutherford não participou da nomeação de
candidatos ao PNF. Obviamente que ele era o mais influente defensor de
Chadwick, mas não sei qual era sua argumentação contrária ao
compartilhamento do PNF entre seu pupilo e o casal Joliot-Curie. Essa
sugestão tinha sido apresentada em 1934 por Reinhold Fürth e Hantaro
Nagaoka. Werner Heisenberg tinha feito a mesma sugestão, mas esqueceu de
enviar a carta para o comitê. Em 1935 ele repetiu a sugestão.
O fato é que Rutherford conseguiu convencer os comitês de física e
química a premiarem, em 1935, respectivamente Chadwick pela descoberta
do nêutron, e o casal Joliot-Curie pela descoberta da radioatividade
artificial, ou, dito de outro modo, pela síntese de novos elementos
radioativos. Em defesa de Chadwick ele escreveu uma carta com quatro
páginas, endereçada ao Comitê de Física, com o seguinte parágrafo final
[9]:
Todo o trabalho de Chadwick é caracterizado pela originalidade do método, precisão da medição e julgamento na interpretação dos resultados. Ele desempenhou um papel notável na abordagem pioneira à propriedade dos núcleos e à transformação dos elementos.
Não sei se Rutherford estava se referindo aos equívocos de
interpretação do casal Joliot-Curie quando mencionou precisão da medição
e julgamento na interpretação dos dados. Embora ao final tenha tido
sucesso na sua sugestão, parece que isso não veio sem estresse. Por
exemplo, no CNQ o casal Joliot-Curie obteve apenas três indicações, uma
delas do próprio Rutherford. Outros candidatos tiveram mais indicações:
Walther Norman Haworth teve cinco indicações, Paul Karrer e Robert
Robinson, quatro cada um. Os dois primeiros dividiram o PNQ de 1937, e
Robinson foi premiado em 1947.
No Comitê de Física a sugestão de Rutherford também deve ter
enfrentado alguma oposição. É bem verdade que com 12 indicações,
Chadwick era o preferido do comitê. Contudo, Rutherford era o único
físico de renome a defender a premiação unicamente a Chadwick. Outros
sete cientistas de menor expressão o seguiram. Entre as seis indicações
de compartilhamento do prêmio entre Chadwick e outros candidatos, podem
ser destacados: Louis de Broglie, Heisenberg e Maurice de Broglie que
indicaram o compartilhamento entre Chadwick e o casal Joliot-Curie, e
Bohr que indicou o compartilhamento entre Otto Stern e o casal
Joliot-Curie.
James Chadwick e o laboratório onde realizou experimentos;Irene e Fréderic Curie |
Voltemos ao PNF de 1903. Se fossem apenas pelas indicações,
provavelmente Marie Curie não estaria entre os premiados. O CNF, sob
influência de membros da ACP, tendia a indicar apenas Becquerel e
Pierre. Elisabeth Crawford acha que sua indicação se deve ao esforço do
matemático sueco Magnus Gösta Mittag-Leffler, membro do CNF. Mas, se o
CNF inicialmente hesitou em premiar Madame Curie, a imprensa mundial não
se cansou em elogiar seu sucesso científico, transformando-a em uma
figura lendária. Na verdade, o PNF de 1903 transformou a imagem pública
da ciência. É provável que muito dessa imagem midiática do início do
século 20 esteja representada nesse filme recém-lançado, Radioactive,
que ainda não tive a oportunidade de assistir.
É curioso que a imprensa não menciona Becquerel em suas matérias.
Tudo concentra-se no casal Curie, ou na pessoa da Madame Curie,
eventualmente com algum exagero [7]:
Finalmente encontramos o movimento perpétuo, o sol eterno, a força suprema e inesgotável, graças ao gênio criativo de Monsieur e Madame Curie, a quem o Prêmio Nobel cairá como uma luva.
Em 1906 Pierre é atropelado por uma carruagem e morre
instantaneamente. Marie continua a pesquisa sozinha, dirigindo um grande
grupo de pesquisa, e vai progressivamente sendo reconhecida pela
comunidade científica internacional. Em 1911, é uma das 20
personalidades da comunidade científica internacional convidada para o
primeiro congresso Solvay, em Bruxelas. Logo depois é laureada com o
PNQ, pela descoberta dos elementos rádio e polônio, pelo isolamento de
rádio, e pelo estudo da natureza desse notável elemento e seus
compostos. Esse prêmio é quase como uma homenagem a toda a vida
científica de Marie Curie. É provável que esse sentimento para sempre
tenha tomado conta da comunidade científica. O ano de 2011 foi designado
pela UNESCO como o Ano Internacional da Química, para celebrar o papel
das mulheres na química e o centenário do Prêmio Nobel de Química de
Marie Curie.
Sua conferência Nobel, proferida em 11 de novembro de 1911, é um
extraordinário e comovente testemunho de quem sempre esteve à frente de
uma área de pesquisa contemporânea, ainda em sua adolescência [10]:
Há 15 anos a radiação de urânio foi descoberta por Henri Becquerel, e dois anos depois o estudo deste fenômeno foi estendido a outras substâncias, primeiro por mim, e depois por Pierre Curie e por mim. Esse estudo rapidamente levou à descoberta de novos elementos, cujas radiações eram semelhantes à de urânio, porém mais intensas. Denominei radioativos todos os elementos que emitiam esse tipo de radiação, e a nova propriedade da matéria revelada nessas emissões, denominei radioatividade.
[…]
Desde então, vários cientistas dedicaram-se ao estudo da radioatividade. Permita-me relembrar um deles […] Rutherford, que veio a Estocolmo em 1908 para receber o Prêmio Nobel.
[…]
Antes de abordar o assunto desta palestra, devo lembrar que as descobertas do rádio e do polônio foram feitas por Pierre Curie em colaboração comigo. Também somos gratos a Pierre Curie pela pesquisa básica no campo da radioatividade, que realizou sozinho, ou em colaboração com seus alunos.
O trabalho químico para isolar o rádio no estado de sal puro e caracterizá-lo como um novo elemento foi feito especialmente por mim, mas está intimamente ligado ao nosso trabalho comum. Sinto, portanto, que interpreto corretamente a intenção dos Academia de Ciências ao assumir que a atribuição desta elevada distinção a mim é motivada por este trabalho comum e, portanto, presta homenagem à memória de Pierre Curie.
O que mais além do Nobel?
Aos 44 anos e dois PN debaixo do braço, Marie ocupava, como poucos,
posição destacada no Olimpo da ciência, mas não era mulher de ficar por
aí à toa, apenas satisfeita com os louros da glória. Desde sempre Marie
esteve comprometida com sua responsabilidade social. Ainda adolescente
ministrava aulas clandestinas em polonês, discutindo a cultura de seu
país, às escondidas do regime russo que controlava a Polônia com mão de
ferro. Com o advento da I Guerra Mundial, resolveu instalar equipamentos
de raios-X em caminhonetas e foi para a frente de batalha trabalhar com
médicos e enfermeiras, ao lado de sua filha Irène, recém-saída da
adolescência. Irène será sua dedicada aprendiz, e sucessora como
diretora do Institute du Radium, criado em 1909.
Sua filha mais nova, Ève, não seguiu a carreira científica de seus pais e de sua irmã. Resolveu ser escritora, pianista/concertista, crítica musical e jornalista, mas possibilitou que a família fosse, pela sexta vez premiada com o Nobel. Em 1965, seu marido, Henry Richardson Labouisse Jr., recebeu, em nome da UNICEF o Prêmio Nobel da Paz.
Algum leitor poderá alegar que deixei de abordar o caso de amor de
Marie Curie e o ex-aluno de Pierre, Paul Langevin, entre 1910 e 1911.
Para contornar a possibilidade de que o assunto se transformasse em
anticlímax no contexto deste ensaio, seria necessário um espaço muito
maior do que o aqui recomendado. Em um curto espaço nada poderia
acrescentar ao que consta na literatura que aqui apresentei,
especialmente os livro de Françoise Giroud [2] e Susan Quinn [3].
Notas:
[1] E. Curie, Madame Curie (Gallimard, Paris, 1938).
[2] F. Giroud, Marie Curie (Martins Fontes, São Paulo, 1989).
[3] S. Quinn, Marie Curie. A Life (Addison-Wesley, Reading, 1995).
[4] R. de A. Martins,
Becquerel e a Descoberta Da Radioatividade: Uma Análise Crítica (Eduepb /
Livraria da Física, Campina Grande, 2012).
[5] A. Villani, C. A. dos
Santos, J. M. F. Bassalo, and R. A. Martins, Da Revolução Científica à
Revolução Tecnológica: Tópicos de História Da Física Moderna e
Contemporânea (Livraria da Física, São Paulo, 2019).
[6] R. de A. Martins, Cad. Catarinense Ensino Física 7, 27 (1990).
[7] E. Crawford, La Fondation Des Prix Nobel Scientifiques 1901-1915 (Belin, Paris, 1984).
[8] Nobel-Prize-Org, Nobel Prize Organ. (2020).
[9] A. Brown, The Neutron and the Bomb. A Biography of Sir James Chadwick (Oxford University Press, Oxford, 1997).
[10] M. Curie, Radium New Concepts Chem. (1911).
[11] N. Loriot, Irène Joliot-Curie (Éditions Presses de la Renaissance, Paris, 1995).
Agradeço ao professor Luiz Fernando Ziebell, do Instituto de Física da UFRGS, pela cuidadosa leitura do manuscrito.
Carlos Alberto dos Santos é
professor aposentado pelo Instituto de Física da UFRGS. Foi Pró-Reitor
de Pesquisa e Pós-Graduação da UNILA e pesquisador visitante sênior do
Instituto Mercosul de Estudos Avançados. Premiado com o Jabuti em 2016
(3º. Lugar na categoria Ciências da Natureza, Matemática e Meio
Ambiente), atualmente é professor visitante no Instituto de Física da
UFAL.
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