O caso Flordelis não tem nada a ver com religião. Ele é apenas mais um
exemplo de narcisistas satisfazendo desejos mundanos à custa da alma
alheia. Paulo Polzonoff Jr, via Gazeta do Povo:
O caso bizarro da deputada federal, cantora e pastora Flordelis
(PSD-RJ) atiçou o preconceito contra os evangélicos. O que é até
compreensível numa era em que se busca criar associações que demonizem
aqueles com os quais antagonizamos. Para alguém que já nutre ojeriza
pelos crentes (não é o meu caso), nada melhor do que uma história do
mundo cão para provar seu argumento de que se trata de um grupo
facilmente manipulável e inerentemente hipócrita.
Os detalhes dessa história você, leitor, provavelmente já conhece.
Flordelis, a mulher mais votada do Rio de Janeiro nas últimas eleições
legislativas, foi denunciada pelo Ministério Público pela morte do
marido, o também pastor Anderson do Carmo. A história envolve adoções às
dúzias, arsênico, muito sexo e até uma visão muito particular sobre o
divórcio, que aos olhos de Deus seria mais condenável do que um
homicídio.
A questão do preconceito aos evangélicos evocarei num momento mais
oportuno. Neste momento, vale refletir um pouco sobre o porquê de uma
pessoa evidentemente perturbada encontrar tantos seguidores, fãs e
eleitores. Porque, no fundo, o que une Flordelis, o médium João de Deus,
o padre Robson e o também pastor Everaldo não é o Cristianismo
professado, mas não praticado; o que os une são níveis estratosféricos
de narcisismo e um apego bastante evidente ao prazer terreno, na forma
de sexo, dinheiro ou poder.
São dois os ingredientes que implicam a atração que essas pessoas
despertam em seus rebanhos. O primeiro deles é o carisma. É no terreno
da sedução que age o narcisista. Ele fala o que as pessoas querem ouvir,
se preocupa com os problemas alheios e, usando a religião como
instrumento, toma para si a missão de curar os fiéis de quaisquer males.
O objetivo do narcisista é ser de alguma forma idolatrado. E para
alcançar esse objetivo não existe caminho melhor do que a religião ou a
política. Por que não juntar as duas coisas, então? É o que geralmente
acontece com esses falsos profetas caídos em desgraça. Munidos da
certeza narcisista de serem ungidos, eles se põem a satisfazer seus
desejos mundanos empunhando a cruz e todo um discurso de boas intenções
que recitam numa voz sedutora. Às vezes eles até cantam, como no caso de
Flordelis.
O que não quer dizer, em absoluto, que todos os religiosos envolvidos
com política sejam uma Flordelis em potencial. Essa “culpa por
associação”, aliás, é um dos instrumentos preferidos daqueles que tentam
transformar um caso escabroso como o de Flordelis num símbolo de “tudo o
que há de errado” com o mundo dos evangélicos. O mesmo serve para João
de Deus e os espíritas e padre Robson e os católicos.
“Desesperavam de fé sem virtude”
Há uma passagem muito vívida em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães
Rosa, na qual Riobaldo conta a história de uma moça que desistiu de
comer e passou a viver bebendo apenas três gotas de água benta por dia.
De repente, ao redor dela começam a ocorrer milagres. E a palavra se
espalha e de toda a região vêm pessoas atrás da milagreira.
Depois de dizer que o nojo que se sente dos desvalidos é uma forma
que o diabo inventou para evitar a caridade (e você aí achando que
Guimarães Rosa era só invencionice para tarados em literatura, hein!),
Riobaldo se sai com um belo diagnóstico do que leva as pessoas a
buscarem o discurso sedutor dos falsos profetas. “E aquela gente
gritava, exigiam saúde expedita, rezavam alto, discutiam uns com os
outros, desesperavam de fé sem virtude – requeriam era sarar, não
desejavam Céu nenhum”.
Eis aí uma explicação belíssima para o poder de gente como Flordelis,
João de Deus e padre Robson. Mas não só. O diagnóstico de Riobaldo se
aplica também aos muitos profetas seculares do Estado transformado em
religião. Afinal, é também a cura (imediata e palpável) para seus males
sociais o que buscam aqueles que recorrem aos políticos-divindades. A
cura, e não redenção nenhuma.
Sendo que a função da religião (e nunca do Estado) é justamente a de
salvar o homem dessa loucura inata que a fama, o poder e o dinheiro só
alimentam, dando origem a monstrengos morais que ocupam inadvertidamente
púlpitos e altares por aí. Ou, como diz Guimarães Rosa com toda a
sofisticação de Riobaldo: “(...) todo-o-mundo é louco. O senhor, eu,
nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de
religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura”.
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BLOG ORLANDO TAMBOSI
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