Optar por uma identificação através do gênero em vez do sexo não é uma
decisão inocente do Estado, é a materialização de uma agenda ideológica
que contraria os mais elementares princípios científicos. Tiago de Abreu
para o Observador:
Fui pai em tempos de pandemia, o que é muito menos divertido do que
sê-lo em circunstâncias normais. Fossem outros os tempos, a recente
paternidade levar-me-ia pós-parto a desforrar a fome num desses
lendários ágapes noite adentro, que terminam com conhaque, H. Upmann e
dificuldades de locomoção. Essas jantaradas de pais são normalmente mal
aceites pelas mulheres, que não compreendem como é que os maridos podem
ir de patuscada para os Ramiros e Gambrinus desta vida e deixá-las em
recobro hospitalar alimentadas apenas a arroz branco e bifes de peru
insonsos (um árbitro imparcial diria que o equivalente feminino da
mariscada seria essa assustadora convenção que dá pelo nome de “baby
shower”, sobre a qual pouco sei e pretendo continuar ignorante). Mas
privado de tais mundanidades, as necessidades alcoólicas foram saciadas
com uma garrafa de Touriga Nacional contrabandeada para o quarto do
hospital. Bem sei que não é a mesma coisa, mas ao menos foi partilhada
entre marido e mulher e permitirá ao meu filho recém-nascido gravar na
sua memória o som da rolha a sair da garrafa como uma das suas primeiras
recordações de infância.
Outra das consequências da Covid-19 nas maternidades foi o
encerramento dos balcões “Nascer Cidadão”, pelo que o registo de
nascimento do meu filho teve de ser feito em linha. Ao princípio achei
graça registar sozinho este candidato a cidadão e, principalmente,
alívio, pois sem o olhar escrutinador da funcionária do Registo Civil
tudo se torna mais simples. Ainda que o nome, na maioria dos casos,
esteja já decidido há meses, um pai gosta sempre de reflectir na sua
escolha e na composição e harmonia dos apelidos. Mas tais momentos de
profunda contemplação não são possíveis ante a pressão burocrática de
quem quer “despachar serviço”. E ainda que nos sejam dadas todas as
manhãs do mundo, a escolha dos nomes próprios nunca é verdadeiramente
livre quando declarada em alta voz à República Portuguesa. Não sei bem
explicar, mas sinto que há algo de censor e profundamente Joaquim
António de Aguiar cada vez que o Registo Civil ouve um nome cristão. É
como se as suas bases napoleónicas tremessem por cada oportunidade
perdida de chamar Liberdade Lusitana (nome algo em voga na Primeira
República) a uma menina. Assim, foi com agrado que iniciei
solitariamente o processo de registo, sem pressas, nem pressões, nem
Mata-Frades que pudessem interferir nas minhas escolhas onomásticas. No
entanto, as liberdades ficaram-se por aqui.
Em vez de pai, o Estado Português decidiu por bem chamar-me Primeiro
Progenitor. À mãe, já devem ter adivinhado, chamaram-lhe Segundo
Progenitor. Mas como pode uma criança nascer de dois progenitores em que
um deles não seja o pai e outro a mãe? Se a ideia era a não
discriminação de filhos adoptados, ou não gerados pelos pais, não seria
então muito mais sensato dar-se o nome de pai e mãe, seguindo o adágio
popular de “pai é quem cria”? Porque progenitor é precisamente aquele
que gera, que procria e nos casos em que tal assim não foi, a
neutralidade do nome “pais” seria muito mais adequada (e historicamente
mais correcta). Além disso, a quem cabe por direito o lugar de Primeiro
Progenitor? Como se define a ordem hierárquica? Com mãe e pai, problemas
desta natureza jamais se poriam. Não sei se a vontade dos pais entra na
equação – suspeito que não –, mas se me perguntassem, eu gostava mesmo
de ser pai. Primeiro ou Segundo (ou que número seja) Progenitor é muito
deprimente.
Depois, tanto para os pais – desculpem, progenitores – como para o
filho, pedem-me para indicar o género. O Estado Português permite aos
seus cidadãos escolherem um de três géneros. Posso ser masculino,
feminino ou indeterminado. Mas terá alguma lógica indicar-se o género,
que para os defensores da ideologia com o mesmo nome, é fruto da livre
escolha das pessoas ou resultado de uma construção social, quando o que
verdadeiramente importa é a dimensão biológica do indivíduo, ou seja, o
sexo? Felizmente os médicos não se deixam levar por estas efabulações e,
com efeito, na declaração de nascimento emitida pelo hospital consta
que a minha mulher teve um nado vivo do sexo masculino. Até a própria
Conservatória do Registo Civil lavrou no assento de nascimento que o meu
filho é do sexo masculino. Valha-nos isso!
O problema é que o movimento da linguagem “inclusiva” alterou
subtilmente palavras como “pais” por “progenitores”, “sexo” por
“género”, ou “paternidade” por “parentalidade” sem que tais conceitos
sejam, como se pensaria, sinónimos, pois as palavras substitutas têm
significados bem diferentes das substituídas. Optar por uma
identificação através do género em vez do sexo não é uma decisão
inocente do Estado, é a materialização de uma agenda ideológica que
contraria os mais elementares princípios científicos. E, esclareça-se
já, as questões de género não se confundem de forma alguma com a
orientação sexual, pois a expressão da sexualidade, seja de que âmbito
for, não colide nem nega a evidência biológica de que o ser humano é
criado com sexo masculino ou feminino. O que contraria esta verdade
universalmente aceite (até agora), é a ideia que se pretende ver
implementada da soberania da vontade humana sobre qualquer outra
consideração física. Mais absurdo é que, ao permitir-me optar por um
género indeterminado para o meu filho, em alternativa à identidade
masculina e feminina, o Estado acaba por cair numa ambiguidade
contraditória com a própria diferença sexual que quer negar.
Tendo em conta que tanto a Medicina como a Administração Pública
consideram que um bebé nasce com sexo determinado e não com género, por
que razão o portal “Nascer Cidadão” do Ministério da Justiça nos
questiona apenas sobre esta última característica? E se o Estado
quisesse ser verdadeiramente inclusivo não deveria considerar nas opções
de escolha a miríade de géneros “não binários” passíveis de
identificação? É impossível fazer-se uma lista exaustiva, mas os mais
comuns são Agénero (ausência total de género), Andrógino (mistura de
feminino com masculino), Neutrois (identidade de género neutra),
Bigénero (identidade de género dupla ou ambígua), Poligénero (identidade
de género plural ou múltipla), Género-fluído (identidade de género
fluída), Intergénero (identidade de género interligada a uma variação
intersexo), Demigénero (identidade de género parcial), Terceiro género
(identidade de género fora do masculino ou feminino), Trigénero
(identidade de género tripla), Maverique (um género que é presente fora
dos géneros masculinos, femininos e neutros) e Pangénero (ter todos os
géneros acessíveis e possíveis dentro da sua vivência). Se formos para
os géneros “não binários” menos comuns, então a lista ganha proporções
descontroladas e as únicas armas contra o enlouquecimento serão mesmo o
sangue frio e o bom senso, pois até as próprias definições de cada
género rivalizam em dificuldade com as mais complexas proposições de
lógica. Alexigénero (experiência de género fluído, na qual se tem a
noção de que o género se altera, mas não é possível classificar cada
género individual), Ambonec (género que se identifica duplamente com
masculino e feminino, mas ao mesmo tempo não se identifica com nenhum
deles), Anãobinário (género que não é binário, mas que também não se
considera não binário), Antigénero (género que só pode ser definido como
o oposto de um género já existente), Cogitogénero (género que existe
apenas quando se pensa nele), Semifluxo (género parcialmente fluído e
parcialmente estático), Metagénero (quando o género quase se enquadra
numa categoria de género, mas extravasa essa classificação), Xirl
(alguém que se identifica parcialmente como uma rapariga – “girl” – não
binária, mas prefere ser chamada por um nome mais neutro), ou Xoy
(igual mas para rapazes) são uma ínfima amostra do que está disponível. E
tendo em conta que nestas categorias não se enquadram mais do que uma
ou duas pessoas a nível mundial, bem podemos esperar por biliões de
outras entradas no catálogo por cada pessoa que se defina com um género
autónomo. A criatividade humana é o limite e a única dificuldade será
mesmo descobrir géneros que ainda não tenham sido inventados, pois
parece que todas as possibilidades já foram exploradas. Como se
diferenciará, por exemplo, o Cogitogénero do Etegénero (género etéreo
que é incapaz de ser compreendido tanto pelo indivíduo como por
terceiros)?
Não obstante ser fácil desmontar a estrutura sobre a qual assenta a
ideologia de género – não esqueçamos que se trata disso mesmo, de uma
ideologia e não de uma verdade científica –, e sendo evidente a
utilidade do debate destas e de outras questões congéneres (ou, nas suas
variantes não binárias mais comuns, agêneres, bigéneres, poligéneres,
congéneres-fluídas, demigéneres, terceirogéneres, trigéneres ou
pangéneres) que permita ao cidadão discerni-las livremente, o maior
entrave à liberdade de opinião no espaço público é mesmo o próprio
espaço público, que imediatamente classifica qualquer atitude que ponha
em causa a razoabilidade desta construção ideológica como violência de
género. Não foi há muito tempo que J.K. Rowling foi acusada de um dos
maiores ataques transfóbicos da actualidade e crucificada na praça
pública, inclusive com a retirada de obras suas de algumas livrarias
americanas, por chamar mulheres às pessoas que menstruam. É também
difícil levar a sério as recomendações da British Medical Association,
que disponibilizou a todos os seus associados um manual em que lhes
pedia que não fosse utilizado o termo “mãe” para se referirem a mulheres
grávidas, já que isso poderia ferir a sensibilidade de “indivíduos que
deram à luz e não se identificam como mulheres” (pelos vistos os
ficheiros da Direcção-Geral da Saúde sobre a Covid-19 que faziam
referência a homens grávidos estavam correctos!).
Daí que estas questões de género, quando levadas ao extremo, não
sejam apenas absurdas, mas também graves e cada vez mais preocupantes.
Se o que antes eram verdades de La Palice, hoje, quando reafirmadas,
podem originar crimes de ódio num mundo em que a liberdade, e
principalmente a liberdade de expressão e consciência, é sectorial e
distribuída arbitrariamente apenas para quem pensa como o distribuidor.
Até quando se persistirá nesta loucura? Porque uma jantarada de
Primeiros Progenitores não é o mesmo do que a uma jantarada de pais. Com
um nome destes, não seria de admirar que Adão entrasse Gambrinus
adentro para presidir à nossa mesa.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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